· Cidade do Vaticano ·

Entrevista ao núncio apostólico em Kyiv Dom Visvaldas Kulbokas

«Vemos a morte na cara mas continuamos a esperar»

FILE PHOTO: Rescuers work at a site of a residential building heavily damaged during a Russian ...
29 fevereiro 2024

Omedo contínuo e também a fé à qual agarrar-se. A «graça» de poder respirar de vez em quando e o cansaço de estar sempre de mangas arregaçadas, à escuta daqueles que não conseguem «compreender como se pode começar algo assim no século xxi ». Contrastes abismais de dois anos de guerra, movendo-se num mundo colapsado e extenuado, até como bispo, de quase não poder falar com quantos não partilham este drama, como se vivêssemos «em mundos diferentes». O núncio apostólico na Ucrânia, D. Visvaldas Kulbokas, expõe aos meios de comunicação do Vaticano o mosaico de sentimentos, necessidades e dores de um país que sobrevive há dois anos, apesar do luto e da destruição, dentro de um túnel onde, neste momento, a luz da paz é invisível.

Dois anos após o início da agressão russa, qual é a situação real na Ucrânia?

Obviamente, a situação é de grande sofrimento. Há vários milhares de prisioneiros que vivem, aliás, sobrevivem muitas vezes em condições desumanas, pelo menos segundo os relatos daqueles que voltaram para casa. Todas as manhãs começo a minha oração em união com eles e com as crianças separadas dos seus pais ou tutores legais, porque sei que vivem no inferno e, salvo raras exceções, não há modo de os ajudar. Há aqueles que vivem nas regiões próximas da linha da frente, na maioria pessoas idosas ou pobres, que não se atrevem ou não têm a força física para procurar a sorte noutro lugar. Além disso, dependem totalmente das ajudas humanitárias, incluindo água e pão. E há toda uma rede de sacerdotes, agentes da caridade e voluntários, comprometidos na criação de uma rede logística de transportes, às vezes ao longo de milhares de quilómetros. Há milhões de jovens de todas as regiões orientais, Kharkiv, Dnipro, Poltava, Zaporizhia, Kherson, que não conseguem ir à escola desde o início da pandemia de Covid, ou seja, no máximo podem estudar online há quatro anos. Em certas cidades, foram construídas escolas subterrâneas, protegidas contra os frequentes bombardeamentos. Depois, há os colaboradores locais da nossa Nunciatura apostólica em Kyiv, dos quais todos os dias nunca sei se poderão vir trabalhar ou não, porque durante os frequentes alertas de ataques aéreos permanecem bloqueados durante horas consecutivas no lugar onde se encontram. Eu próprio tenho dificuldade em falar prolongadamente com pessoas que não tiveram a mesma experiência: a impressão é que vivemos em mundos separados, onde as prioridades são completamente diferentes. Para não falar dos mortos e mutilados de guerra, dos milhões de deslocados e refugiados.

Que notícias tem sobre a vida nas áreas de conflito, em Kyiv e nas regiões mais ocidentais do país?

Aqueles que vivem em cidades próximas da linha da frente, como Kherson e também Kharkiv, estão habituados a fitar a morte diretamente nos olhos. Neste sentido, Kyiv está numa situação mais favorável, pois os ataques de mísseis e drones não se verificam todos os dias, além de ter o “privilégio” de dispor de um sistema de proteção antiaérea mais robusto. Ter um momento de descanso, mesmo que seja em dias alternados, é uma graça! Mas, mais perto da frente, as pessoas passam o menos tempo possível nas ruas, só para ir à igreja, arranjar comida e outras necessidades urgentes. Há alguns dias, perguntei a um presbítero católico em Kherson: “De que tens mais saudades?”. Respondeu: “Sinto falta de ter pelo menos algumas horas de silêncio, para passear com calma e dormir”.

O que mais o impressiona nas narrações daqueles que regressam da frente?

Fiquei repetidamente impressionado com o que alguns soldados me contaram sobre a vida de oração e sobre a fé durante os momentos mais enfurecedores na frente. Aqui, é preciso especificar quem são os militares: hoje todos são militares, do professor universitário ao especialista em novas tecnologias, do artista de teatro ao empresário. Alguns deles demonstram uma fé que serve de estímulo até para mim. Ouvi mais do que uma vez um testemunho deste tipo: “Durante todo o tempo, sob o bombardeamento, na trincheira ou no contra-ataque, eu rezava continuamente e sentia Jesus ao meu lado. As balas e as minas assobiavam e explodiam por toda a parte, mas eu sobrevivi”. Outra categoria de narrações que me impressiona é a dos ex-prisioneiros, desde que ainda sejam psicologicamente capazes de comunicar com as pessoas. Aqui, abstenho-me de contar os seus testemunhos, porque são indizíveis e porque penso que é preferível que sejam eles próprios a narrá-los, quando puderem.

Vê algum vislumbre de uma possível solução diplomática para pôr fim ao atual conflito?

Ficaria feliz se me enganasse, mas hoje, pessoalmente, não vejo qualquer vislumbre. Mas com a graça de Deus, tudo pode mudar num instante, por isso a nossa confiança no Senhor misericordioso, quando rezamos, deve ser mais plena possível. Em todo o caso, é preciso realçar que as tentativas mais persistentes neste campo vêm daquela categoria de países e organizações internacionais que não se identificam totalmente com nenhum dos lados.

Que papel desempenharam e desempenham as Igrejas no apoio à população?

O apoio das Igrejas é extremamente importante do ponto de vista espiritual. Uma guerra tão feroz suscita a incredulidade entre as pessoas, porque não se compreende como algo assim pode começar no século xxi . O aspeto espiritual é particularmente realçado pelos soldados na frente e pelos prisioneiros de guerra: para eles, a oração é quase o único vestígio de esperança. Por isso, muitos pedem às Igrejas uma mediação nas questões humanitárias. É preciso ouvir as pessoas, quando elas não compreendem como é possível que as Igrejas e a Santa Sé em particular não conseguem alcançar os resultados desejados com as respetivas iniciativas. Muitas pessoas partem da convicção de que “bastaria uma palavra do Santo Padre” para resolver as dificuldades. Ao contrário, no diálogo com estas pessoas, procura-se deixar claro que nunca se pode ter a certeza de que certas iniciativas humanitárias darão frutos imediatos.

Outro campo de ação das Igrejas é evidentemente o da ajuda humanitária, tanto para a população das áreas próximas da linha da frente como para os feridos e deslocados. Tanto as instituições da Santa Sé, por iniciativa da Esmolaria pontifícia e do Dicastério para o serviço do desenvolvimento humano integral, como as Organizações internacionais de caridade e as Igrejas locais, católicas e não católicas, já trabalham neste campo.

Outro importante âmbito de ajuda é relativo à infância: também conheço pessoalmente muitas paróquias que providenciam os próprios abrigos antiaéreos para os infantários, a fim de que eles possam funcionar de acordo com as normas atuais. Depois, a Caritas, as Eparquias e as Dioceses promovem frequentemente projetos destinados a ajudar os jovens e as famílias, bem como a prestar assistência médica e psicológica.

Com necessidades tão grandes e numerosas, as possibilidades das Igrejas dependem diretamente dos recursos do seu pessoal. Às vezes vejo alguns bispos que distribuem pessoalmente ajudas e alimentos, não por uma questão de visibilidade, mas simplesmente porque não há mãos suficientes para tudo.

Alessandro De Carolis