· Cidade do Vaticano ·

Jesus, “lugar” da adoração de Deus

 Jesus, “lugar” da adoração de Deus  POR-009
29 fevereiro 2024

No programa de «preparação» para a Noite Pascal Batismal, início e meta da vida cristã, o Domingo iii da Quaresma está marcado pelos primeiros «escrutínios» para os catecúmenos: primeira «chamada» para a liberdade.

2. O texto do Evangelho deste Domingo iii da Quaresma constitui uma importante passagem no tecido do iv Evangelho (Jo 2, 13-25). Jesus apresenta-se como tempo novo e Templo novo, novo espaço relacional, caminho novo aberto para o pai , nova paginação e compreensão das Escrituras. Tratando-se de um texto refinado, e para facilitar a compreensão das suas dinâmicas e conteúdos, optámos por transcrever o texto, ao mesmo tempo que mostramos o seu movimento interno e a sua estrutura quiástica: da Páscoa dos judeus ( a ) à Páscoa de Jesus ( a’ ), do Templo antigo ( b ) ao Santuário novo ( b’ ), tendo no meio o caminho da memória que começam a fazer os discípulos de Jesus ( c ), como podemos constatar no texto a seguir transcrito:

«E estava próxima a Páscoa dos judeus, e jesus subiu a Jerusalém ( a ).

E encontrou no templo (hierón) os vendedores de bois e ovelhas e pombas, e os cambistas sentados. E, tendo feito um chicote de cordas, expulsou todos do templo (hierón), as ovelhas e os bois, bem como os cambistas, espalhou as moedas, derrubou as mesas, e disse aos que vendiam as pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da casa do meu pai (oíkos toû patrós mou) casa de comércio (oíkos emporíou)” ( b ).

Recordaram-se os discípulos d’ ele que está escrito: “O zelo da tua casa (toû oíkou sou) me devorará” ( c ).

Responderam então os judeus e disseram-lhe: “Que sinal nos mostras de que podes fazer estas coisas?”. Respondeu jesus e disse-lhes: “Destruí este santuário (naós), e em três dias o levantarei (egeírô)”. Disseram então os judeus: “Em quarenta e seis anos foi edificado este santuário (naós), e tu em três dias o levantarás (egeírô)?” ( b’ ).

Isto, porém, dizia do santuário do seu corpo (toû naoû toû sômatos autoû). Quando, pois, foi ressuscitado dos mortos (êgérthê), recordaram-se os discípulos d’ ele que tinha dito isto, e acreditaram na Escritura e na palavra que jesus tinha dito» (Jo 2, 13-22) ( a’ ).

3. O episódio aparece situado e datado. O lugar é Jerusalém e o seu Templo. O tempo é a Festa da Páscoa. Ora, uma Festa é, na tradição bíblica, um encontro marcado (mô‘ed), plural mô‘adîm, de ya‘ad [= marcar um encontro]. Um encontro marcado com Deus e com os outros. Sendo um encontro marcado com Deus e com os outros, então é sempre um espaço de alegria, de filialidade e de fraternidade. E se a Festa é de Peregrinação, como é a Festa da páscoa , aqui referida [as outras duas são as semanas ou pentecostes e as tendas], então a alegria, a filialidade e a fraternidade são ainda mais intensas, dado que Festa de Peregrinação se diz, na língua hebraica, hag, plural hagîm. E o nome hag remete para o verbo hag [= dançar], e deriva de hûg, que significa “círculo” e, portanto, família, lareira, encontro, alegria, música, roda, dança, vida. A caraterística fundamental destas Festas de Peregrinação é a alegria. Recomenda o Livro do Deuteronómio: «Por ocasião da tua Festa de Peregrinação (hag), alegrar-te-ás tu, o teu filho, a tua filha, o teu escravo, a tua escrava, o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva que vivem nas tuas cidades» (Dt 16, 14).

4. encontro , filialidade, fraternidade: marcas acentuadas por jesus que, em vez de Templo de pedra (hierón), diz casa (oíkos) — com particular afeto, casa do meu pai — sendo a casa paterna o lugar do encontro e da intimidade, e não das coisas, da superficialidade, da banalidade, do consumismo, do mercado. Nos paralelos de Mateus, Marcos e Lucas, citando Isaías 56, 7, jesus fala do Templo usando a expressão forte « a minha casa » (ho oîkós mou) (Mt 21, 13; Mc 11, 17; Lc 19, 46).

5. É neste sentido que o Livro dos Atos dos Apóstolos nos mostra a comunidade-mãe de Jerusalém a frequentar assiduamente o Templo, salientando, no entanto, que a sua maneira de prestar culto a Deus acontecia nas casas . Do Templo para as casas (At 2, 46). Não se trata de uma simples mudança de lugar, mas de uma diferente conceção do espaço: não se trata de um espaço local, mas relacional. O novo espaço cultual é a comunidade que vive filial e fraternalmente, verdadeira transparência de Jesus. A extensão deste espaço chama-se comunhão.

6. Sintomático é que, postos estes pressupostos, o texto refira, não que jesus encontrou filhos e irmãos, mas que encontrou vendedores, banqueiros e comerciantes, contra a profecia de Zacarias 14, 21, que refere que «não haverá mais vendedor na casa de yhwh dos exércitos naquele dia». « a casa do me pai », « a minha casa », por um lado, e o mercado , por outro lado, são lugares incompatíveis. São maneiras diferentes de conceber e ocupar o espaço.

7. No texto que estamos cuidadosamente a ler, o Templo é dito com três vocábulos diferentes — hierón, oíkos e naós — com significações diferentes: edifício de pedra, casa familiar, santuário (ou lugar da presença de Deus).

8. Quando, num dos típicos “mal-entendidos” do iv Evangelho, jesus diz: «Destruí este santuário (naós), e em três dias o levantarei (egeírô)» (Jo 2, 19), os judeus não conseguem distinguir entre o naós pessoal que jesus levantará em três dias e o hierón feito de pedra que demorou 46 anos a construir (Jo 2, 20). Em claro contraponto, o narrador explica bem, num genitivo epexegético, que jesus «dizia isto do santuário do seu corpo» (toû naoû toû sômatos autoû) (Jo 2, 21), isto é, do santuário que é o seu corpo. Com esta explicação do narrador, fica claro que é jesus o «lugar» da adoração de Deus, a verdadeira «Casa de Deus» (cf. Jo 1, 51), o santuário de Deus.

9. A anotação do narrador, em Jo 2, 22, faz-nos ver ainda que foi também assim que entenderam os discípulos a partir da Ressurreição de Jesus. Lição para os leitores: num tempo em que já não há Templo em Jerusalém, os leitores crentes do iv Evangelho experimentam a presença de jesus Ressuscitado como o seu verdadeiro «Templo». E assim nós também.

*Bispo de Lamego

D. António Couto *