· Cidade do Vaticano ·

Reflexão litúrgico-pastoral
Para o domingo ii da Páscoa

Da incredulidade à fé

 Da incredulidade à fé  POR-014
04 abril 2024

Novos percursos se abrem, e é aqui que se inicia o Evangelho do Domingo ii da Páscoa (Jo 20, 19-31), que o Papa São João Paulo ii , em 30 de Abril do ano 2000, consagrou como «Domingo da Divina Misericórdia». Os discípulos estão em um lugar, com as portas fechadas, por medo dos judeus. O Ressuscitado, Vida vivente e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter ou derreter, vem e fica no meio deles, o lugar da Presidência, e saúda-os: «Shalôm!», «A paz convosco!».

2. Esta Saudação, este Shalôm, esta Paz, a Bondade deste “Bom-Dia”, que ressoa desde a Criação, entra em nós, enche-nos de Bondade e de Alegria, e faz-nos encontrar um modo novo de encarar a vida. Esta Saudação, este Shalôm, esta Paz, este “Bom-Dia” estabelece connosco uma relação nova e boa, e inverte por completo a nossa velha maneira de ver e de viver. Na verdade, estamos habituados a pensar, a decidir e a escolher o que vamos fazer, comprar ou vender. Sou eu que penso, posso, compro, decido, escolho. Como se o mundo inteiro começasse em mim e a partir de mim, nada antes de mim. Como se eu fosse (porque penso que sou) o único senhor do mundo. Ora, o imenso texto do Evangelho de hoje, como, de resto, a Escritura inteira, começa com Alguém que vem de fora do meu alcance, e me surpreende, e me saúda, deixando-me na condição nova e inédita, não de senhor que pensa e escolhe, mas de respondedor que é pensado e escolhido, a quem compete acolher e responder. Quando «eu penso», decido e escolho, escolho sempre um alter ego, isto é, algo ou alguém igual ou semelhante a mim, que venha ao encontro do meu mundo desiderativo e projetado, e o encha e satisfaça. Quando «eu sou pensado» e escolhido e saudado, cabe-me acolher aquela Saudação, aquela «Paz», aquele Shalôm, e responder, responder, responder. O “Bom-Dia” precede o cogito. Precede, inverte e investe.

3. Recebendo o Evangelho de hoje, é Jesus, como sempre, que abre as portas da Alegria fechadas pelo medo. Jesus é o homem das portas abertas e das mãos abertas. E pelos vistos também do coração aberto. As mãos abertas, rasgadas pelos pregos. O coração aberto pela lança do soldado. As portas abertas, porque porta, na língua de Jesus, se diz com o nome patah, nome que, usado como verbo, também significa abrir, de onde deriva que as portas são para abrir, não para fechar. O que acabo de dizer expõe um modo novo de viver, um jeito desajeitado para a nossa maneira de viver fechada por um medo qualquer ou por muitos medos, que afeta as portas, as mãos e o coração. Entenda-se: é esta amostragem, esta ação de mostrar, ação toda de Jesus, que dissipa o medo e faz despontar a Alegria. Primeiro, Jesus; depois, os discípulos. Alegram-se os discípulos, porque veem. Mas veem o quê? Ou veem quem? Veem as portas abertas, as mãos chagadas, o coração rasgado. Mas nisto que lhes é dado ver, eles veem ou reconhecem uma pessoa e o seu modo único de ser e de viver. Eles veem o Senhor! Entenda-se ainda: eles não veem as coisas de Jesus, o aspeto, as roupas, a cor dos olhos, os cabelos. Eles veem, como o Outro Discípulo (Jo 20, 8), a identidade de Jesus! Por isso, onde a tradução portuguesa tem «ao verem o Senhor», neste nosso ver, o texto grego tem o verbo ideîn, de onde deriva, em português, ideia e identidade: ver, não por fora, mas por dentro! Mas este ver por dentro, de ideîn, transporta ainda outra lição: sendo um aoristo, aoristo segundo forte do verbo horáô, então traz em si um tempo carregado como uma arma, que indica um ver pontual situado no tempo, uma experiência vivida, inscrita numa hora do relógio e num quadrado da folha do calendário.

4. Jesus mostra àqueles discípulos as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, e agrafa-os à sua missão: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): está sempre em missão; o nosso está no presente, e passa. O presente da nossa missão aparece, portanto, agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mt 28, 20). O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão. Este sopro só aparece aqui em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para outras passagens, nomeadamente para Gn 2, 7, para o sopro ou alento (napah tm / emphysáô lxx ) criador de Deus no rosto do homem.

5. A identidade do Senhor Ressuscitado está para além do rosto. Por isso, vê-lo não implica necessariamente reconhecê-lo, como sucede em não poucas páginas dos Evangelhos. A identidade do Ressuscitado não é do domínio da fotografia. Vem de dentro. Reside na sua vida a nós dada por amor até ao fim, aponta para a Cruz. Por isso, Jesus mostra as mãos e o lado, sinais abertos para entrar no sacrário da sua intimidade, dádiva infinita que rebenta as paredes dos nossos olhos embotados e do nosso coração empedernido. Entenda-se também que a missão que nos é confiada é mostrar Jesus. Está bom de ver que não basta exibir as capas do catecismo que mostram um Jesus de olhos azuis e cabelo louro encaracolado. Só o podemos mostrar com a nossa vida dele recebida, e igualmente dada e comprometida.

6. Para se entender a musicalidade desta página intensa, é necessário repor, em contraponto, outros retalhos musicais nela presentes. Em outros pontos deste cap. 20 do Evangelho de João, aparecem no texto outras formas de ver: 1) blépô, que é o ver normal, é o primeiro ver da Madalena, que a pedra retirada do túmulo (Jo 20, 1); 2) theôréô, que é um ver que dá que pensar: é o ver de Pedro quando entra no túmulo e as faixas de linho no chão estendidas, e o sudário dobrado à parte (Jo 20, 6-7): em casa tão arrumada dá para entender que o que se passou não foi obra de ladrões, e levanta a questão: que outras mãos poderão estar por detrás do que é dado ver a Pedro e a nós? Mas Pedro e nós devemos estar aptos a ver ainda mais: pouco antes, no andamento do relato, por ordem de Jesus, Lázaro saiu do túmulo, ligado com as faixas da morte e o rosto tapado com o sudário da morte (Jo 11, 34); mas agora eis que as vestes da morte estão ali abandonadas!; 3) horáô, no tempo perfeito, é o ver da testemunha, que se deve traduzir por «vi e continuo a ver». Enlaça no tempo do relógio, na folha do calendário, mas atravessa o tempo, continua a encher, não apenas os olhos, mas a vida inteira do sujeito deste ver. É o último ver da Madalena, quando anuncia aos discípulos: «Vi (heôraka) o Senhor!» (Jo 20, 18); é o ver dos discípulos, quando diziam repetidamente a Tomé: «Vimos (heôrákamen) o Senhor!» (Jo 20, 25); é o último ver de Tomé, assim traduzido por Jesus: «Porque me viste (heôrakás me), acreditaste (pepísteukas: perf. de pisteúô)» (Jo 20, 29a). Todos estes “veres” assinalados em 3) denotam um ver que começou e continua e transforma a vida.

7. É neste ver continuado, testificado, testemunhado, que dá para uma fé igualmente continuada, testificada, testemunhada, que se vai enxertar o nosso olhar e a nossa fé. Mas acompanhemos as peripécias do texto, até ele se dirigir a nós:

«24Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles, quando veio Jesus. 25Diziam-lhe então os outros discípulos: “Vimos (heôrákamen: perf. do verbo horáô) o Senhor!” Ele, porém, disse-lhes: “Se eu não vir (mê ídô: conj. aor2 de horáô) nas suas mãos a marca dos cravos e não meter o meu dedo na marca dos cravos e não meter a minha mão no seu lado, não acreditarei”. 26Oito dias depois, estavam outra vez no interior os seus discípulos, e Tomé com eles.

Vem Jesus, estando as portas fechadas, e ficou de pé no meio deles, e disse: “A paz convosco!”. 27Depois diz a Tomé: “Traz aqui o teu dedo, e (íde: imper. aor2 de horáô) as minhas mãos, e traz a tua mão, e mete-a no meu lado, e não sejas incrédulo, mas crente”. 28Respondeu Tomé e disse-lhe: “Meu Senhor e meu Deus!” 29Diz-lhe Jesus: “Porque me viste (heôrakás me: perf. de horáô), acreditaste (pepísteukas: perf. de pisteúô).

Felizes os que não tendo visto (mê idóntes: part. aor2 de horáô), acreditaram (pisteúsantes: part. aor. de pisteúô)”» (Jo 20, 24-29).

8. Face ao olhar a transbordar de Jesus (tempo perfeito) dos outros dez discípulos, que perante Tomé repetidamente afirmam: «Vimos (heôrákamen: perf. de horáô) o Senhor!» (Jo 20, 25a), Tomé (aramaico Toma’), chamado Gémeo (Dídymos: tradução literal, em grego, do aramaico Toma’ [= «Gémeo»]), que não estava com eles quando veio Jesus, responde que não recolhe nada desse olhar, e que quer ver com os seus próprios olhos (tempo aoristo) e inspecionar com os seus meios essa realidade nova. Eis as suas palavras: «Se eu não vir (ídô: conj. aor2 de horáô) com os meus olhos (tempo aoristo) nas suas mãos a marca dos cravos, e não meter o meu dedo na marca dos cravos e não meter a minha mão no seu lado, não acreditarei» (Jo 20, 25b).

9. Como sempre, Jesus toma a dianteira, vem com as portas fechadas, não já como expressão do medo, já antes dissipado, mas para que Tomé veja bem a nova condição do Ressuscitado (v. 26b), e dirige-se logo a Tomé, convidando-o à verificação nos moldes adiantados por Tomé (tempo aoristo) (v. 27), retirando, todavia, «a marca dos cravos» e «meter o dedo na marca dos cravos»: não se trata de fazer uma autópsia a um cadáver, mas de ver o Ressuscitado! Tomé, vendo a nova condição do Ressuscitado, para quem nenhuma porta está fechada, e sentindo-se adivinhado, desvendado e desarmado, rendeu-se (v. 28), desistiu de tirar as suas medidas, e adiantou uma das mais belas profissões de fé de toda a Escritura: «Meu Senhor e meu Deus!» (Jo 20, 28), e Jesus confirma a reviravolta operada em Tomé, que viu e continua ver, acreditou e continua a acreditar (tempo perfeito) (v. 29a). É aqui e agora que Jesus se mete connosco, declarando-nos felizes (makárioi), porque não vimos no tempo da nossa história (mê idóntes: part. aoristo segundo forte), mas acreditámos no tempo da nossa história (pisteúsantes: part. aoristo) (v. 29b), certamente enxertando o nosso olhar no olhar daqueles que viram e continuam a ver e deram testemunho e continuam a dar, saindo dos esconderijos da dor e do medo e da descrença para o átrio luminoso da Fé para sempre aberto pelo Ressuscitado, fonte permanente de uma Alegria nova.

10. Notável o percurso dos Discípulos. Fechados e com medo, viram Jesus entrar e ficar no meio deles, sem que as portas e as paredes constituíssem obstáculo. Trocaram o medo pela alegria, e também eles começaram a ver de forma continuada o Senhor e a dizê-lo repetidamente. Notável e exemplar para nós o percurso de Tomé, chamado Gémeo: não estava com a comunidade, tão-pouco aceitou o seu testemunho; queria provas. Mas quando veio Jesus e o adivinhou, precedendo-o e presidindo-o, entregou-se completamente! Tomé, chamado Gémeo! Irmão gémeo! Irmão gémeo de quem? Meu e teu, assim pretende o narrador. De vez em quando, também nós não estamos com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. Por vezes, também duvidamos e queremos provas. Como Tomé, chamado Gémeo. Salta à vista que também devemos estar com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. E professar convictamente a nossa fé no Ressuscitado que nos preside (no meio ) e nos precede sempre. Como Tomé, chamado Gémeo.

D. António Couto
Bispo de Lamego