· Cidade do Vaticano ·

Prefácio do Papa Francisco ao novo livro de Austen Ivereigh

Pertencer a Deus Os retiros espirituais não são férias de “bem-estar”

 Pertencer a Deus  Os retiros espirituais não são férias de “bem-estar”  POR-007
15 fevereiro 2024

First Belong to Good – On retreat with Pope Francis (Primeiro pertencer a Deus — Em retiro com o Papa Francisco) é o título do novo livro do jornalista e autor britânico Austen Ivereigh, que apresenta meditações do jesuíta Jorge Mario Bergoglio sobre retiros que pregou no passado e os seus ensinamentos como Pontífice sobre os exercícios inacianos. Publicado pela LoyolaPress (Chicago 2024, pp. 240), o livro é uma espécie de guia espiritual que acompanha o leitor seguindo o tradicional programa de oito dias segundo o método do fundador da Companhia de Jesus. Publicamos a nossa tradução do prefácio escrito pelo próprio Papa Francisco.

Através da própria experiência de vida, Santo Inácio de Loyola compreendeu com grande clareza que cada cristão trava uma batalha que define a sua vida. É uma luta para vencer a tentação de nos fecharmos em nós mesmos, para que o amor do Pai possa habitar em nós. Quando damos espaço ao Senhor que nos resgata da nossa autossuficiência, abrimo-nos a toda a criação e a todas as criaturas. Tornamo-nos canais da vida e do amor do Pai. E só então somos capazes de compreender realmente o que é a vida: um dom do Pai que nos ama profundamente e quer que pertençamos a Ele e uns aos outros.

Esta batalha já foi ganha para nós por Jesus, através da sua morte ignominiosa na cruz e da sua ressurreição. Desta forma, o Pai revelou-nos de uma vez por todas que o seu amor é mais forte do que todos os poderes deste mundo. No entanto, abraçar e tornar real essa vitória continua a ser uma luta: continuamos a ser tentados a fechar-nos a essa graça, a viver de forma mundana, na ilusão de sermos autónomos e autossuficientes. Todas estas crises que ameaçam a vida e nos afligem em todo o mundo, desde a crise ecológica às guerras, às injustiças para com os pobres e vulneráveis, têm as suas raízes nesta recusa de pertencer a Deus e uns aos outros.

A Igreja ajuda-nos de muitas maneiras a lutar contra esta tentação. As suas tradições e ensinamentos, as práticas da oração e da confissão e a celebração regular da Eucaristia são “canais de graça” que nos abrem para receber os dons que o Pai quer derramar sobre nós.

Entre estas tradições encontram-se os retiros espirituais e, dentro deles, os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola.

Devido às pressões e ao stress constante de uma sociedade obsessivamente competitiva, os retiros para “recarregar as baterias” tornaram-se bastante populares. Mas um retiro cristão é muito diferente de umas férias de “bem-estar”. O foco não está em nós, mas em Deus, o Bom Pastor que, em vez de nos tratar como máquinas, responde às nossas necessidades mais profundas como seus filhos amados.

O retiro é um momento em que o Criador fala diretamente às suas criaturas, inflamando as nossas almas com “o seu amor e o seu louvor” para que possamos “servi-lo melhor no futuro”, nas palavras de Santo Inácio ( es 15). Amor e serviço: estes são os dois grandes temas dos Exercícios espirituais. Jesus sai ao nosso encontro, quebrando as nossas correntes para que possamos caminhar com ele como seus discípulos e companheiros.

Quando penso nos frutos dos Exercícios, vejo Jesus a dizer ao paralítico da piscina de Bezatha: «Levanta-te, toma o teu catre e anda!» (Jo 5, 1-16). É uma ordem que deve ser cumprida, mas, ao mesmo tempo, é o seu convite mais suave e amoroso.

O homem estava interiormente paralisado. Sentia-se um fracassado num mundo de rivais e de concorrentes. Ressentido e amargurado com o que considerava que lhe tinha sido negado, estava preso na lógica da autossuficiência, convencido de que tudo dependia dele e apenas da sua força. E, porque os outros eram mais fortes e mais rápidos do que ele, caiu no desespero. E é precisamente aí que Jesus vai ao seu encontro com a sua misericórdia e o convida a sair de si mesmo. Uma vez aberto ao poder salvador de Jesus, a sua paralisia, tanto interior como exterior, é curada. Pode levantar-se e caminhar, louvando a Deus e trabalhando pelo seu Reino, libertado do mito da autossuficiência e aprendendo cada dia a depender mais da sua graça. Deste modo, o homem torna-se discípulo, capaz de enfrentar melhor não só os desafios deste mundo, mas também de desafiar o mundo a agir segundo a lógica do dom e do amor.

Como Papa, quis encorajar a nossa pertença “primeiro” a Deus e depois à criação e aos nossos irmãos e irmãs, especialmente aqueles que clamam por nós. Por isso, quis não perder de vista as duas grandes crises do nosso tempo: a deterioração da nossa casa comum e a migração e deslocação em massa das pessoas. Ambas são sintomas da “crise da não-pertença” descrita nestas páginas. Pela mesma razão, quis encorajar a Igreja a redescobrir o dom da sua tradição de sinodalidade, pois quando ela se abre ao Espírito que fala no Povo de Deus, toda a Igreja se levanta e caminha, louvando a Deus e contribuindo para a vinda do seu Reino.

Fico contente por ver como estes temas estão presentes em “First Belong to God”, ligados às contemplações de Santo Inácio que me moldaram ao longo dos anos. Austen Ivereigh fez um bom trabalho ao combinar as meditações dos retiros que preguei há muitas décadas e os meus ensinamentos como Pontífice. Ao fazê-lo, permite que ambos iluminem e sejam iluminados pelos Exercícios Espirituais de Santo Inácio.

Este não é o momento de nos fecharmos em nós próprios e de encerrar as nossas portas. Vejo claramente que o Senhor nos chama a sair de nós mesmos, a levantarmo-nos e a caminhar. Pede-nos que não desviemos o olhar dos sofrimentos e dos gritos do nosso tempo, mas que entremos neles, abrindo canais da sua graça. Cada um de nós é esse canal, em virtude do nosso batismo. O objetivo é abri-lo e mantê-lo aberto.

Que estes oito dias, nos quais desfrutareis do seu amor, vos ajudem a ouvir o apelo do Senhor para vos tornardes uma fonte de vida, de esperança e de graça para os outros, e assim descobrir a verdadeira alegria da vossa vida. Que possais encontrar esse magis de que fala Santo Inácio, esse “mais” que nos chama a descobrir as profundezas do amor de Deus ao darmo-nos mais.

E, por favor, sempre que vos lembrares, não vos esqueçais de rezar por mim, para que eu possa ajudar-nos a pertencer primeiro a Deus.