· Cidade do Vaticano ·

Reflexão litúrgico-pastoral Para o domingo xxxiii do tempo comum

Fiéis ao imenso dom de Deus

 Fiéis ao imenso dom de Deus  POR-046
16 novembro 2023

Aparábola do Domingo passado ( xxxii ), que nos mostrava duas maneiras diferentes de viver com os olhos e os ouvidos postos na Vinda do Noivo, terminava assim: «Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora» (Mt 25, 13). E a parábola deste Domingo xxxiii do Tempo Comum, que segue imediatamente a anterior (Mt 25, 14-30), agrafa-se a ela, utilizando três motivos temáticos e literários: a) se a parábola do Domingo passado terminava incutindo uma atitude de vigilância, não pontual, mas alargada à vida inteira, como uma forma de viver: «Vigiai, pois...» [gregoreîte oûn], a de hoje encaixa ou imbrica-se nela, dizendo em que consiste essa atitude de vigilância alargada, iniciando com: «É, na verdade, como...» [hôsper gár] (Mt 25, 14); b) o atraso do noivo na parábola anterior (Mt 25, 5) corresponde ao «muito tempo depois» da parábola de hoje (Mt 25, 19); c) as virgens operosas da parábola anterior, que tinham tudo preparado, correspondem aos dois servos operosos da parábola de hoje: elas entram na sala do banquete (Mt 25, 10), como eles entram na alegria do seu Senhor (Mt 25, 21 e 23); do mesmo modo que as virgens não operosas da parábola anterior, que não tinham tudo preparado, têm o seu paralelo no servo mau e preguiçoso da parábola de hoje: elas ficam fora da porta da sala do banquete (Mt 25, 12), como ele é excluído da alegria do seu Senhor (Mt 25, 30).

2. Entrando agora mais dentro da parábola deste Domingo xxxiii (Mt 25, 14-30), somos logo levados a tomar consciência de que um imenso dom, vindo de Deus, precede sempre a nossa ação: cinco talentos, dois talentos, um talento... é sempre uma imensa quantidade dada logo à partida!

3. O talento começou por ser uma unidade de peso, usada sobretudo para medir metais preciosos. Por exemplo, na Babilónia, um talento equivalia a 60 quilos. Imagine-se então o valor de um talento de ouro! Em épocas sucessivas, no período helenístico, o valor do talento baixou, situando-se então entre 35 e 26 quilos. De qualquer modo, um talento equivalia então a 6000 denários, sendo que um denário era o salário normal de um dia de trabalho. Um talento, 6000 denários, era assim o equivalente a uma vida inteira de trabalho! Portanto, quer seja um, dois ou cinco talentos, é sempre um imenso dom que nos é entregue! É sabido que o grande humanista Erasmo de Roterdão (1467-1536) partiu desta página do Evangelho para dar a estes «talentos» o sentido novo do «talento» ou «capacidades» que distinguem cada ser humano. Esta acostagem é possível, se respeitarmos as devidas distâncias. O Evangelho não fala tanto do empenho, dos méritos, das capacidades e do engenho de cada um, mas mais, muito mais da graça preveniente de Deus, do primado da graça de Deus em relação a nós.

4. Bem! O andamento da parábola continua a dizer-nos que os talentos entregues por Deus a cada um de nós não são como uma pedra preciosa que há que guardar ciosamente. São antes como uma imensa soma de dinheiro que há que fazer render, ou como uma semente que há que semear para produzir raízes, caule, ramos, folhas, flores e frutos. Só que esta imensa soma de dinheiro ou esta semente pequenina capaz de um tal desenvolvimento são-nos entregues sem instruções!

5. É assim que a parábola progride, mostrando-nos que os dois primeiros servos não perderam tempo, mas partiram logo (euthéôs) (Mt 25, 15 e 17) e obtiveram resultados fantásticos [100% de lucro] (Mt 25, 20 e 22). Mas o terceiro servo, ao contrário, agiu como se o talento recebido fosse uma pedra preciosa, e guardou-a ciosamente para, a seu tempo, a devolver intacta ao seu dono.

6. As razões do comportamento estranho deste terceiro servo, são-nos manifestadas depois, quando este servo se explica perante o seu senhor, que chega «muito tempo depois» (Mt 25, 19). Ele diz, escolhendo mal as palavras: «Eu sei que tu és um homem duro (sklêrós), que colhes onde não semeaste e juntas onde não espalhaste. Tive medo (phóbos) e escondi o teu talento na terra» (Mt 25, 24-25).

7. Aqui estão as respostas erradas, que vêm desde Adam. Também Adam, nosso lídimo representante, teve medo de Deus e escondeu-se dele (cf. Gn 3, 10). Na esteira de Adam, também este terceiro servo da parábola de Mateus ficou tolhido pelo medo e optou por jogar pelo seguro, que se vem a revelar falso. O medo deriva, nos dois casos, de uma falsa imagem de Deus, que é visto como um homem duro. É assim que ficamos muitas vezes paralisados, sem perceber a lógica dos dons de Deus, que se antecipa sempre a nós e não se deixa vencer em generosidade. Sim, os dons do Deus da parábola são dinâmicos, não pedras estáticas e imóveis! E o Deus da parábola é o Senhor da alegria (Mt 25, 21.23), não do medo!

8. Portanto, a vigilância de Mt 25, 13 («Vigiai, pois...») manifesta-se («é, na verdade, como...) (Mt 25, 14) em sermos ativos, fiéis, generosos, corajosos, ousados e engenhosos a vida toda, desde o primeiro momento («partir logo») (Mt 25, 21 e 23), não em ficarmos tolhidos, frios e inertes, ciosamente guardando um grande tesouro, mas nada fazendo. Paralisados. Porventura sentados em cima do tesouro.

9. Agora que chegamos ao final da parábola, num amplo olhar retrospetivo, podemos sempre ver melhor aquilo que, à primeira vista, nos pode ter passado despercebido ao lermos a parábola. Vendo bem, o comportamento do terceiro servo não se apresenta tão diferente como parece em relação aos dois primeiros. Estes guardaram o dinheiro no banco; o terceiro guardou-o num buraco. A diferença está apenas no rendimento: no banco, o dinheiro vence juros; no buraco, não. Já sabemos que o comportamento dos dois primeiros foi louvado e que o terceiro tentou justificar-se perante o seu senhor, dizendo que sabia que ele era um homem duro (sklêrós) (v. 24), e que, por isso, jogou pelo seguro. Este servo aparece qualificado ou desqualificado como mau (ponêrós) e preguiçoso (oknêrós) (v. 26). No que se refere ao dizer preconceituoso deste servo, é notório que contradiz a imagem de Deus que percorre as páginas do Evangelho de Mateus e da Escritura inteira; não se vê por aí que Deus possa ser qualificado como duro, mas sim como omnipotente e omnipresente. Mas a omnipotência do Deus bíblico não anula nem dispensa a ação do homem; antes, a suscita e estimula e lhe abre novas perspetivas. Foi o que fizeram os dois primeiros servos. Foi o que não fez o terceiro. A segunda nota está na menção explícita por parte do senhor da possibilidade que este terceiro servo tinha de ter podido depositar o dinheiro no banco (v. 27). E a questão que se pode levantar é se este gesto não pode ser considerado tão preguiçoso como o facto de o meter num buraco. À primeira vista, sim. Mas também se pode ver que quem põe os pés ao caminho tem uma conceção diferente de Deus, confia em Deus. É verdade que o Deus bíblico é omnipotente, mas não é um tirano. Antes, põe a sua omnipotência ao meu serviço, cuida de mim e solicita a minha colaboração, associando-me aos seus afazeres criadores, mostrando a dignidade que me atribui e incentivando a minha liberdade e responsabilidade! Em jogo está a graça preveniente e permanente de Deus, a ação da graça em mim.

10. O texto termina dizendo que, afinal, o senhor da parábola, que bem se vê que é Deus, nem recolheu os bens que lhe eram devidos. Confia na nossa boa administração da sua graça. Por isso, manda dar o talento do terceiro servo, que tem uma conceção errada de Deus, e não sabe o que é a graça, àquele que tem dez talentos. Ter e não ter. Tudo se resume à atitude de receber a graça e de deixar que a graça atue em nós.

*Bispo de Lamego

D. António Couto *