· Cidade do Vaticano ·

Um ano após o falecimento de Joseph Ratzinger — Bento xvi

Comprometer-se pela esperança e pelo futuro

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04 janeiro 2024

Um ano depois do falecimento de Bento xvi , o tema sobre o qual é justo e natural refletir é o seu legado. Trata-se de uma figura a confiar sobretudo aos mestres da leitura do passado, ou de uma figura que continua a interpelar todos nós, hoje, precisamente neste tempo dramático em que vivemos?

Não há dúvida de que ele é um mestre da fé. Não nos cansaremos tão cedo de reler a sua Introdução ao Cristianismo e a sua Trilogia sobre Jesus de Nazaré; os teólogos poderão aprofundar durante muito tempo a sua Opera Omnia, continuando a obter sugestões e orientações para a sua reflexão e investigação.

É claro que ele é também uma eminente testemunha da vida na fé — e da fé cristã na vida eterna — para quem o escutou nas suas homilias e no seu magistério espiritual, bem como para quantos o puderam conhecer de perto, seguindo o seu longo caminho interior até ao encontro com Deus.

Mas o que eu gostaria de observar agora é que Joseph Ratzinger continua a ser um companheiro precioso também para aqueles que vivem com participação e paixão as vicissitudes da vida e da história humana nesta terra, com todas as dramáticas interrogações que ela traz consigo hoje. Não podemos esconder que o caminho do nosso mundo, sob muitos aspetos, parece — e é — “incontrolável”. A crise ecológica, a contínua manifestação de riscos e desenvolvimentos dramáticos no campo do uso da técnica, da comunicação, das aplicações da chamada inteligência artificial e até as reivindicações de direitos contraditórios e a convulsão da convivência internacional, com a proliferação cada vez mais ameaçadora das guerras... Como bem frisou o professor Francesc Torralba ao receber o prémio Ratzinger no passado dia 30 de novembro, Bento xvi abordou em profundidade as razões da crise da nossa época, propondo à cultura contemporânea que não rejeite a razão moderna, mas amplie os seus horizontes, restituindo espaço à razão ética e à racionalidade da fé.

Portanto, a perspetiva de Joseph Ratzinger, perante os fracassos da razão humana, não era negá-la, limitá-la, mas alargá-la, convidá-la a procurar compreender corajosamente não só como funciona o mundo, mas também porque ele existe e qual é o lugar do homem no cosmos e o sentido da sua aventura.

Não se pode negar que esta perspetiva, que num certo sentido constitui uma proposta de diálogo com a cultura contemporânea, foi muitas vezes recebida com frieza ou, às vezes, rejeitada. O matemático Odifreddi, que se professa ateu e assume muitas vezes posições provocatórias, mas que procurou realmente dialogar com Ratzinger, recebendo dele uma atenção extraordinária e respeitosa nos anos que se seguiram à sua renúncia, qualificou o pontificado de Bento xvi como “trágico” precisamente por este aspeto: por um lado, a sua proposta cultural e a sua abertura e, por outro, a falta de resposta dos “homens de cultura”. Pessoalmente discordo, pois penso que Bento xvi não foi ingénuo a ponto de esperar uma resposta rápida e favorável. Pelo contrário, considero que a proposta de Bento xvi é clarividente, mantém toda a sua validade e representa, também para o futuro, um caminho para o diálogo entre ciência e fé, mais em geral entre cultura moderna e fé, com base numa profunda confiança na razão humana. Melhor ainda, que seja uma via de acesso para o compromisso cristão no mundo contemporâneo, que não pode evitar o esforço de reflexão sobre as causas dos problemas e sobre a procura de um consenso baseado na verdade, não na precária convergência contingente de interesses e utilidades.

Na visão cristã de Bento xvi , a ampliação da razão passa a abranger a lógica do amor, que se expressa na lógica da gratuidade e se traduz em fraternidade, solidariedade e reconciliação. A verdade e o amor manifestam-se de forma mais plena na encarnação do Logos, Palavra de Deus.

Deus caritas est, Caritas in veritate, Laudato si’, Fratelli tutti... As principais palavras dos dois últimos pontificados sucedem-se com continuidade e coerência. O compromisso da Igreja e dos cristãos e a sua responsabilidade pelo destino da história da humanidade no mundo exigem a razão e o amor, unidos na luz oferecida pela fé. Os gestos concretos de caridade, a que Francisco continuamente nos chama, pedem para ser inseridos no quadro luminoso e coerente da visão da Igreja como comunhão, a caminho, no nosso tempo, do encontro com Deus.

Falando do Concílio Vaticano ii , numa sua carta — importante e surpreendente para mim — escrita três meses antes da sua morte, por ocasião de um Simpósio organizado pela Fundação Ratzinger com a Franciscan University de Steubenville, Joseph Ratzinger afirmou com decisão que o Concílio se revelou «não só sensato, mas necessário» e acrescentou: «Pela primeira vez, a questão de uma teologia das religiões emergiu na sua radicalidade. E também o problema da relação da fé com o mundo da razão pura. Ambas as questões não tinham sido previstas». Assim, inicialmente, parecia que o Concílio ameaçava a Igreja, «entretanto, a necessidade de reformular a questão da natureza e da missão da Igreja tornou-se gradualmente evidente. Deste modo, a força positiva do Concílio emerge lentamente... No Vaticano ii , a questão da Igreja no mundo tornou-se finalmente a questão central».

O último Papa que participou em todo o Concílio e o viveu a partir de dentro deixa-nos assim um testemunho da sua atualidade duradoura e encoraja-nos a continuar a desenvolver sem medo as suas sementes e consequências, reformulando a própria missão da Igreja no mundo, comprometendo a razão e a fé a trabalhar juntas para o bem e a salvação da humanidade e do mundo. O olhar dirige-se para o futuro com esperança. O serviço de Bento xvi continua no movimento mais profundo da Igreja do Senhor, guiada por Francisco e pelos seus sucessores.

Federico Lombardi