· Cidade do Vaticano ·

Reflexão litúrgico-pastoral Para o domingo iv da Quaresma

Ver a Luz da vida

 Ver a Luz da vida  POR-010
07 março 2024

Com o olhar cada vez mais fixo na Cruz Gloriosa, em que foi entronizada a Luz que dá a Vida verdadeira, batizados e catecúmenos continuam a sua «caminhada» quaresmal: memória do batismo [= execução do programa filial batismal] para os batizados, preparação para o batismo por parte dos catecúmenos (Sacrosanctum concilium, n. 109), que têm neste iv Domingo da Quaresma os seus segundos «escrutínios»: segunda «cha-mada» para a Liberdade.

2. O Evangelho deste Domingo iv da Quaresma (Jo 3, 14-21) expõe a toda a luz o «Filho do Homem, que deve (deî) ser levantado (hypsôthênai: aor. inf. passivo de hypsóô), para que todo o que acredita nele (ho pisteúôn en autô) tenha a vida eterna (zôê aiônios)» (Jo 3, 15). Vê-se perfeitamente que Jesus está a expor diante dos olhos de Nicodemos e dos nossos, a Cruz Santa e Gloriosa em que Ele próprio, o Senhor da Vida, será crucificado, que o mesmo é dizer, na linguagem joanina, exaltado e glorificado. Note-se a presença da mão de Deus, quer na necessidade teológica, expressa naquele deî, que reclama o plano divino, quer na forma passiva utilizada na ação deste levantamento. Também é importante a comparação explícita que o próprio Jesus faz do seu levantamento com a ação de Moisés: «Assim como Moisés levantou (hýpsôsen: aor. de hypsóô) a cobra no deserto, assim deve (deî) ser levantado o Filho do Homem» (Jo 3, 14). E não podemos também perder de vista que, com este dizer, Jesus se assume como o verdadeiro Servo do Senhor, de Isaías, que «será exaltado» (hypsóô) por Deus (Is 52, 13), e se apresenta a si mesmo como transparência de Deus: «Quando tiverdes levantado (hypsóô) o Filho do Homem, então sabereis que “Eu Sou” (egô eimi: título divino), e que por mim mesmo nada faço, mas como me ensinou o Pai estas coisas falo (laléô)» (Jo 8, 28). Paulo também dirá, na Carta aos Filipenses, acerca deste Jesus, que Deus o «sobreexaltou» (hyperhypsóô) (Fl 2, 9).

3. Notemos, antes de mais, que o levantamento de Jesus, na Cruz, é em ordem a dar a vida eterna (zôê aiônios) a todos os que creem (Jo 3, 15-16). É por isso que Jesus diz: «Quando eu for levantado (hypsóô) da terra, arrastarei (hélkô) todos a mim» (Jo 12, 32). E ainda: «Hão de olhar para aquele que trespassaram» (Jo 19, 37). Na verdade, para ter a Vida verdadeira, é necessario ver [= acreditar] o Filho (Jo 3, 36; 6, 40), Luz da Luz, que brilha sobre a Cruz, novo e último candelabro do amor de Deus (At 2, 36). Ver o Filho é obra do Espírito Santo em nós (1 Cor 12, 3). Para o ver é necessário ter nascido da água e do Espírito (Jo 3, 5), isto é, do alto e de outra maneira (ánôthen) (Jo 3, 3).

4. Quanto à força daquele arrasto operado por Jesus, continua Jesus a ensinar-nos, em outra lição, que também pode ser levado a cabo pelo Pai: «Ninguém pode vir a mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (hélkô)» (Jo 6, 44). Vê-se bem, por debaixo do falar de Jesus, o teclado do Antigo Testamento, nomeadamente Jr 31, 3 [38,3 lxx ], que refere textualmente, pondo Deus a falar: «Com um amor eterno Eu te amei; por isso te arrastei (mashak tm ; hélkô lxx ) com carinho (hesed tm ; oiktírêmôn lxx )». É demasiado pobre não reparar nisto. É demasiado belo reparar nisto. Há neste amor de Deus por nós uma paixão declarada, força ou coação que o verbo arrastar traduz bem. Mas a expressão completa é: «arrastar com carinho». Entendamos então que, se Deus nos der a graça e o dom do entendimento — e dá porque partilha connosco a sua omnisciência, criando-nos livres, inteligentes e responsáveis — entendamos então que Deus luta por nós, arrasta-nos tantas vezes, mas sempre com carinho! Mas que também nós, se fomos criados livres, inteligentes e responsáveis, não podemos simplesmente permanecer de braços caídos... Sinal maior do que todos os sinais: é tal o nosso valor aos olhos de Deus, que Ele entregou o seu Filho por amor de nós! Tomar consciência desta realidade, e vivê-la, constitui um estupendo programa quaresmal!

5. Ver o Filho do Homem levantado na Cruz é ver passar dois filmes: 1) o da nossa violência e malvadez, postas a descoberto naquele rosto desfigurado, naquelas chagas abertas, naquele sangue a escorrer ou já coalhado: está ali, bem diante de nós e às claras, a imagem do pecado que está escondido em nós; 2) passa ali também o filme do imenso amor de Deus, que não faz frente à minha violência, mas a abraça. Sendo Deus amor, então a única maneira que Ele tem de curar o meu pecado, não é decretar, lá do alto e de dentro das paredes douradas da sua eternidade, uma qualquer amnistia. A única maneira que Deus tem de me curar é descer ao meu mundo, viver no meu mundo, caminhar comigo, sujeitar-se às minhas maldades e tropelias, sofrê-las e absorvê-las. É só assim, desarmado e só amando, que Ele pode dissolver e absolver o pecado que há em mim. «Deus amou tanto o mundo» (Jo 3, 16). A cura não é mágica. Levantada e exibida bem diante dos nossos olhos, naquele rosto desfigurado e naquele sangue a escorrer, a imagem da violência, mentira, ódios, dentro de nós escondida, mas agora declarada, conhecemos agora a doença de que padecemos. Podemos, portanto, começar a tratar-nos. E o remédio também está ali exposto bem diante dos nossos olhos: é aquele amor e perdão subversivos!

6. Toda a atenção é necessária: a Cruz não é o nosso pecado. É a imagem do nosso pecado! O pecado, que está em nós, produziu aquela imagem a sangrar. Sim, está ali a imagem da nossa violência e estupidez. Vendo a imagem, podemos ver o pecado, o mal que há em nós, habitualmente escondido e dissimulado. A Cruz também não é o amor de Deus. É a imagem do Amor de Deus! A Cruz revela o mundo e revela Deus!

7. Se olharmos agora para o texto do Livro dos Números 21, 4-9, tudo fica claro. O pecado camuflava-se nos interstícios do coração do povo de Israel no deserto. O resultado era a murmuração contra Deus e contra Moisés, o não reconhecimento da ação libertadora de Deus no Êxodo e o desprezo do alimento dado por Deus, o maná, causa de fastio, e não de maravilha (Nm 21, 5). Como corrigir, com boa pedagogia, esta situação? Aí estão as cobras (nehashîm) venenosas, que mordem e matam (Nm 21, 6). A cobra é, por excelência, imagem do pecado. Esconde-se e dissimula-se como o pecado. E o veneno que transporta, igualmente dissimulado, conduz à morte, tal como o pecado. A cobra, como o pecado, anda dentro de nós, dissimulada nas pregas do nosso esclerosado coração. É sintomático que o Livro do Génesis 3,14 refira que a cobra se alimenta de pó (ʽaphar). De pó (ʽaphar), do «pó da terra» (ʽaphar mîn-ha ’adamah) foi modelado o homem (Gn 2, 7). Os animais não foram modelados do pó da terra, mas apenas «da terra» (mîn-ha ’adamah) (Gn 2,19). Salta então à vista que a cobra se alimenta de nós. É um parasita perigoso. Como o pecado.

8. Moisés expõe num poste uma cobra de bronze. Quem olhar para ela, fica curado (Nm 21,8-9). Não, não se trata de nenhuma operação de magia, mas, outra vez, do realismo bíblico. Note-se também, antes de mais, que não era uma cobra que Moisés fixava no poste, mas a imagem de uma cobra. Olhar bem para a imagem da cobra leva-nos a descobrir a cobra verdadeira que se dissimula dentro de nós, o veneno que transportamos, que nos mata e mata os nossos irmãos. Feito o diagnóstico, reconhecido o mal de que padecemos, podemos então iniciar o processo da cura. É neste ponto preciso que a boa pedagogia de Jesus em João 3,14 nos leva a ver bem o Filho do Homem levantado como Moisés levantou a cobra no deserto!

*Bispo de Lamego

D. António Couto *