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Ansiedade de salvação
do homem medieval
ao homem moderno

 Ansiedade de salvação  do homem medieval ao homem moderno  POR-020
16 maio 2024

Para compreender bem o que se entende por indulgência, é preciso dar um passo atrás. Na Igreja antiga, as pessoas não se confessavam como nós fazemos hoje. O perdão dos pecados era um “dado social”: declarava-se pecador (sem entrar em pormenores, que de qualquer modo não era útil), entrava-se num grupo (uma verdadeira “comunidade de recuperação”) e seguia-se um caminho penitencial que podia durar vários meses e até anos, segundo a gravidade do pecado. Assim, primeiro fazia-se penitência e só no fim (geralmente na manhã de Quinta-Feira Santa) se apresentava ao bispo que impunha as mãos e concedia a absolvição dos pecados. Portanto, a sequência era: primeiro a confissão, depois a penitência e, no final, a absolvição.

Contudo, tratava-se de um processo longo, que impunha muitos sacrifícios. Era um caminho que só se podia percorrer poucas vezes na vida, relativo a pecados graves (roubos, homicídios, etc.): antes de o iniciar, refletia-se bem sobre ele e, geralmente, era feito na velhice (quando até a capacidade de pecar diminuía).

Na idade média, a vida cristã continuou nos mosteiros, e ali a situação era muito diferente. Vivendo em comunidades pequenas e isoladas, cometiam-se constantemente muitos pecados veniais e não se podia fazer penitência de meses e anos por cada pequena falha... Além disso, os bispos reuniam-se muito raramente.

Começou-se a difundir o hábito de confessar os pecados ao abade do mosteiro, que imediatamente concedia a absolvição e depois atribuía a penitência, como fazemos até hoje.

Neste novo sistema surge a distinção entre culpa (eliminada pela confissão) e castigo (a cumprir após o perdão, para reparar o pecado). Dado que o sistema antigo não tinha sido abolido, a duração da penitência era sempre calculada em dias, meses e anos. Havia até “tabelas de tarifas” especiais (livros penitenciais), nos mosteiros que prescreviam a duração da penitência para quase todos os pecados possíveis.

No entanto, em ocasiões especiais (festas importantes, acontecimentos extraordinários), um bom penitente podia obter um “desconto de pena”. Em troca de algumas boas obras adicionais, eram retirados alguns dias, meses ou anos de penitência. Esta “oferta especial” assumia o nome de indulgência e não raro era muito conveniente; por isso, os bons cristãos não a deixavam escapar.

Foi por ocasião de uma mission impossible, ou seja, a reconquista de Jerusalém invadida pelos árabes que, em 1096, o Papa Urbano ii , considerando o altíssimo risco deste empreendimento, fez uma oferta inédita: a remissão total da pena a quantos partissem para libertar a Cidade Santa.

Esta foi a primeira indulgência plenária. A partir de então, era cada vez mais frequentemente o Papa, como Vigário de Cristo e sucessor de São Pedro, que usava “o poder das chaves” recebido de Jesus para abrir o tesouro das indulgências, substituindo diretamente o valor infinito da Redenção pelos dias, meses e anos das antigas penitências: uma “casa de câmbio” muito procurada durante grande parte da Idade Média.

O homem medieval tinha uma relação imediata, intuitiva com Deus: acreditava na sua misericórdia, mas temia a sua justiça, pois pensava na sua relação com Ele de forma “medieval”, isto é, como um pacto feudal entre vassalo e rei. Colocava-se literalmente nas suas mãos (o gesto de rezar “de mãos postas” deriva das celebrações feudais) e prometia obedecer às suas leis; em troca, recebia defesa, ajuda e proteção contra as insídias do diabo.

Transgredir a lei de Deus era considerada uma afronta muito grave ao rei que, retirando a sua proteção, expunha o transgressor à danação. Por isso, havia ansiedade em regressar “à graça de Deus”, contraindo um novo pacto feudal e, assim, “reinstalar o antivírus” contra o diabo.

Quando Bonifácio viii proclamou o primeiro jubileu, em 1300, prometendo a todos uma indulgência plenária em troca de apenas trinta dias de oração em Roma, a cidade foi invadida por um exército de peregrinos. A partir de então, “indulgência” e “jubileu” são uma dupla de sucesso...

Nos séculos seguintes, a ansiedade de salvação não se aplacou, provocando um aprofundamento da doutrina já conhecida de que uma boa obra pode abreviar o tempo de penitência. Em nome da comunhão dos santos, ou seja, do vínculo que une todos os batizados no único Corpo místico de Cristo, deduziu-se que o desconto da pena podia aplicar-se a todos os cristãos, vivos e mortos.

A fome de indulgências manteve-se viva por mais alguns séculos entre o povo cristão.

Foi com a saída da economia agrícola típica da idade média e a entrada na economia monetária típica da idade moderna que as indulgências entraram também nos mercados.

A riqueza da idade média provinha da terra, que garantia o sustento e, portanto, a autonomia; a riqueza da modernidade é o dinheiro, que permite comprar no mercado o que antes se obtinha da terra. Na sociedade civil, começaram a ser vendidos os cargos públicos, os títulos de nobreza, as magistraturas... Na Igreja, os cardinalatos, as abadias, as dioceses. Os comerciantes mais ricos também emprestavam dinheiro até a reis, imperadores, papas, bispos.

Um bispo alemão de 26 anos contraiu uma dívida com um grande banco para comprar uma importante diocese. Deu um passo maior que a perna e, para pagar a dívida, tem que angariar fundos rapidamente. Pela mesma razão, o Papa também precisa de dinheiro: deve continuar a construir a basílica de São Pedro. Ambos utilizam o mesmo sistema: uma campanha de pregação para receber a indulgência plenária. Só que agora a boa obra a praticar já não é a reconquista de Jerusalém, mas apenas uma modesta oferta em dinheiro. A ansiedade de salvação é sempre muito forte, só que agora entra brutalmente na lógica do mercado, com slogans publicitários: Wenn die Münze klingt, die Seele springt! (“Quando as moedas tilintam, a alma salta para o Paraíso”).

O bispo manda pregar a indulgência do Papa na sua diocese e retém uma percentagem das ofertas. A receita é elevada, favorecida pela ambiguidade da proposta (hoje chamamos-lhe “publicidade enganosa”), mas a certa altura o jogo interrompe-se.

Um jovem agostiniano, professor de Sagrada Escritura, chamado Martinho Lutero, põe o dedo na ferida: se não houver conversão do coração, é inútil sacrificar-se para comprar certificados papais!

O homem mudou, assim como a sua relação com Deus: o homem moderno já não é vassalo de um pacto feudal, mas um indivíduo com uma consciência atormentada, em busca da verdade, intolerante em relação a todas as mistificações. Com Deus, quer uma relação sincera e livre, não quer eliminar o problema pagando a conta. Quando convida os seus colegas a debater sobre o assunto, o programa de discussão torna-se incontrolável e invade toda a Alemanha, obtendo um enorme sucesso.

A indulgência, de ajuda à conversão, passa a ser sinónimo de infâmia e detonador de um protesto que explodiu em toda a Europa: e assim foi para muitas consciências, ainda hoje escandalizadas com a gravidade do que aconteceu há cinco séculos.

Procuremos pôr tudo em ordem: o que diz hoje a Igreja sobre a doutrina das indulgências? Comecemos dizendo o que já não é válido: os dias, meses e anos de “desconto de pena” foram abolidos por Paulo vi em 1967. Atualmente, a indulgência só pode ser parcial ou plenária, e é muito limitada em relação ao passado. Estas qualidades não são o mais importante: hoje prega-se sobretudo a doutrina espiritual que está por detrás disto: a doutrina dos resíduos do pecado.

Após a confissão, o pecado é eliminado, mas a nostalgia do sabor do pecado permanece. O mal conserva a sua atração, continua a tentar-nos, debilita-nos, leva-nos a cometer sempre os mesmos pecados. Qualquer pessoa “séria” em relação ao Senhor sabe que não se pode iludir, pensando que uma confissão é suficiente para acabar com o pecado. Se tivéssemos fé, seria certamente assim, mas a nossa fragilidade é tal que, infelizmente, não basta. Até o corpo, depois de uma doença grave, precisa de uma longa convalescença antes de ficar completamente curado. A atração do pecado, os seus resíduos, tornam-se um estorvo para quantos desejam progredir rapidamente na vontade de Deus.

A pena do pecado é precisamente esta longa convalescença que nos impede de correr rapidamente rumo ao amor de Deus por nós.

Então, para ir ao encontro daqueles que desejam ser curados mais rapidamente, a Igreja indica algumas boas obras, certamente úteis para sarar depressa: na realidade são sempre as mesmas. Com efeito, pede-se para reforçar a comunhão com Cristo nos sacramentos, com a fé da Igreja (recitação do Credo e oração pelo Papa) e com os irmãos (obras de caridade). Quando é atribuída uma indulgência (parcial ou plenária) a estas obras, acreditamos pela fé que a atração pelo pecado diminui e a caridade e a santidade aumentam de modo particularmente intenso. Os resíduos do pecado são eliminados e a pessoa cura-se mais depressa do que antes.

É por isso que hoje, como então, um bom cristão não deixa escapar esta “oferta especial”!

Federico Corrubolo