· Cidade do Vaticano ·

Com os artistas na igreja da Madalena

Uma rede
de “cidades-refúgio” onde ninguém é estrangeiro

 Uma rede de “cidades-refúgio” onde ninguém é estrangeiro  POR-018
02 maio 2024

No final do encontro com as encarceradas no pátio da prisão, o Papa Francisco foi à igreja da Madalena (que é a capela da prisão da Giudecca), onde teve lugar o encontro com os artistas. Ali foi recebido pelo cardeal José Tolentino de Mendonça, prefeito do Dicastério para a cultura e a educação e comissário do Pavilhão da Santa Sé na Bienal de Arte de Veneza. Após a saudação do purpurado, o Pontífice pronunciou o seguinte discurso.

Senhor Cardeal, Excelências,
Senhor Ministro,
Senhor Presidente,
Distintos Curadores,
Queridas e queridos artistas!

Desejei muito vir à Bienal de Arte de Veneza para retribuir uma visita, como é bom costume entre amigos. Em junho passado, tive a alegria de receber na Capela Sistina um grande grupo de artistas. Agora venho “à vossa casa” para me encontrar pessoalmente convosco, para me sentir ainda mais próximo de vós e, desta forma, agradecer-vos pelo que sois e pelo que fazeis. E ao mesmo tempo, daqui, gostaria de enviar a todos esta mensagem: o mundo precisa de artistas. Demonstra isto a multidão de pessoas de todas as idades que frequentam locais e eventos artísticos; apraz-me recordar entre eles as Vatican Chapels, o primeiro Pavilhão da Santa Sé construído há seis anos na Ilha de San Giorgio, em colaboração com a Fundação Cini, no âmbito da Bienal de Arquitetura.

Confesso que ao vosso lado não me sinto um estranho: sinto-me em casa. E penso que isto se aplica, de facto, a cada ser humano, porque, para todos os efeitos, a arte tem o estatuto de “cidade-refúgio”, uma entidade que desobedece ao regime de violência e discriminação para criar formas de pertença humana capazes de reconhecer, incluir, proteger, abraçar todos. Todos, a começar pelos últimos.

As cidades-refúgio são uma instituição bíblica, já mencionada no código deuteronómico (cf. Dt 4, 41), destinada a evitar o derramamento de sangue inocente e a moderar o desejo cego de vingança, a garantir a proteção dos direitos humanos e a procurar formas de reconciliação. Seria importante que as diferentes práticas artísticas se constituíssem por toda a parte como uma espécie de rede de cidades-refúgio, trabalhando em conjunto para libertar o mundo das antinomias insensatas e vazias que procuram impor-se no racismo, na xenofobia, na desigualdade, no desequilíbrio ecológico e na aporofobia, esse neologismo terrível que significa “fobia dos pobres”. Por detrás destas antinomias, há sempre a rejeição do outro. Há o egoísmo que nos faz funcionar como ilhas solitárias em vez de arquipélagos colaborativos. Imploro-vos, amigos artistas, que imagineis cidades que ainda não existem no mapa: cidades onde nenhum ser humano é considerado um estranho. É por isso que quando dizemos “estrangeiros em toda parte”, estamos a propor “irmãos em toda a parte”.

O título do pavilhão onde nos encontramos é “Con i miei occhi” (Com os meus olhos). Todos nós precisamos de ser olhados e de ousar olhar para nós próprios. Nisto, Jesus é o Mestre perene: olha para todos com a intensidade de um amor que não julga, mas sabe estar próximo e encorajar. E diria que a arte nos educa para este tipo de olhar, não possessivo, não objetivante, mas também não indiferente, superficial; educa-nos para um olhar contemplativo. Os artistas estão no mundo, mas são chamados a ir além. Por exemplo, hoje, mais do que nunca, é urgente que saibam distinguir claramente a arte do mercado. É certo que o mercado promove e canoniza, mas há sempre o risco que “vampirize” a criatividade, que roube a inocência e, por fim, que instrua friamente sobre o que fazer.

Hoje escolhemos encontrar-nos todos juntos aqui, na prisão feminina da Giudecca. É verdade que ninguém tem o monopólio da dor humana. Mas há uma alegria e um sofrimento que se unem no feminino de uma forma única e da qual nos devemos pôr à escuta, pois têm algo de importante a ensinar-nos. Estou a pensar em artistas como Frida Khalo, Corita Kent ou Louise Bourgeois e muitas outras. Espero de todo o coração que a arte contemporânea possa abrir o nosso olhar, ajudando-nos a valorizar corretamente o contributo das mulheres, como coprotagonistas da aventura humana.

Queridas e queridos artistas, recordo a pergunta que Jesus dirigiu às multidões, a propósito de João Batista: «O que fostes ver no deserto? Uma cana agitada pelo vento? Então, o que fostes ver?» (Mt 11, 7-8). Guardemos esta pergunta no nosso coração, no nosso coração. Ela impele-nos para o futuro.

Obrigado! Levo-vos na oração. E, por favor, rezai por mim. Obrigado.