A justiça «é a virtude necessária para a construção de um mundo em que os conflitos só se resolvam pacificamente, sem que prevaleça o direito do mais forte, mas a força do direito», escreveu o Papa Francisco na mensagem enviada a 28 de novembro à assembleia das partes da Organização internacional do direito para o desenvolvimento ( idlo ), que teve lugar em Roma, na sede do Ministério italiano dos negócios estrangeiros e da cooperação internacional. Publicamos o texto pontifício, lido por monsenhor Fernando Chica Arellano, observador permanente da Santa Sé nas Organizações e Organismos das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura ( fao, fida e pam ).
Senhora Diretora-geral
Senhor Presidente
Excelências
Distintos Delegados
Senhoras e Senhores!
Foi com grande prazer que aceitei o convite que recebi da Senhora Diretora-geral, em nome da Organização Internacional do Direito para o Desenvolvimento ( idlo ), para me dirigir à Assembleia das Partes por ocasião do 40º aniversário da sua fundação. Desejo saudar cordialmente todos vós que participais neste significativo encontro, rezando a fim de que as vossas deliberações deem frutos que reforcem os laços entre os povos, preservem a nossa casa comum e tutelem os direitos de quantos veem lesada a própria dignidade.
Há quatro décadas que esta Instituição intergovernamental se dedica à promoção do estado de direito para avançar rumo à paz e ao desenvolvimento sustentável, encorajando várias iniciativas para garantir que a justiça seja acessível a todos, em particular às pessoas mais desfavorecidas da sociedade. A adesão ao princípio de igualdade perante a lei, a prevenção da arbitrariedade, o progresso da accountability e a garantia da transparência, a promoção da participação justa no processo decisório, a salvaguarda do princípio de segurança jurídica e o respeito pelo processo justo, tanto do ponto de vista substancial como processual, são valores e critérios indispensáveis que derivam do conceito geral de estado de direito e que, se atuados, têm o poder de conduzir à concretização da justiça. E, é bom lembrar, a justiça é a conditio sine qua non para alcançar a harmonia social e a fraternidade universal de que tanto precisamos hoje. É também a virtude necessária para a construção de um mundo no qual os conflitos se resolvam unicamente de maneira pacífica, sem que prevaleça o direito do mais forte, mas a força do direito.
Infelizmente, estamos longe de alcançar este objetivo. Na conjuntura complexa e difícil em que vivemos, marcada por graves crises interligadas, observam-se dolorosamente o aumento dos conflitos violentos, os efeitos cada vez mais nocivos das mudanças climáticas, da corrupção e da desigualdade. Por conseguinte, é mais urgente do que nunca promover uma justiça centrada nas pessoas, a fim de fortalecer sociedades pacíficas, justas e inclusivas.
O estado de direito nunca está sujeito à mínima exceção, nem sequer em tempos de crise. A razão é que o estado de direito está ao serviço da pessoa humana e visa proteger a sua dignidade, e isto não admite exceções. É um princípio. No entanto, não são apenas as crises que suscitam ameaças contra as liberdades e o estado de direito no seio das democracias. Com efeito, difunde-se cada vez mais uma noção errada da pessoa humana, que enfraquece a sua proteção e abre progressivamente a porta a graves abusos sob a aparência do bem.
Com efeito, só a lei pode constituir o requisito prévio indispensável para o exercício de qualquer poder, e isto significa que os órgãos governamentais responsáveis devem assegurar o respeito pelo estado de direito, independentemente dos interesses políticos predominantes. Quando a lei se baseia em valores universais, como o respeito pela pessoa humana e a tutela do bem comum, o estado de direito é forte, as pessoas têm acesso à justiça e as sociedades são mais estáveis e prósperas. Ao contrário, sem paz e justiça, nenhum dos desafios acima mencionados pode ser resolvido. Não esqueçamos que «tudo está interligado. Por isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, combinada com um amor sincero pelos seres humanos e um compromisso constante em relação aos problemas da sociedade» (Carta Encíclica Laudato si’, 91).
O estado de direito pode desempenhar um papel essencial na resolução das crises globais, renovando a confiança e a legitimidade da governação pública, combatendo as desigualdades, promovendo o bem-estar das pessoas, fomentando a salvaguarda dos seus direitos fundamentais, incentivando a sua participação adequada no processo decisório e facilitando o desenvolvimento de leis e políticas que satisfaçam as suas necessidades reais, contribuindo assim para a criação de um mundo no qual todos os seres humanos sejam tratados com dignidade e respeito.
Agradeço à idlo o seu empenho em progredir na justiça climática e melhorar a governação da terra e o uso sustentável dos recursos naturais. Também este é caminho para um mundo mais justo e pacífico.
As mudanças climáticas são uma questão de justiça intergeracional. A degradação do planeta não só impede uma convivência pacífica e harmoniosa no presente, como também compromete em grande medida o progresso integral das gerações vindouras. «Não há dúvida de que o impacto das mudanças climáticas prejudicará cada vez mais a vida de muitos indivíduos e famílias. Sentiremos os seus efeitos em termos de saúde, trabalho, acesso aos recursos, habitação, migração forçada e noutros âmbitos» (Exortação Apostólica Laudate Deum, 2). A justiça, os direitos humanos, a equidade e a igualdade estão intimamente ligados às causas e aos efeitos das mudanças climáticas. Aplicando uma abordagem de justiça à ação climática, podemos dar respostas holísticas, inclusivas e equitativas.
A corrupção corrói os próprios alicerces da sociedade. Subtraindo recursos e oportunidades aos mais necessitados, a corrupção exacerba as desigualdades existentes. Por isso, é necessário promover campanhas de sensibilização que incentivem maior transparência, responsabilidade e integridade em toda a parte, lançando assim bases sólidas para a construção de uma sociedade justa e virtuosa. É na primeira infância que são lançadas as sementes da integridade, da honestidade e da consciência moral, promovendo uma sociedade em que a corrupção não encontre terreno fértil para se enraizar.
Concluindo, é essencial continuar a tomar medidas para ir ao encontro dos mais pobres, marginalizados e vulneráveis, que muitas vezes não têm ninguém para falar em seu nome e se veem descartados e excluídos. Devemos garantir que ninguém seja deixado para trás, especialmente as mulheres, os povos indígenas e os jovens, que trabalham para garantir que as suas propostas encontrem espaço e voz no presente, para poder assim enfrentar o futuro com confiança.
Excelências, estou certo de que encontros como este servem para que, nos nossos dias, não deixem de se fortalecer sistemas judiciais que preservem o primado da dignidade da pessoa humana sobre qualquer outro tipo de interesse ou justificação. Nesta nobre causa, a Santa Sé — fiel à palavra de Cristo que disse: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça; bem-aventurados os pacificadores» (Mt 5, 6.9) — está ao lado de todos aqueles que se empenham por fortalecer o estado de direito, os direitos humanos e a justiça social, para que os seus esforços revelem novos caminhos de esperança rumo a um futuro mais solidário, justo e sereno para todas as nações da terra.
Vaticano, 28 de novembro de 2023.
Francisco