«Um regresso ao essencial, a entrar em si mesmo, deixando de lado a mundanidade»: eis o convite que o Papa Francisco dirigiu no início do tempo quaresmal, na tarde de 14 de fevereiro, quarta-feira de Cinzas, renovando no Aventino a antiga tradição romana das “stationes”, que vê o itinerário quaresmal cadenciado pelas estações de oração nas igrejas do centro histórico, onde se conserva a memória dos mártires. Precedentemente, na igreja de Santo Anselmo, teve lugar a liturgia “estacional”, seguida pela procissão penitencial até à basílica de Santa Sabina, onde o bispo de Roma presidiu à liturgia eucarística com a bênção e a imposição das cinzas. A seguir, a homilia do Pontífice.
Quando deres esmola, quando rezares, quando jejuares, procura fazê-lo em segredo: o teu Pai, de facto, vê no segredo (cf. Mt 6, 4). Entra no segredo: este é o convite que Jesus dirige a cada um de nós no início do caminho da Quaresma.
Entrar no segredo significa voltar ao coração, como adverte o profeta Joel (cf. Jl 2, 12). Trata-se de um percurso de fora para dentro, a fim de que todo o nosso viver, incluindo a nossa relação com Deus, não se reduza a exterioridade, a uma moldura sem quadro, a mero revestimento da alma, mas brote de dentro e corresponda aos movimentos do coração, isto é, aos nossos desejos, aos nossos pensamentos, ao nosso sentir, ao núcleo fontal da nossa pessoa.
Deste modo a Quaresma mergulha-nos num banho de purificação e despojamento: ajuda-nos a retirar toda a “maquilhagem”, tudo aquilo de que nos revestimos para brilhar, para aparecer melhores do que somos. Voltar ao coração significa tornar ao nosso verdadeiro eu e apresentá-lo nu e sem disfarces, como é diante de Deus. Significa olhar dentro de nós mesmos e tomar consciência daquilo que somos realmente, tirando as máscaras que muitas vezes utilizamos, diminuindo a corrida do nosso frenesim, abraçando a vida e a verdade de nós mesmos. A vida não é um teatro, e a Quaresma convida-nos a descer do palco do fingimento e regressar ao coração, à verdade daquilo que somos. Regressar ao coração, regressar à verdade.
Por isso nesta tarde recebemos, com espírito de oração e humildade, as cinzas na cabeça. Trata-se de um gesto que visa reconduzir-nos à realidade essencial de nós mesmos: somos pó, a nossa vida é como um sopro (cf. Sl 39, 6; 144, 4), mas o Senhor — Ele, e só Ele! Não outros... — não deixa que ela desapareça; recolhe e plasma o pó que somos, para que não acabe disperso pelos ventos impetuosos da vida nem se dissolva no abismo da morte.
As cinzas postas sobre a nossa cabeça convidam-nos a redescobrir o segredo da vida. Dizem-nos: enquanto continuares a usar uma armadura que cobre o coração, enquanto te disfarçares com a máscara das aparências, a exibir uma luz artificial para te mostrares invencível, permanecerás árido e vazio. Pelo contrário, quando tiveres a coragem de inclinar a cabeça para te olhares intimamente, então poderás descobrir a presença de um Deus que te ama, e te ama desde sempre; finalmente despedaçar-se-ão as couraças de que te revestiste e poderás sentir-te amado com amor eterno.
Irmã, irmão, eu, tu, cada um de nós, todos somos amados com amor eterno. Não passamos de cinza sobre a qual Deus insuflou o seu sopro de vida, somos terra que Ele plasmou com as suas mãos (cf. Gn 2, 7; Sl 119, 73), somos pó do qual ressurgiremos para uma vida sem fim, desde sempre preparada para nós (cf. Is 26, 19). E se arder, sob as cinzas que somos, o fogo do amor de Deus, descobriremos que somos empastados deste amor e chamados ao amor: amar os irmãos que nos rodeiam, estar atento aos outros, viver a compaixão, usar de misericórdia, partilhar aquilo que somos e temos com quem passa necessidade. Por isso, a esmola, a oração e o jejum não se podem reduzir a práticas exteriores, mas são caminhos que nos levam de volta ao coração, ao essencial da vida cristã. Fazem-nos descobrir que somos cinza amada por Deus e tornam-nos capazes de difundir o mesmo amor sobre as “cinzas” de tantas situações quotidianas para que nelas renasçam esperança, confiança, alegria.
Santo Anselmo de Aosta deixou-nos a seguinte exortação, que podemos fazer nossa nesta tarde: «Escapa por um pouco das tuas ocupações, deixa por um pouco os teus pensamentos tumultuosos. Neste momento, afasta as preocupações graves e deixa de lado as tuas canseiras. Presta um pouco de atenção a Deus e descansa n’Ele. Entra no íntimo da tua alma, exclui tudo à exceção de Deus e daquilo que te ajuda a procurá-lo e, fechada a porta, procura-o. Ó meu coração, agora com toda a tua força, diz a Deus: procuro o vosso rosto. O vosso rosto, Senhor, eu procuro» (Proslógion, 1).
Nesta Quaresma, escutemos a voz do Senhor que não se cansa de nos repetir: entra no segredo. Entra no segredo, volta ao coração. É um convite salutar, para nós que muitas vezes vivemos à superfície, que nos agitamos para ser notados, que sempre temos necessidade de ser admirados e apreciados. Sem nos dar conta, já não temos um lugar secreto onde parar e nos protegermos, imersos num mundo onde tudo, incluindo as mais íntimas emoções e sentimentos, se deve tornar “social”. Mas como pode ser social aquilo que não brota do coração? Mesmo as experiências mais trágicas e dolorosas correm o risco de não ter um lugar secreto que as guarde: tudo deve ser manifestado, ostentado, dado em pasto à coscuvilhice da hora. Por isso nos diz o Senhor: entra no segredo, volta ao centro de ti mesmo. Aí onde se abrigam também tantos medos, sentimentos de culpa e pecados, precisamente aí desceu o Senhor; desceu para te curar e purificar. Entremos no nosso quarto interior: aí habita o Senhor, é acolhida a nossa fragilidade e somos amados sem condições.
Voltemos, irmãos e irmãs! Voltemos para Deus com todo o coração. Nestas semanas de Quaresma, demos espaço à oração feita de adoração silenciosa, na qual permaneçamos na presença do Senhor à escuta como Moisés, Elias, Maria, como Jesus. Já nos demos conta de ter perdido o sentido da adoração? Voltemos à adoração. Inclinemos o ouvido do coração Àquele que, no silêncio, nos quer dizer: «Eu sou o teu Deus, Deus de misericórdia e compaixão, o Deus do perdão e do amor, o Deus da ternura e da solicitude. (...) Não te julgues a ti mesmo. Não te condenes. Não sintas aversão de ti. Deixa que o meu amor toque os recônditos mais profundos e escondidos do teu coração e te revele a tua própria beleza; uma beleza que perdeste de vista, mas que se te vai tornar novamente visível na luz da minha misericórdia». O Senhor chama-nos: «Vem, vem! Permite-me enxugar as tuas lágrimas, deixa que a minha boca se aproxime mais do teu ouvido e te diga: Eu te amo, te amo, te amo» ( H. Nouwen , A caminho da aurora, Brescia 1997, 233). Cremos nós que o Senhor nos ama, que o Senhor me ama?
Irmãos e irmãos, não tenhamos medo de nos despojar dos revestimentos mundanos e voltar ao coração, regressar ao essencial. Pensemos em São Francisco que, uma vez despido, abraçou com todo o seu ser o Pai que está nos céus. Reconheçamo-nos pelo que somos: pó amado por Deus, chamado a ser pó apaixonado por Deus. Graças a Ele, renasceremos das cinzas do pecado para a vida nova em Jesus Cristo e no Espírito Santo!