· Cidade do Vaticano ·

A Declaração do Dicastério para a doutrina da fé

21 dezembro 2023

«Nemo venit nisi tractus», ninguém se aproxima de Jesus se não for atraído, escreveu Santo Agostinho parafraseando as palavras do Nazareno: «Ninguém vem a mim se meu Pai não o atrair». Na origem da atração por Jesus — aquela atração de que falava Bento xvi , lembrando o modo como a fé se difunde — está sempre a ação da graça. Deus precede-nos, chama-nos, atrai-nos sempre, faz-nos dar um passo em direção a Ele ou, pelo menos, acende em nós o desejo de dar esse passo, mesmo que ainda pareçamos não ter forças e nos sintamos paralisados.

O coração de um pastor não pode ficar indiferente às pessoas que se aproximam dele pedindo humildemente para serem abençoadas, seja qual for a sua condição, a sua história, o seu percurso de vida. O coração do pastor não apaga o brilho ardente daqueles que sentem a sua incompletude, sabendo que precisam de misericórdia e ajuda do Alto. O coração do pastor vislumbra nesse pedido de bênção uma brecha no muro, uma pequena fenda pela qual a graça já poderia estar em ação. Assim, a sua primeira preocupação não é fechar a pequena fenda, mas acolher e implorar bênçãos e misericórdia para que as pessoas à sua frente possam começar a entender o plano de Deus para a sua vida.

Essa consciência básica transparece na “Fiducia supplicans”, a Declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé sobre o significado das bênçãos, que abre a possibilidade de abençoar casais irregulares, até mesmo casais do mesmo sexo, esclarecendo claramente que a bênção, nesse caso, não significa aprovar as suas escolhas de vida, e também reiterando a necessidade de evitar qualquer ritualização ou outros elementos que possam, mesmo que remotamente, imitar um casamento. É um documento que aprofunda a doutrina sobre as bênçãos, distinguindo entre as que são rituais e litúrgicas e as que são espontâneas, que se caraterizam mais como ações de devoção ligadas à piedade popular. É um texto que concretiza, dez anos depois, as palavras escritas pelo Papa Francisco na “Evangelii gaudium”: «A Igreja não é uma alfândega, é a casa paterna onde há lugar para todos com sua vida fadigosa».

A origem da Declaração é evangélica. Em quase todas as páginas do Evangelho, Jesus interrompe tradições e prescrições religiosas, conformismos e convenções sociais. E ele faz gestos que escandalizam os bem-pensantes, os autodenominados “puros”, aqueles que se fazem escudo de normas e regras para afastar, rejeitar, fechar portas. Quase em todas as páginas do Evangelho, vemos os doutores da lei que procuram pôr o Mestre em dificuldade com perguntas tendenciosas, apenas para murmurar indignados diante da sua liberdade transbordante de misericórdia: «Ele acolhe os pecadores e come com eles»!

Jesus estava pronto para correr até à casa do centurião de Cafarnaum para curar o seu amado servo, sem a preocupação de se contaminar ao entrar na casa de um pagão. Ele permitiu que a pecadora lhe lavasse os pés diante dos olhares de julgamento e desprezo dos convidados, incapazes de entender por que Ele não a rejeitou. Observou e chamou o publicano Zaqueu enquanto ele se agarrava aos galhos do sicómoro, sem pretender que ele se convertesse e mudasse de vida antes de receber aquele olhar misericordioso.

Não condenou a adúltera que estava sujeita a ser apedrejada de acordo com a lei, mas desarmou as mãos de seus carrascos recordando-lhes que também eles — como todos — eram pecadores. Disse que tinha vindo para os doentes e não para os saudáveis, e comparou-se com a figura singular de um pastor disposto a deixar 99 ovelhas sem vigilância para ir à procura da única que se tinha tresmalhado. Tocou o leproso, curando-o da doença e do estigma de ser um pária “intocável”. Esses “rejeitados” encontraram o seu olhar e sentiram-se amados, destinatários de um abraço de misericórdia que lhes foi dado sem qualquer condição prévia. Ao descobrir-se amados e perdoados, eles perceberam o que eram: pobres pecadores como todos, necessitados de conversão, mendicantes de tudo.

Em fevereiro de 2015, aos novos cardeais o Papa Francisco disse: «Para Jesus, o que conta acima de tudo é alcançar e salvar os distantes, curar as feridas dos doentes, reintegrar todos na família de Deus. E isso escandaliza alguns! E Jesus não tem medo desse tipo de escândalo! Ele não pensa em pessoas fechadas que se escandalizam até com uma cura, que se escandalizam com qualquer abertura, com qualquer passo que não se encaixe nos seus esquemas mentais e espirituais, com qualquer carícia ou ternura que não corresponda aos seus hábitos de pensamento e à sua pureza ritualista».

A «perene doutrina católica sobre o matrimónio», ressalta a Declaração, não muda: somente no contexto do casamento entre um homem e uma mulher é que «as relações sexuais encontram o seu significado natural, adequado e plenamente humano». Portanto, é preciso evitar reconhecer como matrimónio «aquilo que não é». Mas, numa perspetiva pastoral e missionária, agora não é hora de fechar a porta a um casal “irregular” que venha pedir uma simples bênção, talvez numa visita a um santuário ou durante uma peregrinação. O estudioso judeu Claude Montefiore identificou a peculiaridade do cristianismo exatamente nisto: «Enquanto outras religiões descrevem o homem à procura de Deus, o cristianismo proclama um Deus que procura o homem... Jesus ensinou que Deus não espera pelo arrependimento do pecador, ele vai à sua procura para chamá-lo a si». A porta aberta de uma oração e de uma pequena bênção podem ser um começo, uma oportunidade, uma ajuda.

Andrea Tornielli