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«Fiducia supplicans» bênçãos não litúrgicas e a distinção de Ratzinger

 «Fiducia supplicans»  bênçãos não litúrgicas  e a distinção de Ratzinger  POR-009
29 fevereiro 2024

Adeclaração Fiducia supplicans, publicada pelo Dicastério para a doutrina da fé em dezembro passado, como se sabe e como foi bem destacado por muitos, não muda a doutrina tradicional sobre o matrimónio que prevê a bênção nupcial apenas para o homem e a mulher que se casam. O que é aprofundado pelo documento, que admite a possibilidade de simples bênçãos espontâneas também para casais irregulares ou compostos por pessoas do mesmo sexo, sem que isto signifique abençoar a sua união ou aprovar a sua conduta de vida, é ao contrário a natureza das bênçãos. Fiducia supplicans distingue, efetivamente, entre as bênçãos litúrgicas ou rituais e as espontâneas ou pastorais. Relativamente às primeiras, as bênçãos litúrgicas, existem dois modos de as entender. Há um sentido lato, que considera “litúrgica” cada oração recitada por um ministro ordenado, mesmo que seja feita sem uma forma ritual e sem obedecer a um texto oficial. E há um sentido mais restrito, segundo o qual uma prece ou invocação sobre o povo só é “litúrgica” quando é proferida “ritualmente”, e mais precisamente quando se baseia num texto aprovado pela autoridade eclesiástica.

Alguns dos críticos que questionaram a recente declaração, com efeito, só consideram admissível o sentido lato e, portanto, não julgam aceitável a distinção entre orações ou bênçãos “rituais” e “litúrgicas”, e orações ou bênçãos “pastorais” e “espontâneas”. Por exemplo, há quem argumente que a liturgia tem também uma relevância pastoral. Mas, a tal propósito, é bom observar que Fiducia supplicans atribui à palavra “pastoral” um sentido peculiar: isto é, o sentido de uma solicitude particularmente dirigida ao acompanhamento de quem recebe a bênção; à imagem do “bom pastor” que não descansa enquanto não encontra cada um dos que se tresmalharam. Outros alegam que todas as orações seriam “litúrgicas” e, portanto, todas estariam sujeitas ao que é exigido pela liturgia da Igreja. A esta objeção respondeu o próprio Papa Francisco, no discurso que dirigiu aos participantes na assembleia plenária do Dicastério para a doutrina da fé, a 26 de janeiro, insistindo sobre a existência de bênçãos pastorais ou espontâneas que, «fora de qualquer contexto e forma litúrgica», explicou, «não exigem a perfeição moral para serem recebidas». Portanto, as palavras do Pontífice confirmam a orientação a considerar o sentido mais estrito para as bênçãos litúrgicas.

Um precedente importante, no que diz respeito à distinção entre o que é litúrgico e o que não é, pode ser encontrado numa instrução do ano 2000, publicada pela então Congregação para a doutrina da fé, assinada pelo cardeal Joseph Ratzinger e aprovada por João Paulo ii .

https://www.vatican.va/roman_ curia /congregations/cfaith/documents /rc_con_cfaith_doc_20001123_istruzione_it.html

O objeto dessa instrução são as preces para obter de Deus a cura. No ponto número 2 da primeira parte do documento, recorda-se que «no De benedictionibus do Rituale Romanum, existe um Ordo benedictionis infirmorum, que contém vários textos eucológicos com a imploração da cura». Na parte final da instrução, dedicada às disposições disciplinares, há depois um artigo (2) que declara: «As orações de cura qualificam-se como litúrgicas, se estiverem incluídas nos livros litúrgicos aprovados pela autoridade competente da Igreja; caso contrário, são não litúrgicas». Assim, afirma-se que há orações de cura litúrgicas ou rituais, e outras que não o são, mas que são legitimamente admitidas. O artigo seguinte recorda que «as litúrgicas são celebradas segundo o rito prescrito e com os paramentos sagrados indicados no Ordo benedictionis infirmorum do Rituale Romanum». Estas citações do texto assinado por Ratzinger e aprovado pelo Papa Wojtyła revelam como o significado do termo “litúrgico” usado em Fiducia supplicans para definir as bênçãos rituais, diferentes das pastorais, representa certamente uma novidade, mas que está em sintonia com o magistério das últimas décadas.

Entre as bênçãos existem ainda outras distinções: algumas representam consagrações, ou seja, o selo do sacramento celebrado pelos noivos (no caso da bênção nupcial); outras representam preces de invocação que se elevam a Deus a partir de baixo; outras ainda (no caso dos exorcismos) têm por finalidade afastar o mal. Fiducia supplicans esclarece reiteradamente que a concessão de uma bênção pastoral ou espontânea — sem qualquer elemento nupcial — a um casal “irregular” que se aproxima de um sacerdote ou diácono não significa nem pode representar de modo algum uma forma de aprovação da união entre os dois. No documento afirma-se que não pode ser considerada «uma legitimação moral para uma união que se presume ser um casamento», nem «para uma prática sexual extraconjugal». Pelo contrário, o significado é o de uma invocação a Deus a fim de que permita que as sementes do bem cresçam na direção que Ele deseja.

Andrea Tornielli