· Cidade do Vaticano ·

Releitura de «Éloge de l’esquive» de Olivier Guez

Garrincha
e a liberdade na dor

Torcedores durante Brasil x Coréia do Sul. Copa do Mundo 2022. Rua 4 atual rua Ivete Vargas, Nova ...
11 janeiro 2024

Manoel Francisco dos Santos, mais conhecido como Garrincha: começa com este grande campeão de futebol o breve ensaio Éloge de l’esquive, «Elogio do drible» de Olivier Guez, publicado na França há dez anos, em 2014. Pois Garrincha — Guez só o menciona com a sua alcunha — entendia de dribles. «O anjo de pernas tortas», como o definia o poeta da Bossa Nova Vinicius de Moraes (e como o demonstra a foto da capa), tinha uma habilidade para driblar o adversário que o transformou num dos maiores jogadores de futebol de todos os tempos.

Paradoxalmente, este insuperável herói do drible na lateral direita, onde as suas incursões literalmente faziam enlouquecer os adversários, «nos obstáculos da vida Garrincha, jogador de futebol dionisíaco, tropeçou: as mulheres, o álcool e o dinheiro que lançava da janela com total desprezo. Com o Maligno, o driblador perdeu todos os duelos, nunca procurou resistir-lhe». Guez fala destes duelos, mas com compaixão, não recrudesce a trágica vicissitude deste talento, incomensurável em tudo, mas limita-se a refletir sobre a sua arte requintada: o drible, feito de simulações, rotações, vaivéns, truques que hipnotizam o marcador até à desorientação e à humilhação.

Falar de Garrincha e dos seus dribles significa falar do Brasil, e assim, depois do primeiro capítulo, dedicado ao lateral-direito, passa-se a falar de outra coisa, ou seja, dado que o Brasil é um lugar onde «quando se fala de futebol, vê-se sempre mais longe, maior, exagera-se, extrapola-se, pensa-se no mundo e no homem em todos os seus excessos». Mas Garrincha reaparece sempre nestas páginas serpeantes, escritas em deferência ao seu estilo, de tal modo que até quando se fala da seleção do Brasil de há um século ou de hoje (ou seja, de há dez anos, seria curioso ler uma versão atualizada deste ensaio), fala-se destes «dribladores brasileiros, homens elásticos que acariciam a bola como se dançassem com a mulher mais linda do mundo. Cobiçam-na com o olhar, só têm olhos para ela, se a perdem procuram recuperá-la, seduzi-la para voltar a partir juntos e nunca a abandonar a outro pretendente».

Há muito erotismo neste breve “perfil” do espírito do Brasil, tal como se fala muito de dança, de crime, de música e de escravatura (abolida apenas em 1888), pois «os deslumbrantes dribladores são descendentes de escravos» e daquelas gerações singulares que são os escravos livres que (também) no Brasil, «são abandonados a si próprios, ao seu triste destino».

Tal como nos Estados Unidos, a almejada liberdade levou paradoxalmente à passagem da efervescente música gospel para a melancólica música blues, também no Brasil «a conquista da liberdade se alcança na dor, sem câmara de descompressão (...) os escravos não têm possibilidade alguma e muitos confluem para os grandes centros urbanos onde, distantes do seu ambiente e da sua família, muitas vezes analfabetos, são condenados ao Lumpenproletariat e à miséria». Daqui deriva um país dividido, a duas velocidades, com uma sociedade “alta”, eficiente e moderna, e outra que vive esmagada por uma burocracia sufocante e arbitrária, «um imenso engarrafamento onde é difícil orientar-se (...) Por isso, é preciso jogar com inteligência. No início do século xx surge a figura do malandro, personagem equívoco da cena carioca, negro ou mulato, astuto, hedonista e ocioso. (...) Só faz o que lhe apetece. Este filho de escravos não se revolta contra as regras, contorna-as, só obedece às suas próprias regras, mutáveis, para gozar da sua liberdade, dos seus prazeres, ignorando a ordem estabelecida. É o rei da astúcia». É o perfil preciso e perfeito de Garrincha, malandro do futebol e encarnação de um espírito (um dos muitos) do Brasil, consciente de que «o driblador e o malandro também podem enganar-se a si mesmos, permanecer prisioneiros dos próprios maus hábitos».

Retraçar a dramática parábola futebolística de Garrincha permite à pena de Guez, ágil, apaixonada e competente (o nosso autor joga futebol), narrar aquela histórica da sociedade brasileira do último século e meio, levantar questões, dúvidas, interrogações como um ensaísta, aquele que “experimenta”, saboreia o tecido de que a vida é feita, sabe e é chamado a fazer. Portanto, um livro para todos, pois todos estamos comprometidos no drible arriscado que é a vida, onde muitas vezes um jogo de corpo pode revelar-se precioso.

Andrea Monda