· Cidade do Vaticano ·

Graça do batismo, tradição e alfândegas clericais

16 novembro 2023

São Cipriano, bispo de Cartago, martirizado em 258, participando num sínodo de bispos africanos, observou: «Não se pode negar a misericórdia e a graça de Deus a qualquer homem que venha a existir». E Santo Agostinho escreveu: «As crianças são apresentadas para receber a graça espiritual, não tanto por aqueles que as carregam nos braços (embora também por eles, se forem bons crentes), mas pela sociedade universal dos santos e dos fiéis... É toda a Igreja-Mãe dos santos que atua, pois é ela que gera todos e cada um».

São duas afirmações dos Padres da Igreja que atestam a gratuidade absoluta do batismo, relativizando, de alguma forma, o papel dos pais e padrinhos («se forem bons crentes») que pedem o sacramento e apresentam a criança. São palavras que iluminam melhor do que outras a recente resposta do Dicastério para a doutrina da fé às perguntas de um bispo brasileiro sobre o batismo. A nota assinada pelo cardeal Victor Manuel Fernández e aprovada pelo Papa Francisco, mostra uma clara sintonia com o recente magistério papal. De facto, Francisco tem insistido repetidamente que a porta dos sacramentos, e em particular a do batismo, não deve permanecer fechada, e que a Igreja nunca se deveria transformar numa alfândega, mas sim acolher e acompanhar todos nos seus caminhos acidentados de vida.

As respostas do dicastério doutrinal, no contexto altamente polarizado que carateriza a Igreja de hoje, provocaram reações opostas, incluindo aquelas que temem que, ao admitir ao sacramento do batismo os filhos de casais homossexuais (adotados, ou filhos de um dos dois parceiros, talvez gerados por barriga de aluguer), se torne moralmente lícito tanto o chamado “matrimónio gay” como a prática do chamado “útero de aluguer”. Neste sentido deve também ser lida, ainda pelos críticos, a atenuação da proibição de padrinhos e madrinhas de batismo, que o Dicastério apresenta de forma problemática.

É interessante, antes de mais, observar uma passagem da nota, onde se recorda que as respostas publicadas nestes dias «repropõem, em boa substância, os conteúdos fundamentais do que já foi afirmado no passado sobre a matéria por este Dicastério». A referência é a pronunciamentos anteriores que permaneceram sub secreto (um dos quais também é citado na nota de rodapé) que remontam a este pontificado e ao dos seus predecessores. Além disso, as citações iniciais dos dois Padres da Igreja propostas no início deste artigo estão contidas, juntamente com muitas outras, num documento público da ex-Sagrada Congregação para a doutrina da fé, então dirigida pelo cardeal croata Franjo Šeper e pelo arcebispo dominicano Jérôme Hamer. Trata-se de uma instrução aprovada em outubro de 1980 por São João Paulo ii , na qual se responde a uma série de objeções contrárias à celebração do batismo das crianças, reafirmando a importância de uma “prática imemorial” de origem apostólica que não deve ser abandonada.

Àqueles que hoje negariam o batismo aos filhos de casais homossexuais, porque, ao batizá-los, a Igreja tornaria moralmente lícitas as uniões homossexuais ou a prática da barriga de aluguer, o documento de 1980 já tinha, de facto, respondido indiretamente, afirmando que «a prática do batismo das crianças é autenticamente evangélica, porque tem valor de testemunho; manifesta a iniciativa de Deus para connosco e a gratuidade do seu amor que envolve toda a nossa vida: “Não fomos nós que amámos Deus, mas foi Ele que nos amou... Nós amamos, porque ele nos amou primeiro” (1 Jo 4,10.19.)». E também «no caso do adulto, as exigências ligadas à receção do batismo não devem fazer esquecer que Deus “não nos salvou em virtude de obras de justiça praticadas por nós, mas pela sua misericórdia, mediante uma lavagem de regeneração e renovação no Espírito Santo” (Tt 3, 5.)».

A instrução aprovada pelo Papa Wojtyła há quarenta e três anos teve obviamente em conta a mudança do contexto social e a secularização: «Pode acontecer que se dirijam aos párocos pais pouco crentes e praticantes ocasionais, ou até não-cristãos, que por razões dignas de consideração pedem o batismo para o seu filho». Como proceder nestes casos? Permanecendo válido o critério — de ontem e de hoje — de que o batismo das crianças é celebrado se houver o compromisso de as educar cristãmente, o documento de 1980 especificava a este respeito: «Quanto às garantias, deve considerar-se que merece ser julgada suficiente qualquer segurança que ofereça uma esperança bem fundada relativamente à educação cristã das crianças». A prática atual nas paróquias atesta o facto de que, a exemplo do Nazareno, incansável na procura de cada ovelha tresmalhada, é suficiente que um familiar se comprometa perante a Igreja a não fechar a porta.

Não seria hoje necessário acreditar mais na ação da graça que atua através dos sacramentos, que não são uma recompensa para os perfeitos mas um remédio para os pecadores? Não deveríamos olhar mais para as páginas do Evangelho de onde emerge Jesus que primeiro ama, primeiro perdoa, primeiro abraça com misericórdia, e é neste abraço que o coração das pessoas é movido para a conversão?

E ainda: que culpa têm as crianças? Independentemente do modo como vieram ao mundo, são sempre criaturas prediletas e amadas por Deus. Não valeria a pena, então, concentrar-nos mais no lado positivo, ou seja, no facto de as pessoas pedirem o batismo num contexto pós-cristão, onde é cada vez mais raro que isso aconteça por mero costume?

É reconfortante reler as palavras que um grande bispo do século xx pronunciou numa entrevista em julho de 1978 sobre Luise Brown, a primeira criança nascida em laboratório. Denunciava o risco de surgirem «fábricas de filhos» separadas do contexto familiar e explicava que partilhava «apenas em parte» o entusiasmo pelo experimento. Mas, no final, formulou os seus «votos mais calorosos para a criança» e um pensamento afetuoso para os pais, dizendo: «Não tenho o direito de os condenar: subjetivamente, se agiram com reta intenção e em boa fé, podem até ter um grande mérito perante Deus por aquilo que decidiram e pediram aos médicos para realizarem». Esse bispo chamava-se Albino Luciani, era o patriarca de Veneza, um mês depois tornar-se-ia João Paulo i e hoje é beato.

Andrea Tornielli