· Cidade do Vaticano ·

Congresso promovido pelo Dicastério para as causas dos santos

A chamada de um povo
à santidade

 A chamada de um povo à santidade  POR-047
23 novembro 2023

«A santidade não é adesão estática a uma perfeição de vida moral, mas dinâmica de relação, experiência concreta e tangível da vida do próprio Deus», ressaltou o cardeal José Tolentino de Mendonça, prefeito do Dicastério para a cultura e a educação, na sua intervenção proferida na tarde de 13 de novembro, primeiro dia dos trabalhos do congresso sobre o tema «A dimensão comunitária da santidade», realizado no Instituto patrístico Augustinianum em Roma. Moderada por Alessandro Gisotti, vice-diretor do Dicastério para a comunicação, a primeira sessão foi introduzida pela saudação do cardeal Marcello Semeraro, prefeito do Dicastério para as causas dos santos, promotor dos trabalhos, que se concluíram no dia 16 com a audiência pontifícia no Vaticano.


A arquitetura do credo de fé, de que faz eco toda a tradição bíblica, assenta no conceito de santidade. «Deus é Santo» é a afirmação que percorre explícita e implicitamente a revelação judaico-cristã, tornando as duas alianças indivisíveis, como uma túnica sem costuras. Mas o que significa esta afirmação? Como a podemos ler? É importante dar-se conta da amplitude que carateriza o conceito de santidade de Deus, amplitude que é lexical e semântica, mas também teológica. Amplitude que pode ser um obstáculo à pesquisa, mas também um convite ao aprofundamento e à descoberta. De facto, esta vastidão que a modernidade declinou exasperadamente como «ambiguidade», para citar, por exemplo, o célebre ensaio de Émile Durkheim, As formas elementares da vida religiosa (1912), podemos também, e talvez devamos, lê-la como um excesso que se revela, um mistério que vem ao nosso encontro, encarando assim «a diferença e a alteridade de Deus não como distância intransponível [que] envolve uma aura misteriosa que fascina, mas bloqueia a procura».1 Deus, de facto, não só se declara Santo, mas diz: «Eu sou Santo no meio de ti» (Os 11, 9). E assim o Deus Santo torna-se acessível a todos, até àqueles que não o procuram, como exprime a afirmação profética: «Fiz-me procurar por aqueles que não me interrogavam, fiz-me encontrar por aqueles que não me procuravam. Disse: “Eis-me, eis-me” aos que não invocavam o meu nome» (Is 65, 1-2).

A alteridade de Deus


«No Antigo Testamento, qodesh (o sagrado) e hol (o profano) são conceitos cujos conteúdos se excluem mutuamente.2 Inscrita na semântica do sagrado e do profano está precisamente a ideia de separação, segundo a qual o sagrado, o santo, seria deliberadamente distinto do mundano que o rodeia, colocado num lugar à parte, entendido como de uma ordem qualitativa diferente. E é verdade que, se o adjetivo qadosh é utilizado na exposição bíblica para designar lugares cultualmente significativos, como o acampamento ou a assembleia do povo, ou é também utilizado para designar certas categorias como os sacerdotes e os levitas, trata-se de usos claramente subsidiários. O uso fundamental é aquele que serve para nomear o próprio Deus: «Eu sou o Senhor vosso Deus... Eu sou santo» (Lv 11, 44). A santidade é, antes de mais, uma prerrogativa de Deus. É por isso que se diz em Isaías que ele não é apenas santo: é trisagion, três vezes santo. «Santo, santo, santo é o Senhor» (Is 6, 3). Também a favor desta proclamação reservada exclusivamente a Deus está, por exemplo, a dramática inadequação experimentada pelo profeta perante a visão da santidade divina, naquela que é talvez uma das cenas mais majestosas de todo o Antigo Testamento. Isaías diz, como que num gemido: «Ai de mim! Estou perdido, porque sou um homem de lábios impuros, e habito no meio de um povo de impuros lábios» (Is 6, 5). O inegável sentido de perplexidade que ele experimenta expressa bem a diferença entre a santidade de Deus e o nosso mundo limitado e finito, ferido pela transitoriedade, marcado pela opacidade, degradação e impureza. A noção de santidade exprime assim a alteridade de Deus, a transcendência do seu Ser e do seu agir, a sua singularidade, o peso da sua glória. Ele é o radicalmente diferente do que sabemos, dizemos e podemos, e, com uma intensidade total, concentra em si «toda a realidade do sagrado».3 «Javé é o “mysterium tremendum et fascinans”, o Todo Outro, e a Bíblia exprime esta transcendência com a palavra “santo”».4 Com razão, na visão de Isaías (6, 2), os serafins cobrem o rosto com as asas. A divina é uma identidade que nos escapa. No entanto, será precisamente na compreensão orientada e progressiva da santidade de Deus que Israel se tornará o povo da Aliança, passando da prática do politeísmo à adoração de um só Deus, o Deus dos Pais, acolhendo o que o Senhor diz: «Ouve, ó Israel: o Senhor é o nosso Deus, o Senhor é único. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças» (Dt 6, 4-5).

Marcaram o último século, e deixaram sinais reconhecíveis na cultura contemporânea, as investigações de Rudolf Otto sobre o sagrado (1917), em que alguns textos fundamentais do Antigo Testamento — sobretudo os que descrevem a santidade de Deus em paralelo com o temor e a diferenciação que ela incute — são lidos como uma emergência perturbadora do não-racional ou como manifestações do inconsciente humano face ao «numinoso».5 Recentemente, o filósofo Giorgio Agamben chamou a atenção para as limitações da tese de Otto, afirmando que ela apenas acelera um «processo de psicologização da experiência religiosa». São palavras austeras mas instigantes as que Agamben escreve ao denunciar o atual reducionismo do facto religioso: «Aqui, uma teologia que tinha perdido toda a experiência da palavra revelada e uma filosofia que tinha abandonado toda a sobriedade perante o sentimento celebram a sua união num conceito de sagrado que agora coincide inteiramente com os do obscuro e do impenetrável».6 É de facto uma descrição depreciativa da santidade de Deus como um horizonte fechado, obscuro, inacessível. Decisiva para a fé bíblica é a constatação oposta, a saber, que Deus «é separado, porque está próximo, é escandaloso e totalmente outro, porque está “demasiado” dentro da paixão do mundo».7 Um mundo que Deus amou de tal modo (cf. Jo 3, 16) que não deixa de nos surpreender. É certo que a categoria da santidade exprime o que é exclusivo de Deus. Mas a originalidade do Deus bíblico é que exclusivo não significa excludente. Transcendente não significa incomunicável. O Deus que diz «Eu sou santo» é o mesmo Deus que garante «Eu santifico-te» (Lv 21, 8). Deus está verdadeiramente no meio dos seus, próximo da sua vida, falando-lhes numa língua que eles compreendem, passando pela sua história, fazendo do tempo do mundo outro templo. A santidade remete certamente para o mistério de Deus, esse enigma silencioso, denso e inabalável que envolve o seu Ser aos nossos olhos, mas faz-nos também pousar nesse grande abismo que é o seu desejo de revelação. «No ditado “sê santo” está comprometido o fundo tanto da “teodiceia” como da relação homem-Deus».8 A santidade é declinada ao mesmo tempo como categoria de alteridade e de relação.

Uma categoria de relação


Mesmo considerando a amplitude da terminologia bíblica, é evidente que a santidade não pode vir diretamente do homem, mas é o próprio ser de Deus que é partilhado, tornado acessível pela sua iniciativa, comparticipado pelo seu desígnio de amor. A santidade é essencial em Deus, que a torna assim um dom, um dom de Si mesmo. Deste ponto de vista, o conceito de santo «é sobretudo uma extensão da esfera do divino ao humano, e não o contrário».9 E a santidade de Deus é dinâmica, expansiva, projeta-se: onde quer que Deus se faça presente, esse lugar torna-se santo. A santidade de Israel é uma santidade derivada. E tal como, na prática da Antiga Aliança, os objetos se tornam santos porque são retirados do uso comum, os seres humanos são chamados a outro uso da sua existência, doravante entendida em termos de relação e de participação. Israel manifesta a sua santidade afastando-se do pecado, na fiel obediência à Lei da Aliança, mantendo-se reservado ao Senhor, como sua «propriedade entre todos os povos» (Ex 19, 5). São Leão Magno comenta que, quando Deus diz «sede santos, porque eu sou santo», é como se dissesse: «Escolhe-me e afasta-te do que não me agrada. Faz o que eu amo e ama o que eu faço».10 É de circularidade e de relação que estamos aqui a falar.

Leitura do texto de Levítico 19, 2


O capítulo 19 do Livro do Levítico, onde encontramos o versículo de que partimos para esta reflexão, ocupa um lugar-chave na estrutura global dessa obra, quase como se fosse o seu ponto de apoio e a sustentasse inteiramente. Há quem defenda que ele constitui o centro do Levítico, ou até de toda a Torá.11 Por exemplo, a sua relação literária e conceitual com o Decálogo da Aliança do Sinai é clara: não só os versículos 2b e 36b citam o preâmbulo do Decálogo (Ex 20, 2), mas também a afirmação «Eu sou Javé» é repetida dezasseis vezes ao longo do capítulo (três delas na forma «Eu sou Javé vosso Deus»). Uma tal meticulosidade literária e a requintada densidade teológica na sua construção tornam ainda mais decisivo o «sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo» (Lv 19, 2), e conferem-lhe um papel central no processo da Revelação. De facto, este mandamento é também uma síntese da Lei e dos Profetas. Partindo da sua formulação, creio que se podem sublinhar os seguintes elementos.

O primeiro tem a ver com os destinatários. Em todo o Levítico, esta é a única instrução que Moisés tem o encargo de transmitir à comunidade dos filhos de Israel. A forma introdutória mais habitual diz apenas: «Fala aos filhos de Israel» (Lv 18, 2). Aqui é consideravelmente alargada: «Fala a toda a congregação (edah) dos filhos de Israel». O povo aparece designado como uma assembleia geral, como coletivo comunitário, sob o sinal da aliança. «O termo edah (congregação) significa o momento em que todo o povo está reunido: homens, idosas, meninos, meninas, servos, etc...».12 São os filhos de Israel no seu conjunto, sem exceção, mas aqui chamados não apenas por uma designação étnica, mas por «uma designação propriamente cultual».13 Este facto é tanto mais curioso quanto, também em Lv 8, 3-5 ou, mais adiante, em Lv 21, 6, a santidade é uma condição reservada aos sacerdotes, devido ao seu papel que desempenham no culto. Em Lv 19, porém, não se faz qualquer distinção: o objeto do mandamento «sede santos» é todo o povo. Esta fórmula sublinha assim o carácter universal do chamamento de Deus à santidade. Como explica a Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen gentium: «aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse na verdade e O servisse santamente» (9). E este povo, que num primeiro momento se identifica com a comunidade de Israel, será mais tarde alargado a toda a humanidade, segundo o cântico novo entoado no Livro do Apocalipse: «Tu és digno de tomar o livro e de abrir os seus selos, porque foste imolado e resgataste para Deus com o teu sangue homens de todas as tribos, línguas, povos e nações, e fizeste deles para o nosso Deus um reino de sacerdotes» (Ap 5, 9-10).

A segunda observação tem a ver com o facto de Deus convocar uma assembleia de culto e, no entanto, contrariamente ao que se poderia esperar, o capítulo 19 não contém praticamente nenhuma norma sobre o culto. A parênese transmitida por Moisés, da parte de Deus, é fundamentalmente ética. Ela abre um culto que não se limita à dimensão dos rituais, que diríamos ser o domínio mais típico do sagrado. Como explica Maurice Gilbert, a santidade manifesta-se assim «num comportamento moral, muito próximo das exigências do Decálogo e denotando uma atenção especial aos pobres, aos migrantes, aos deficientes».14 E conclui: é como se o essencial da mensagem que encontramos na pregação dos profetas fosse retomado pela Lei da Santidade,15 o que constitui uma integração esclarecedora e rica de consequências. É evidente que a santidade não se limita ao plano ritual. E «a chamada à santidade só pode ser realizada quando a fidelidade a Deus é encarnada com igual paixão pelos mandamentos religiosos e éticos».16

O terceiro ponto tem a ver com a forma como este culto ético, para o qual todo o povo é convidado, ilumina a santidade do próprio Deus. Se o «sede santos» é declinado como um apelo concreto à solidariedade (diz-se, por exemplo: «Quando fizeres a ceifa da tua terra, não ceifarás até à extremidade do campo, nem recolherás o que restar da ceifa; quanto à tua vinha, não recolherás os ramos, nem colherás os bagos caídos: deixá-los-ás para o pobre e para o estrangeiro», vv. 9-10), à justiça («Não roubarás, nem usarás de engano ou falsidade em prejuízo do teu próximo», v. 11), à compaixão («Não amaldiçoarás o surdo, nem colocarás um tropeço ao cego», v. 14 ), à hospitalidade («Tratarás o estrangeiro que habita no meio de ti como aquele que nasceu no meio de ti», v. 34) ou à misericórdia («Não guardarás ódio no teu coração contra o teu irmão», v. 17; «Não guardarás rancor», v. 18), isto «leva-nos a pensar que a santidade de Deus é da mesma ordem».17 E, de facto, isto é-nos recordado quando se diz, quase no fim do capítulo 19: «Terás balanças justas, pesos justos, efa justa, hin justo. Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair da terra do Egito» (v. 36). Deus não se furta à equivalência, antes acentua voluntariamente um padrão simétrico. Ele mostra-se naquilo que quer ver em nós. Ele que nos criou à sua «imagem e semelhança» (Gn 1, 26). Ele espera de nós o que nós podemos esperar dele. Nisto consiste a santidade.

O quarto e último aspeto que gostaria de salientar está relacionado com a reverberação global deste apelo: «Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo» (Lv 19, 2). Tem, como dissemos, uma forte conotação ética, mas está longe de esgotar o seu sentido profundo. A santidade que Deus nos pede não é uma perfeição moral estática, mas é uma dinâmica viva (portanto pulsante, envolvente, livre e paradoxal) de relação, uma passagem misteriosa em que o eu dá lugar ao tu, ao para ti, ao através de ti. Deixar espaço significa descobrir-se como lugar de manifestação do outro; significa ir ao seu encontro; aceder a esse nomadismo sem fim que é o amor. Na declaração «sede santos» ressoa, antes de mais o «sede», magnífica forma verbal aberta, consumação poderosa e oblativa de um desejo que quer que o outro seja, um volo ut sis que o faz ser. E é impossível não notar como na fórmula «sede santos, porque eu sou santo» o tu vem antes do eu, porque o eu se retira delicadamente para se revelar no jogo dos dois pronomes: eu/vosso; eu sou vosso; porque eu sou vosso. O “porque”, que gramaticalmente é uma conjunção explicativa ou causal, desempenha exatamente o papel de testemunha de uma com-junção, mas no interior, naquele interior da tenda onde a amada implora ao amado que a leve (Ct 1, 4), naquele arrebatamento nupcial onde já não se sabe quem toma a iniciativa e quem a segue, porque o sulco se tornou um só, tal como numa fogueira as chamas se tornam indistintas. «Parce que c’était lui; parce que c’était moi», dizia Montaigne, e é basicamente tudo o que se pode dizer das razões da amizade, e o mesmo serve para iluminar a experiência da santidade, que possui, sem dúvida, uma dimensão cultual e ética, mas unicamente porque acede às razões da amizade. A santidade é apenas parcialmente visível de fora. É conhecimento, duração, intimidade e destino. Cresce na presença e na ausência, no tatear das palavras ou no silêncio penetrante, apesar do absurdo e através do absurdo, através da esperança e até «contra toda a esperança» (Rm 4, 18), num exercício de confiança que ultrapassa tudo. Por isso, «a injunção dirigida a Israel para ser santo não é apenas uma injunção entre outras. Ela contém em si todas as outras. É o princípio que justifica todas as outras e do qual todas as outras descendem».18 E só assim pode tornar-se, como escreveu o cardeal Martini, «uma experiência espiritual de santidade verdadeira, quotidiana, coral, do povo».19

Santos por vocação em Cristo Jesus


Nos escritos do apóstolo Paulo, a palavra “santo/santos” assume uma frequência, e ousaríamos dizer uma normalidade, quase chocante, mas sem dúvida, em todo o caso, altamente significativa. Os santos são genericamente os cristãos, os destinatários das comunidades a que Paulo se dirige, o povo dos chamados e reconfigurados em Cristo. Assim, na Carta aos Romanos, ele escreve: «Paulo, servo de Cristo Jesus, apóstolo por vocação [...] a todos os que estão em Roma, amados de Deus e santos por vocação» (Rm 1, 1.7). Ou na Primeira Carta aos Coríntios: «Paulo, chamado a ser apóstolo de Cristo Jesus pela vontade de Deus, e o irmão Sóstenes, à Igreja de Deus que está em Corinto, aos que foram santificados em Cristo Jesus, santos por vocação» (1 Cor 1, 1-2).

Em Paulo, o cristianismo começa com um chamamento que atua a uma autêntica recriação do povo dos crentes, através de dois elementos: um processo de assimilação radical que leva os batizados a viverem «por Cristo» (eis Christón) e, consequentemente, uma ética da transformação que os conduz, no fluxo da história, a ousarem viver uma vida nova e peculiar de batizados «em Cristo» (en Christō). O emergir de Cristo na vida do povo de Deus torna-se uma realidade tão transformadora que introduz uma verdadeira mudança de identidade. «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 16), confessa o Apóstolo. E, ao mesmo tempo, produz-se uma relativização de todas as coisas e de todas as fronteiras (tanto geográficas como étnicas, de género ou de cidadania), uma vez que a transformação cristológica inaugura uma «metamorfose de pertenças» sem precedentes, que não deixa a realidade tal como era:20 «Todos vós, que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, porque todos vós sois um só em Cristo Jesus» (Gl 3, 27-28). Revestida de Cristo, a comunidade crente constrói uma hermenêutica diferente e alargada da história.

A santidade é correr o risco de habitar fiel (e criativamente) no mundo a transformação operada por Cristo. É participar na santidade escondida e ao mesmo tempo revelada no acontecimento da sua ressurreição, sem a qual a vida, o amor, o conhecimento ou a fé são paixões inúteis. Significa assumir coletivamente esta novidade total, que só se torna possível por iniciativa de Deus, como gramática da existência e do destino, possível unicamente por iniciativa de Deus. Compreende-se, assim, como Paulo ousa qualificar de «nova criação (kainē ktisis)» (2 Cor 5, 17; Gl 6, 15) o que acontece ao Povo Santo de Deus: de facto, é assim que se exprime plasticamente a santidade trinitária que agora determina o seu modo de ser e de viver, o seu presente e o seu futuro.

O que é para Paulo uma vida de santidade? É a existência crente em construção; é a biografia singular de um, da outra e de uma comunidade que faz a opção de viver, em estado de processo, a plenitude e ao mesmo tempo a incompletude, o tesouro e o barro, a experiência e a esperança, o silêncio e a revelação de Deus. A santidade é concretamente, para Paulo, aceitar viver esta tensão (que é já plenitude, redenção efetiva) na consciência da fé, que é frágil, incompleta, inquieta, a caminho, e simultaneamente já realizada, já consumada, puro dom que Cristo nos oferece. Como professa Paulo na Carta aos Filipenses: «Não que eu já tenha conquistado o prémio ou chegado à perfeição; apenas me esforço por conquistá-lo, porque também eu fui conquistado por Jesus Cristo» (Fl 3, 12).

Para Paulo, o novo Povo de Deus (aquele que nasce como «um só» quando Cristo derruba «através da sua carne» «o muro de separação» e de inimizade, Ef 2, 14) está destinado a habitar este dom e esta exigência de conversão contínua, que o faz aprofundar cada vez mais a santidade, como Moisés que entrou no espetáculo da Sarça ardente (Ex 3, 4). A santidade não é uma condição de imobilidade: é descalçar os sapatos e entrar nesta mistura de confiança e de audácia para viver e depender de uma relação. É, sem dúvida, uma experiência mística, uma experiência integral que nos recria e refunda, que nos permite acolher o Espírito e nos torna portadores de Cristo como condição normal, comunitária, quotidiana, fraterna e comum. Sem esta passagem mística fundamental, não podemos compreender a santidade do povo dos crentes: aquela da qual Cristo, pelo Espírito, nos torna participantes, dando-nos a sua própria vida; aquela que é representada abrindo-nos e deixando-nos transfigurar, ressignificar, recriar, por este dom. O que acontece então não é uma comunhão vaga, uma união espiritual abstrata sem grandes consequências; ou um caminho moral, por mais elevado que seja; ou uma escola de pensamento; ou uma ideologia. Pelo contrário, é uma participação concreta, histórica, dramaticamente envolvida, incrivelmente tátil, espantosamente visível na própria vida de Deus, que nos constitui como povo da aliança, povo universal dos chamados. É à luz do mistério pascal de Cristo que podemos assim compreender o significado exato do mandamento bíblico: «Sede santos, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo» (Lv 19, 2).

José Tolentino de Mendonça


1 Carmelo dotolo , Dio, sorpresa per la storia. Per una teologia post-secolare (Brescia: Queriniana, 2020), 95.

2 W. Kornfeld, qds in Heinz-Josef fabry — Helmer ringgren , Grande Lessico dell’Antico Testamento (Brescia: Paideia, 2007), 837.

3. g. rinaldi , «Santi siate, perché santo sono io», in Bibbia e Oriente, Anno x , 4-5, 168.

4 Albert gelin , Les idées maîtresses de l’Ancien Testament (Paris: Cerf, 1948), 23.

5 Cf. Rudolf otto , Il sacro. Sull’irrazionale nell’idea del divino e il suo rapporto con il razionale (Brescia: Morcelliana, 2003).

6 Giorgio agamben , Homo sacer. Edição integral. 1995-2015 (Macerata: Quodlibet, 2018), 78.

7 Bruno forte , Le imperfezioni del Santo o l’altro nome della sua Alterità in Innocenzo gargano , Siate santi perché Io sono santo (Lv 19, 2), Atti del xxiii Colloquio ebraico-cristiano di Camaldoli (Villa Verucchio: Pazzini Editore, 2003), 24.

8 g. rinaldi , «Siate santi, perche santo sono io», 167.

9 Ibid., 179.

10 Sermão 94.2; citado em Joseph t. lienhard, s.j. (ed.), Ancient Christian Commentary on Scripture (Downers Grove, il : InterVarsity Press, 2001).

11 Cf. Alfred marx , Lévitique 17-27 (Genève: Labor et Fides, 2011), 81.

12 Alberto sermoneta , «Siate santi perché Io sono santo» (Lv 19, 2) in Innocenzo gargano , Siate santi perché Io sono santo (Lv 19, 2), Atti del xxiii Colloquio ebraico-cristiano di Camaldoli, 17.

13 Ibid., 79.

14 Maurice gilbert , Le sacré dans l’Ancient Testament in j. ries (ed.), L’expression du sacré dans les grandes religions (Louvain-la-Neuve: Centre d’histoire des religions, 1978), 253.

15 Ibid.

16 Samuel e. balantine , Leviticus (Louisville: John Knox Press, 2002), 160.

17 Ibid.

18 Alfred marx , Lévitique 17-27, 81.

19 Carlo Maria martini , Per una santità di popolo (Bolonha: Dehoniane, 1986), 25.

20 Cf. Pierre-Marie beaude , Saint Paul. L’oeuvre de métamorphose, Cerf, Paris 2011.