· Cidade do Vaticano ·

Cristãos, os artistas de que temos necessidade

02 maio 2024

No encontro com os artistas na igreja da Madalena, capela da prisão feminina da Giudecca, em Veneza, o Papa Francisco começou com uma confissão, continuou com um apelo e concluiu com uma pergunta. «Confesso-vos que em vossa companhia não me sinto um estranho: sinto-me em casa. E penso que isto seja válido para todos os seres humanos, pois para todos os efeitos a arte reveste o estatuto de “cidade-refúgio”, uma cidade que desobedece ao regime de violência e discriminação para criar formas de pertença humana capazes de reconhecer, incluir, proteger, abraçar todos. Todos, a começar pelos últimos». A decisão de realizar o Pavilhão da Santa Sé na Bienal de Veneza na prisão feminina da Giudecca responde a esta visão da arte que “reconhece, inclui, protege, abraça todos, a começar pelos últimos”. A arte é um refúgio, recorda-nos o Papa, um lugar onde todos se podem sentir em casa, onde cada ser humano, entrando nela, possa reconhecer-se a si mesmo e o mundo tal como estava destinado a ser no desígnio original de Deus, aquele mundo criado e admirado pelo seu próprio Criador: e Deus viu que era bom/belo (Gn 1, 18).

Portanto, a arte pode tornar-se um momento de trégua, de pausa, de fuga de uma vida frenética, que só tende a produzir, a fazer, a sobrecarregar. Tal como no desporto, pensemos na chamada “trégua olímpica”, a arte pode gerar as condições para o nascimento da paz. Neste sentido, o Papa citou a instituição bíblica das cidades-refúgio, destinadas a «evitar o derramamento de sangue inocente e a moderar o desejo cego de vingança, para garantir a tutela dos direitos humanos e procurar formas de reconciliação. Seria importante que as várias práticas artísticas se constituíssem por toda a parte como uma espécie de rede de cidades-refúgio, colaborando para livrar o mundo das antinomias insensatas e vazias que procuram impor-se no racismo, na xenofobia, na desigualdade, no desequilíbrio ecológico e na aporofobia, este terrível neologismo que significa “fobia dos pobres”».

Por isso o apelo, dirigido diretamente ao grande talento próprio dos artistas, a imaginação: «Imploro-vos, amigos artistas, imaginai cidades que ainda não existem no mapa: cidades em que nenhum ser humano seja considerado um estranho. É por isso que quando dizemos “estranhos em toda a parte”, propomos “irmãos em toda a parte”». Esta “cidade que não existe”, parafraseando o famoso romance de J. Barrie, é uma necessidade, é aquela cidade que torna humanas e ricas de significado todas as outras existentes porque, afirmou o Papa com veemência, «o mundo precisa de artistas». Os próprios cristãos são chamados a ser os artistas de que o mundo precisa. E já o são, há cerca de dois mil anos, pois no cristão vive e encarna-se diariamente o paradoxo de viver no mundo como “estrangeiros” e ao mesmo tempo “irmãos”. A antiga Carta a Diogneto já o tinha enunciado de forma clara e exata: «Além disso, [os cristãos] residem em cidades tanto gregas como bárbaras, como acontece, embora seguindo no modo de se vestir, no modo de comer e no resto da vida os costumes do lugar, propondo-se uma forma de vida maravilhosa e, como todos admitiram, incrível. Vivem cada qual na própria pátria, mas como se fossem estrangeiros; respeitam e cumprem todos os deveres dos cidadãos, e assumem todos os fardos como se fossem estrangeiros; cada região estrangeira é a sua pátria, mas para eles cada pátria é uma terra estrangeira». Sentir-se em casa e, ao mesmo tempo, estrangeiro ao longo da peregrinação terrena, eis a condição paradoxal dos cristãos no mundo, que propõem a uma humanidade muitas vezes distraída, aborrecida e entorpecida «uma forma de vida maravilhosa».

Porque o mundo pode assumir o rosto duro e desumano do cárcere, uma prisão da qual é possível escapar, e a arte pode representar o caminho para esta libertação, para uma possível redenção. Este processo de libertação só pode nascer do coração do homem e da sua maneira de ver o mundo e a vida. Por isso, concluindo o seu discurso, o Papa concentrou-se no tema do olhar, inspirando-se no título do pavilhão, “Com os meus olhos”: «Todos nós temos necessidade de ser olhados e de ousar olhar para nós próprios. Nisto, Jesus é o Mestre perene: olha para todos com a intensidade de um amor que não julga, mas sabe estar próximo e encorajar. E diria que a arte nos educa para este tipo de olhar, não possessivo, não objetivante, mas nem sequer indiferente, superficial; educa-nos para um olhar contemplativo. Os artistas estão no mundo, mas são chamados a ir além. Por exemplo, hoje, mais do que nunca, é urgente que saibam distinguir claramente a arte do mercado. É evidente que o mercado promove e canoniza, mas há sempre o risco de “vampirizar” a criatividade, roubar a inocência e, em última análise, instruir friamente sobre o que fazer».

Eis, pois, a interrogação conclusiva: o que vemos na nossa vida diária? Como vemos o mundo? Afinal, o que procuramos? O Papa recorda a pergunta dirigida por Jesus às multidões, a propósito de João Batista: «Que fostes ver no deserto? Uma cana agitada pelo vento? Então, que fostes ver?» (Mt 11, 7-8), convidando-as a conservar «esta pergunta no coração». Hoje existe um deserto que se dilata num mundo ferido por tantas guerras, pela ganância “fria” de um mercado regulador e ordenador, mas existe também um poço de água fresca, um refúgio onde, livremente, os homens podem encontrar-se, revigorar-se e retomar o caminho neste lugar estranho e ao mesmo tempo familiar que é o mundo, o mundo belo e bom que, na sua criatividade, o Senhor confiou à nossa responsabilidade.

Andrea Monda