· Cidade do Vaticano ·

O cardeal Czerny na conferência de imprensa para a apresentação

«Se sentíssemos as pressões de quem é obrigado a migrar também nós fugiríamos»

 «Se sentíssemos as pressões de quem é obrigado a migrar também nós fugiríamos»  POR-023
06 junho 2024

A migração não é um problema. Sofremos devido ao desequilíbrio entre os valores da migração sobre os quais a Europa foi fundada e os valores contidos no atual discurso político: eis o problema. Assim se expressou o cardeal jesuíta Michael Czerny, prefeito do Dicastério para o serviço do desenvolvimento humano integral, numa das respostas dadas aos jornalistas durante a apresentação, na manhã de 3 de junho na Sala de Imprensa da Santa Sé, da mensagem do Papa Francisco por ocasião do 110º Dia mundial do migrante e do refugiado, que será celebrado no domingo 29 de setembro, sobre o tema “Deus caminha com o seu povo”.

Um migrante forçado não foge por prazer, isto é falso! Assim se expressou o cardeal Czerny no diálogo com os jornalistas. Instado a olhar para o voto europeu, convidou a não reduzir o tema à abstração. Por exemplo, disse, não dizer “migração”, mas sim “migrantes”: «Isto já ajuda. Dizer que a migração é uma crise global é falso». Também pediu que se reconheça o migrante como irmão e irmã. Com um pouco de fraternidade tudo seria diferente, realçou. «Seria útil recordar as raízes migratórias da Europa. É uma pena que, após poucas gerações, já as tenhamos esquecido. Hoje, em vez de rejeitar e reprimir quantos estão a caminho, devemos prestar atenção aos fatores de atração e repulsão que estão na base da migração forçada. Também nós, se sofrêssemos tais pressões, fugiríamos». O purpurado exortou a reler o livro bíblico do Êxodo: para o povo de Israel, tanto as pressões (trabalho forçado, escravatura, repressão) como a atração pela Terra Prometida, disse Czerny, eram fatores irresistíveis. «Nada os poderia ter dissuadido de organizar aquela viagem perigosa». O cardeal jesuíta frisou, por exemplo, que à beira do desespero muitos migrantes levam consigo a Bíblia e outros objetos religiosos, pois depositam a confiança na única verdadeira âncora de salvação. Por isso, convidou ao acolhimento porque, explicou citando o Papa, os encontros com os migrantes são momentos de revelação divina. A própria Igreja, disse, «agora percorre um caminho sinodal, uma espécie de migração».

Durante a conferência de imprensa, a voz de Blessing Okoedion, presidente de Weavers of Hope, “Tecelãs de esperança” ressoou vigorosamente. O seu testemunho é de resgate do tráfico. Conseguiu fundar esta associação com outras mulheres africanas que tiveram a mesma desventura, ajudando desde 2018 cerca de 150 meninas e mulheres a sair dessa situação e a iniciar um percurso de reintegração na sociedade e no trabalho. Precisamente na Nigéria, o seu país, a associação atua através de ações de sensibilização e de capacitação, sobretudo nas áreas rurais. É originária do estado de Edo, atualmente considerado o centro do tráfico de seres humanos na Nigéria, onde milhares de pessoas são recrutadas e forçadas a uma vida de abusos, dívidas, humilhações, violências e, acima de tudo, cumplicidade. Blessing foi trazida para a Europa em 2013, sob coação, por uma presumível “dívida” de 65.000 euros. «Para os exploradores, és uma mercadoria à venda para especular e ganhar dinheiro», lamentou, «e para os compradores de sexo, és uma mercadoria à venda para ser comprada e usada para o seu prazer». A mulher salientou ainda que «este problema é muito mal compreendido». Depois de fugir, encontrou a irmã Rita Giaretta na Casa Rut em Caserta (atualmente a religiosa é responsável pela Casa Magnificat em Roma) o que mudou a sua vida. Este renascimento é descrito no seu livro “A coragem da Liberdade”. Blessing tornou-se mediadora cultural e intérprete, tendo-se formado na Universidade Oriental de Nápoles. Com o passar do tempo, na sua vida também ganhou espaço a oportunidade de redescobrir os valores cristãos que a sua família de origem lhe tinha transmitido e que foram poluídos «por uma mulher que se dizia cristã e frequentava uma das muitas igrejas que proliferam na Nigéria». Blessing frisou a importância do apoio psicológico e das relações interpessoais para as vítimas forçadas a suportar os traumas do tráfico durante muito tempo. «Ainda há muito a fazer» para que as ex-vítimas possam realmente levar «uma vida de autonomia sem riscos».

A irmã Patricia Murray, do Instituto da Bem-Aventurada Virgem Maria, secretária executiva da União internacional das superioras-gerais ( uisg ), recordou também os obstáculos geográficos e os muros de rejeição que se interpõem ao longo do caminho das pessoas forçadas a migrar devido à guerra e à pobreza. «Merecem o nosso respeito, aceitação e reconhecimento. Mas isto, esclareceu a religiosa, só acontecerá quando nos aproximarmos e nos encontrarmos».

A mensagem do Papa é um grande encorajamento, comentou Emanuele Selleri, diretor executivo da Agência scalabriniana de cooperação para o desenvolvimento (Ascs), organização voluntária criada há 20 anos como braço social, operacional e cultural da Região Europa-África dos Missionários de São Carlos — Scalabrinianos. Trabalhando nas fronteiras europeias de Ventimiglia, Oulx, Calais e Ceuta, ou nas “fronteiras internas italianas”, como a área do Gran Ghetto di Rignano, na área rural entre Foggia e San Severo, e incluindo projetos de desenvolvimento na Guatemala, Bolívia e Brasil, a Ascs atua no acolhimento integral, na animação intercultural, especialmente com os jovens, e na cooperação para o desenvolvimento.

Selleri evocou o que dizia São João Batista Scalabrini: «A emigração é uma lei da natureza», comentando: «A questão das migrações não pode ser gerida na sociedade e na Igreja, trabalhando apenas com os migrantes, mas incluindo também as comunidades autóctones num trabalho constante e incessante de criação de espaços e tempos de encontro entre as pessoas». Um encontro, concluiu, «que gera conhecimento, convívio, amizade e harmonia». (antonella palermo)