· Cidade do Vaticano ·

Reflexão litúrgico-pastoral Para o primeiro domingo de Advento

A realidade que não passa é a Palavra

 A realidade que não passa é a Palavra  POR-048
30 novembro 2023

«Para vós, Senhor, elevo a minha alma» (Sl 25, 1). É a antífona do Cântico de Entrada que inaugura a celebração eucarística do Advento, do ano litúrgico, do ano inteiro. Assinala a atitude a assumir pela assembleia fiel e orante: a oblação permanente, a oração constante. Extraordinário pórtico de entrada no Advento e no novo ano litúrgico. Belíssima forma de viver, elevando para Deus a nossa vida: a oração é a nossa vida! A nossa vida em ascensão e oração permanente, sacrifício de suave odor, incenso puro subindo para o nosso Deus. Sempre. O Evangelho dirá com a mesma energia e alegria: «Estai atentos», «vigiai», «não sabeis quando virá o dono da casa» (Mc 13, 33-37). Na verdade, nós não o podemos ver agora: é como um homem que se ausentou de casa e partiu de viagem e entregou tudo nas nossas mãos (Mc 13, 34), e nos dá tempo para trabalhar (Mc 13, 35), como tivemos oportunidade de ver nos Evangelhos dos últimos Domingos do Ano Litúrgico findo, nomeadamente na «parábola das dez virgens» (o noivo chega muito depois da hora) (cf. Mt 25, 5) e na «parábola dos talentos», em que o senhor daqueles servos volta muito tempo depois (cf. Mt 25, 19). Todavia, tudo o que possuímos foi dele que o recebemos (Mc 13, 34), e devemos permanecer atentos, porque ele pode regressar a qualquer momento. Portanto, vida levantada, rosto erguido para Deus. É o gesto do justo justificado por Deus (Jb 22, 26). Página em branco, Primeira e Última, que podemos apresentar a Deus neste início de Advento e de ano litúrgico. É de Deus a palavra e a escrita que não passa (Mc 13, 31).

2. A lição do Evangelho de hoje, primeiro Domingo do Advento, está tematicamente agrafada à lição dos últimos Domingos do Ano Litúrgico, reclamando de nós atenção, prontidão e vigilância. Oferece-nos os últimos cinco versículos do Capítulo 13 do Evangelho de Marcos (13, 33-37). Ao longo de todo o Capítulo 13, Jesus está sentado com quatro dos seus discípulos, por sinal os primeiros que chamou — Pedro e André, Tiago e João — no Monte das Oliveiras, a contemplar o majestoso Templo engrandecido e embelezado por Herodes o Grande. É para estes quatro discípulos que Jesus fala e, no seu discurso, aparece por quatro vezes a exortação «estai atentos», «vede bem» (blépete) (v. 5.9.23.33), que dá o tom ao inteiro Capítulo. Já no que se refere aos cinco versículos finais desse Capítulo 13, que constituem o Evangelho de hoje (v. 33-37), é o verbo «vigiar» que vem ao de cima, também repetido por quatro vezes (v. 33.34.35.37), sempre em imperativo: uma vez agrypneîte (agr-, negação, e hypnóô, dormir) (v. 33), e três vezes grêgoreîte (v. 34.35.37). No Getsémani, Jesus clarificará em que consiste esta «vigilância», pois aí dirá: «vigiai e orai» (Mc 14, 38), locução que também aparece em alguns importantes manuscritos de Marcos 13, 33. Aquela pequenina partícula «e» (kaí em grego) assume uma função epexegética ou explicativa importante, que é como quem diz, explicando, que «vigiar é orar». É por isso que são lembradas as quatro vigílias da noite no v. 35: anoitecer (21h00), meia-noite (24h00), cantar do galo (03h00), matinas (06h00). Vigiar sempre. Orar sempre. Como se vê, a noite aparece aqui dividida em quatro vigílias de três horas, à maneira romana, e não à maneira judaica, em que a noite era dividida em três vigílias de quatro horas. A anotação das vigílias à maneira romana pode ser um indicador de que Marcos e a sua audiência se ambientam bem em Roma, pois essa maneira de dizer era melhor compreendida na parte ocidental do Império.

3. Este Evangelho de Marcos foi, com certeza, escrito antes do ano 70, ano em que o Templo foi destruído às mãos de Vespasiano e Tito. Na verdade, este Capítulo 13 mostra que o Templo ainda está no seu lugar, sendo que os quatro discípulos de Jesus admiram a excelência daquelas pedras e o embelezamento do Templo feito por Herodes o Grande, com a intenção de captar as boas graças dos judeus. Na verdade, Herodes não era judeu, mas Idumeu, e estava naturalmente interessado em ter os judeus do seu lado, sem sobressaltos, e foi por isso que deu outra grandeza ao Templo, que era a menina dos olhos dos Judeus. Jesus adverte que aquele luxo passaria, e aproveita para lembrar que passará mesmo tudo, também as nossas seguranças (ou aquilo que pensamos estar seguro), sacudidas por guerras, violências, rapinas, perseguições, pelo normal andamento do tempo e da idade. Com a contundência que lhe é conhecida, diz-nos São Paulo que «passa, na verdade, a figura (tò schêma) deste mundo (toû kósmou toúto)» (1 Cor 7, 31), isto é, tendo em conta a força das palavras e a expressão gramatical de que se revestem, «a figura que passa (na tela) é este mundo». Sem equívocos: a realidade deste mundo é penúltima, não Última. Neste cenário passageiro, há, porém, uma realidade que não passa: a palavra de Jesus (Mc 13, 31). Salta à vista, portanto, que é a esta âncora que nos devemos agarrar, e não à poeira das nossas grandezas ilusórias! Este discurso de Jesus é dirigido aos quatro discípulos referidos. Mas o Evangelho de hoje termina com Jesus a dizer: «O que vos digo a vós, digo-o a todos!» (Mc 13, 37). Portanto, a nós, hoje, também.

*Bispo de Lamego

D. António Couto *