Com o pensamento voltado «para as vítimas das guerras» e para quantos «deixam a sua pátria arriscando a vida», para quem está «sem pão, sem trabalho e sem esperança», durante a missa do sétimo Dia mundial dos pobres, celebrada na basílica do Vaticano a 19 de novembro, xxxiii domingo do tempo comum, o Papa Francisco exortou todos a pôr «a caridade em circulação».
Três homens veem-se na posse de uma enorme riqueza, graças à generosidade do seu senhor, que está de saída para uma longa viagem. Um dia, porém, vai regressar e convocará aqueles servos, esperando poder alegrar-se com eles pela forma como entretanto fizeram render os seus bens. Assim, a parábola que ouvimos (cf. Mt 25, 14-30) convida-nos a deter-nos em dois percursos: a viagem de Jesus e a viagem da nossa vida.
A viagem de Jesus. No início da parábola, Ele fala de «um homem que, ao partir para fora, chamou os seus servos e confiou-lhes os seus bens» (25, 14). Esta viagem faz pensar no próprio mistério de Cristo, Deus feito homem, com a sua ressurreição e ascensão ao Céu. Com efeito, Ele que desceu do seio do Pai para vir ao encontro da humanidade, morrendo, destruiu a morte e, ressuscitando, retornou ao Pai. Assim Jesus, tendo terminado a sua existência terrena, realiza a “viagem de regresso” para junto do Pai. Mas, antes de partir, confiou-nos os seus bens, os seus talentos, um verdadeiro «capital»: deixou a Si mesmo na Eucaristia, a sua Palavra de vida, a sua santa Mãe como nossa Mãe, e distribuiu os dons do Espírito Santo para podermos continuar a sua obra no mundo. Tais “talentos” são concedidos «a cada qual — especifica o Evangelho — segundo a sua capacidade» (25, 15) e, naturalmente, para uma missão pessoal que o Senhor nos confia na vida quotidiana, na sociedade e na Igreja. O mesmo afirma o apóstolo Paulo: «A cada um de nós foi dada a graça, segundo a medida do dom de Cristo. Por isso se diz: ao subir às alturas, levou cativos em cativeiro, deu dádivas aos homens» (Ef 4, 7-8).
Mas, voltemos a fixar o olhar em Jesus, que recebeu tudo das mãos do Pai, mas não reteve para si esta riqueza, «não considerou um privilégio ser igual a Deus, mas esvaziou-se a Si mesmo, tomando a condição de servo» (Fl 2, 6-7). Revestiu-se da nossa frágil humanidade, cuidou como bom samaritano das nossas feridas, fez-se pobre para nos enriquecer com a vida divina (cf. 2 Cor 8, 9), subiu à cruz. A Ele, que não tinha pecado, «Deus o fez pecado por nós» (2 Cor 5, 21), em nosso favor. Jesus viveu em nosso favor. Foi isto que animou a sua viagem pelo mundo, antes de voltar ao Pai.
Mas a parábola de hoje diz-nos ainda que «voltou o senhor daqueles servos e pediu-lhes contas» (Mt 25, 19). Com efeito, à primeira viagem rumo ao Pai, seguir-se-á outra, que Jesus há de realizar no fim dos tempos, quando voltar na glória e quiser encontrar-nos de novo, para “fazer um balanço”, o balanço da história, e introduzir-nos na alegria da vida eterna. Por isso devemos perguntar-nos: como nos encontrará o Senhor, quando voltar? Como me apresentarei eu ao encontro com Ele?
Esta pergunta leva-nos ao segundo momento: à viagem da nossa vida. Que estrada estamos nós a percorrer na nossa vida: a de Jesus que se fez dom ou a estrada do egoísmo? A das mãos abertas para os outros, para dar e nos darmos, ou a das mãos fechadas para ter mais e cuidar apenas de nós mesmos? A parábola diz-nos que cada um de nós recebeu os “talentos”, segundo as próprias capacidades e possibilidades. Mas, atenção, não nos deixemos enganar pela linguagem habitual! Aqui não se trata das capacidades pessoais, mas — como dizíamos — dos bens do Senhor, daquilo que Cristo nos deixou ao regressar ao Pai. Com eles, deu-nos o seu Espírito, no qual nos tornamos filhos de Deus e graças ao qual podemos dedicar a nossa vida a dar testemunho do Evangelho e construir o Reino de Deus. O grande “capital”, que foi colocado nas nossas mãos, é o amor do Senhor, fundamento da nossa vida e força do nosso caminho.
Por isso devemos perguntar-nos: que faço eu de um dom tão grande ao longo da viagem da minha vida? A parábola diz-nos que os dois primeiros servos multiplicam o dom recebido, enquanto o terceiro, em vez de confiar no seu senhor, que lho dera, tem medo dele e fica como que paralisado, não arrisca, não se empenha, acabando por enterrar o talento. Isto aplica-se também a nós: podemos multiplicar o que recebemos, fazendo da vida uma oferta de amor pelos outros, ou então podemos viver bloqueados por uma falsa imagem de Deus e, com medo, esconder debaixo da terra o tesouro que recebemos, pensando só em nós mesmos, sem nos apaixonarmos por nada além das nossas comodidades e interesses, sem nos comprometermos. Ponhamo-nos uma pergunta, muito clara. Os dois primeiros, negociando com os talentos, arriscam; e eu pergunto-me: «Arrisco na minha vida? Arrisco com a força da minha fé? Como cristã, como cristão, sei arriscar ou fecho-me em mim próprio por medo ou por pusilanimidade?».
Pois bem, meus irmãos e irmãs! Neste Dia Mundial dos Pobres, a parábola dos talentos é uma advertência para verificar com que espírito estamos a enfrentar a viagem da vida. Recebemos do Senhor o dom do seu amor e somos chamados a tornar-nos dom para os outros. O amor com que Jesus cuidou de nós, o azeite da misericórdia e da compaixão com que tratou as nossas feridas, a chama do Espírito com que abriu os nossos corações à alegria e à esperança, são bens que não podemos guardar só para nós, administrar à nossa vontade ou esconder debaixo da terra. Cumulados de dons, somos chamados a fazer-nos dom. Nós que temos recebido tantos dons, devemos fazer-nos dom para os outros. As imagens usadas pela parábola são muito eloquentes: se não multiplicarmos o amor ao nosso redor, a vida some-se nas trevas; se não colocarmos em circulação os talentos recebidos, a existência acaba debaixo da terra, ou seja, como se já estivéssemos mortos (cf. 25, 25.30). Irmãos e irmãs, quantos cristãos subterrados! Quanto cristãos vivem a fé como se estivessem sob terra!
Por isso pensemos nas inúmeras pobrezas materiais, pobrezas culturais, pobrezas espirituais do nosso mundo; pensemos nas existências feridas que povoam as nossas cidades, nos pobres tornados invisíveis, cujo grito de dor é sufocado pela indiferença geral de uma sociedade atarefada e distraída... Depois, quando pensamos na pobreza, não devemos esquecer o pudor: a pobreza é pudica, esconde-se. Temos nós de ir procurá-la, com coragem. Pensemos em quantos estão oprimidos, cansados, marginalizados, nas vítimas das guerras e naqueles que deixam a sua terra arriscando a vida; naqueles que estão sem pão, sem trabalho e sem esperança. Tanta pobreza diária. E não se trata de um, dois ou três: são uma multidão; os pobres são uma multidão. E quando se pensa nesta multidão imensa de pobres, a mensagem do Evangelho resulta clara: não enterremos os bens do Senhor! Ponhamos em circulação a caridade, partilhemos o nosso pão, multipliquemos o amor! A pobreza é um escândalo. Sim, a pobreza é um escândalo. Quando o Senhor voltar, pedir-nos-á contas e — como escreve Santo Ambrósio — dir-nos-á: «Porquê tolerastes que tantos pobres morressem de fome, quando dispunhas de ouro com o qual obter alimento para lhes dar? Porquê tantos escravos foram vendidos e maltratados pelos inimigos, sem que ninguém fizesse nada para os resgatar?» (Os deveres dos ministros: pl 16, 148-149).
Rezemos para que cada um, segundo o dom recebido e a missão que lhe foi confiada, se comprometa a “pôr a render a caridade” — pôr a render a caridade — e a aproximar-se de qualquer pobre. Rezemos para que também nós, no termo da nossa viagem, depois de ter acolhido Cristo nestes irmãos e irmãs com quem Ele próprio se identificou (cf. Mt 25, 40), possamos ouvir dizer-nos: «Muito bem, servo bom e fiel (...). Entra no gozo do teu senhor» (Mt 25, 21).