Jesus transforma
OEvangelho deste Domingo xiii do Tempo Comum (Mc 5, 21-43) oferece-nos dois milagres de Jesus, relatados de forma entrelaçada, um dentro do outro: o relato da cura de uma mulher que há doze anos sofria de uma hemorragia (Mc 5, 25-34), dentro do relato da chamada «ressuscitação» da filha, de doze anos de idade, de Jairo, um dos chefes da sinagoga (Mc 5, 22-24.35-43).
2. Aí está Jesus outra vez (pálin) e, pela última vez, junto do mar e no meio da multidão, retomando e culminando as situações já anotadas em Mc 3, 7-10 e 4, 1. Na multidão anónima, além de Jesus, em quem estão postos todos os olhares, também o do leitor, emerge agora também um dos chefes da sinagoga, de nome Jairo, que rasga a multidão e vem religiosamente prostrar-se aos pés de Jesus (Mc 5, 22) e implorar-lhe muito (pollá) que vá impor as mãos à sua filhinha (tygátrion: diminutivo de tygátêr), que está a morrer (Mc 5, 23). E o narrador diz-nos que Jesus foi com ele (met’ autoû), sempre rodeado pela multidão (Mc 5, 24).
3. Primeira grande constatação: Jesus é aquele que vai sempre connosco. Sobretudo com os que sofrem. Acompanhando-nos, condivide o nosso caminho e as nossas dores. Vai, portanto, Jesus com Jairo e a multidão que os cerca, a caminho da casa de Jairo, quando o narrador nos surpreende e fixa a objetiva nos movimentos e pensamentos de uma mulher anónima que sofria de uma hemorragia havia doze anos, situação física, social e religiosamente dolorosa e embaraçosa, pois a tornava impura e distante de Deus e das pessoas (Mc 5, 25-26). Ei-la que, com toda a ousadia e fé e confiança, consegue chegar junto de Jesus e tocar-lhe por detrás, na fímbria do manto, de modo a que nem Jesus se apercebesse (Mc 5, 27-29). Fá-lo e fica curada.
4. A história do contacto desta mulher anónima com Jesus podia terminar aqui. A mulher conseguiu os seus objetivos. Aparentemente, ninguém notou nada. É Jesus quem faz a história avançar, trazendo esta mulher do escuro para a luz. Não quer que a situação desta mulher dolorosa fique apenas no domínio físico e, por assim dizer, impessoal. Olha à sua volta e pergunta: «Quem me tocou as vestes?» (Mc 5, 30). E indo além do descuidado, superficial e insensível dizer dos seus discípulos, que se limitam à mais óbvia das reações: «Então tu vês a multidão que te aperta e dizes: “Quem me tocou?”» (Mc 5, 31). Mas Jesus, senhor de toda a situação, «olhava à volta para ver aquela (tên) que lhe tinha tocado» (Mc 5, 32). É assim que a mulher sai do seu esconderijo e confessa a Jesus toda a verdade (Mc 5, 33). E ouve de Jesus uma palavra única, única vez dita no Evangelho no feminino!, carregada de imensa ternura, proximidade e familiaridade: «Minha filha (tygátêr), a tua fé te salvou!» (Mc 5, 34). Quanto caminho andado! Quanto amor condensado! Esta pobre mulher sofredora e humilhada é agraciada por Jesus e passa a fazer parte da sua família: «Minha filha!».
5. Mas estava uma menina de doze anos (Mc 5, 42), moribunda, à espera da morte... ou de Jesus. O seu pai, Jairo, luta pela vida da sua filhinha e veio buscar Jesus para ir a sua casa impor as suas mãos de bênção, portanto, de bem e de cura, sobre a sua filhinha. Todavia, enquanto caminham, chegam os seus criados, que trazem a triste notícia de que a morte chegou a casa da menina antes de Jesus (Mc 5, 35). Aquele pai fica certamente destroçado, como o estavam também os demais familiares e os vizinhos que, em tais circunstâncias, apenas sabiam chorar e entoar lamentações, como era habitual fazer entre os judeus (Mc 5, 38). E Jesus, que até aqui se tinha limitado a acompanhar Jairo, sem nada dizer, diz agora a Jairo a primeira palavra audível: «Não tenhas medo! Tem apenas fé!» (Mc 5, 36).
6. Jesus nunca chega atrasado. Ele é o Senhor que pelo caminho se demora connosco. À chegada à casa de Jairo, vê prantos e lamentações. Os orientais são excessivos na expressão dos seus sentimentos, quer de alegria, quer de dor. Contra aqueles gritos desarticulados, uma vez mais Jesus diz uma palavra carregada de sentido: «A menina não morreu, mas dorme» (Mc 5, 39). Esta maneira de falar da morte como de um sono é linguagem habitual na Igreja primitiva (1 Ts 4, 13-15; 1 Cor 11, 30; 15, 6 e 20; Mt 27, 52) e na tradição da Igreja, ainda hoje. Notemos que a nossa palavra «cemitério» deriva do grego koimêtêrion, que significa literalmente «dormitório». E, na liturgia, é habitual rezarmos pelos nossos irmãos que adormeceram em Cristo.
7. Daqui para a frente, caminhando sobre os limites das possibilidades humanas, Jesus reduz o séquito dos seus discípulos aos três das ocasiões especiais: Pedro, Tiago e João. Encontrámo-los juntos aqui, no episódio da Transfiguração (Mc 9, 2-9) e na agonia no horto das Oliveiras (Mc 14, 32-42). Além disso, vemos que estes três discípulos fazem parte dos primeiros quatro chamados por Jesus (Mc 1, 16-20) e são nomeados em primeiro lugar no elenco dos Doze (Mc 3, 16-17). Ao chegar à casa de Jairo, Jesus cala e afasta o alarido da morte, e entra depois naquela casa e pega terna e soberanamente na mão da menina (Mc 5, 41). Note-se o número pleno de sete pessoas presentes: Jesus, Pedro, Tiago e João, o pai e a mãe da menina, e a menina. A plenitude rasga a nossa plenitude! Pegando ternamente na mão da menina, Jesus diz, em aramaico, língua materna de Jesus e da menina: «Talitha, qûm!» [= menina, filha, irmã, levanta-te!] (Mc 5, 41). Não passa despercebido que a palavra de Jesus interpela a própria morte e trata aquela menina ternamente por irmã, irmãzinha, sua irmã querida. Na verdade, o aramaico Talitha é o feminino de Talyaʼ. E o aramaico Talyaʼ é a mais bela, plena e significativa palavra para dizer Jesus, pois significa ao mesmo tempo «filho», «cordeiro», «servo», «pão». Sim, Jesus é o «Filho de Deus», o «Cordeiro de Deus», o «Servo de Deus», o «Pão de Deus». Como se vê, Talyaʼ diz o Jesus todo, sendo Ele a vida verdadeira, ressuscitada, levantada, que liberta e alimenta, ressuscita e levanta.
8. E a sua voz é mais fina do que o silêncio (1 Rs 19, 12), mais afiada e eficaz do que a lâmina do bisturi (Hb 4, 12), mais íntima e apelativa do que a chama que, da sarça, chama Moisés (Ex 3, 4) ou queima o coração dos dois de Emaús (Lc 24, 32) ou do que as línguas de fogo daquele ardente Pentecostes (At 2, 3). É uma voz nova que quebra as nossas crostas e, desde dentro, queima, purifica, limpa, corta, opera, atravessa o coração. Palavra nova, absolutamente nova, que se capta só em alta fidelidade, hi-fi, alta sintonia, alta frequência, que acorda até os que dormem nos sepulcros o sono da morte, e deles os retira (Jo 5, 25 e 28).
9. Desta «ressuscitação» da menina, Jesus manda não dizer nada a ninguém (Mc 5, 43). Mas também se vê bem que esta «ressuscitação» da menina, da irmãzinha, aponta para a verdadeira e plena «ressurreição» de Jesus. E esta, a ressurreição de Jesus, não é para ser calada. É para ser anunciada aos quatro ventos, a todas as nações, a todos os corações.
10. Como se vê, trata-se de duas cenas únicas e belíssimas, cheias, plenas de humanidade e divindade. Passa, Senhor Jesus, à nossa porta, entra em nossa casa, veste o nosso dorido coração de festa. Faz-nos sentir que somos teus filhos e irmãos queridos. E que as nossas lágrimas de dor podem sempre transformar-se em lágrimas de amor! Porque o teu olhar carinhoso nos descobre sempre e nos faz sair dos nossos esconderijos, e a tua Palavra rasga inclusive o véu da morte!
D. António Couto
Bispo de Lamego