· Cidade do Vaticano ·

O legado de Bento XVI

Debates inacabados sobre fé
cultura e política

 Debates inacabados sobre fé  cultura e política  POR-049
07 dezembro 2023

«Benedict XVI’s Legacy: Unfinished Debates on Faith, Culture and Politics» (O legado de Bento xvi: debates inacabados sobre fé, cultura e política) foi o tema da conferência realizada na tarde de 29 de novembro, na Pontifícia Universidade Gregoriana. Promovida pela Fundação Vaticana Joseph Ratzinger — Bento xvi, pela mesma universidade, pelo De Nicola Center for Ethics and Culture da Universidade de Notre Dame em Indiana e pelo Institut Papst Benedikt xvi em Regensburg, a conferência é a primeira de uma série de encontros sobre o legado de Bento xvi, que envolverá um diálogo entre académicos de diferentes gerações e que terá lugar entre Roma e os Estados Unidos nos próximos meses. As intervenções foram introduzidas por Mark Lewis, reitor da Gregoriana, Federico Lombardi, presidente da Fundação Ratzinger, Christian Schaller, diretor do Institut Papst Benedikt xvi, e Margaret Cabaniss, do De Nicola Center. Seguiu-se a apresentação do projeto “Intergenerational dialogue on the Legacy of Benedict xvi” (Diálogo intergeracional sobre o legado de Bento xvi) por Jordi Pujol, da Pontifícia Universidade da Santa Cruz — que nos fez um resumo da sua intervenção — e Roberto Regoli, da Gregoriana.  De seguida, Mary Ann Glendon, professora da Universidade de Harvard, falou sobre «Human Rights. Speech at the United Nations (New York) April 18, 2008» (Direitos do Homem. Discurso nas Nações Unidas — Nova Iorque, 18 de abril de 2008), sobre o qual intervieram depois Jean-Pierre Schouppe, da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, e Laurent Trigeaud, da Universidade de Paris Panthéon-Assas, moderados por Justin Petrisek, do Centro De Nicola Center.


No decurso do seu pontificado, Bento xvi encetou um diálogo com os líderes políticos e culturais e com as principais instituições internacionais. Dirigiu-se a estas elites nos palcos dos parlamentos estatais, das Nações Unidas e das principais universidades. O referido diálogo consiste em seis discursos e uma carta, que abordam questões cruciais relativas aos debates políticos e culturais da sociedade contemporânea. Três desses discursos (Nova Iorque, Londres, Berlim) abordam aspetos políticos cruciais: o fundamento dos direitos humanos; reflexões sobre a tradição democrática liberal; o fundamento da justiça e o debate sobre o direito natural. Os outros três (Regensburg, Roma, Paris) abordam aspetos fundamentais do debate cultural: a relação entre fé e razão; a contribuição do cristianismo para a cultura; a autonomia da ciência e a sua relação com a fé. Por fim, a carta pastoral aos católicos na Irlanda representou um ponto de viragem na resposta da Igreja à crise dos abusos sexuais.

Embora os temas abordados, o público ao qual se dirigem e a forma e o momento em que foram redigidos sejam diferentes, podem ser relacionados de forma coerente e orgânica. Estes textos foram discutidos publicamente a partir de diferentes perspetivas, mas ainda precisam de ser devidamente examinados, pois podem oferecer muita luz ao debate intelectual.

A renúncia de Bento xvi ao ministério petrino ativo revelou o seu desapego ao exercício do poder. Os seus quase dez anos de retiro no mosteiro Mater Ecclesiae confirmam que ele próprio nunca esteve envolvido na política. Inseriu-se no mundo académico e fez parte do debate cultural de ideias. A sua abundante produção intelectual, mesmo durante o pontificado, corrobora esta tese, de tal forma que mereceu a alcunha de “Papa Professor”.

Podemos supor que no legado intelectual de Bento há uma ideia central que subjaz a todos estes debates, quer como diagnóstico, quer como solução: a centralidade da razão natural e da realidade como a verdadeira “autoridade” para orientar os debates culturais, jurídicos e políticos.

Desconstruir um preconceito contra a religião


Quando os católicos, ou a Igreja Católica enquanto organização, intervêm no debate público, o preconceito contra eles é que decidem ou atuam sob o filtro de uma autoridade religiosa. Isto foi objetado contra alguns católicos que ocupam cargos públicos: «O dogma vive forte dentro de si». Foi este o preconceito que a Senadora Feinstein repetiu nas audiências de confirmação de 2017 contra a Juíza Amy Coney Barrett: «Penso que no seu caso, Professora, quando lê os seus discursos, a conclusão a que chega é que o dogma vive forte dentro de si. E isso é preocupante». O preconceito traiu a Senadora Feinstein. Ter princípios morais pessoais é diferente de aderir ao dogma católico.

A proposta cristã não implica a imposição de uma moral sectária, mas o apelo a princípios racionais que fundamentam a dignidade de cada pessoa e regulam a convivência humana seguindo os caminhos da paz, da liberdade, da justiça e da promoção do bem comum. Os cristãos empenham-se civicamente, não como ativistas de uma causa facciosa, mas com uma agenda que inclui todos, promovendo um saudável pluralismo nas soluções concretas. Os cristãos na vida pública são construtores de diálogo e procuram pontos de encontro para promover o bem comum, ancorados numa identidade sólida e aberta.

Há um receio injustificado (é um preconceito) de que a autoridade religiosa possa competir com a autoridade civil na capacidade de produzir normas jurídicas ou de tomar decisões quando fiéis leigos ocupam cargos públicos: isto origina uma incompatibilidade entre as duas fontes de autoridade. Este preconceito mascara a negação de qualquer fonte de autoridade em nome do relativismo secular como uma garantia fictícia de diálogo. Falar de “religião na esfera pública” não equivale, como erradamente se pensa, a introduzir um princípio deísta no diálogo democrático, nem implica recorrer mecanicamente aos preceitos religiosos como fonte de regulação dos problemas sociais, políticos e jurídicos. Neste sentido, o cristianismo é uma religião universal aberta a todos e a todas as coisas. Uma religião que confia na razão e não vê oposição entre fé e razão, mas uma relação harmoniosa.

O apelo de Ratzinger a um despertar da razão


Como já foi referido, os católicos não são chamados a fechar-se atrás da autoridade católica, mas a interrogar-se e a discernir o que fazer, a escutar e a seguir a sua consciência bem formada. As razões oferecidas aos católicos na sua formação são universais e acessíveis a todos, pois provêm da natureza e são racionais, intimamente ligadas à realidade.

A razão aberta está disposta a admitir que a realidade contém mais em si mesma do que a própria razão pode compreender. Neste sentido, Bento xvi sugere a imagem do “bunker” e da “janela escancarada” que deixa entrar o ar fresco, como uma correção ao racionalismo moderno (ou a uma noção irracional da religião), que permite restabelecer uma relação correta entre razão e realidade. Uma razão positivista ou autossuficiente não é capaz de sair do pântano das incertezas.

Reabertura do debate


Se a sua morte pôs fim à atividade de Ratzinger, o mesmo não se pode dizer do seu magistério. A profundidade dos temas centrais para a nossa sociedade apresentados por Ratzinger e o convite que faz para abrir um debate público justificam a organização de vários eventos académicos que envolvem as gerações futuras.

O De Nicola Center for Ethics and Culture da Universidade de Notre Dame ( eua ) e a Fundação Ratzinger em Roma e o Instituto Bento xvi em Regensburg desejam iniciar este diálogo entre gerações sobre os grandes temas da sociedade contemporânea relacionados com a fé, a cultura e a política. Neste sentido, o pensamento de Bento, contido nestes sete textos, pode ser entendido como uma herança transmitida às novas gerações de intelectuais.

Jordi Pujol
Pontifícia Universidade da Santa Cruz