· Cidade do Vaticano ·

Entrevista ao diretor do Tg1 da Rai

O Papa confia na “sabedoria humana” para impedir
a escalada da guerra

papa Francesco
09 novembro 2023

Para o Papa Francisco, a escalada mundial da guerra que deflagrou em Israel e na Palestina «é uma possibilidade», mas espera que isto não aconteça, confiando na «sabedoria humana». Esta afirmação foi feita durante uma longa entrevista ao diretor do Tg1, Gian Marco Chiocci, transmitida na noite de 1 de novembro, pela RaiUno.

Israel e Gaza


Sobre o que acontece no Médio Oriente, o Pontífice disse: «Cada guerra é uma derrota. Nada se resolve com a guerra. Nada. Tudo se ganha com a paz, com o diálogo. Entraram nos kibutzim, fizeram reféns. Mataram alguns. E depois a reação. Os israelitas vão buscar aqueles reféns, salvá-los. Na guerra, uma bofetada provoca outra. Uma com a força e outra com mais força, e assim continua. A guerra é uma derrota. Eu senti-a como mais uma derrota. Dois povos que devem viver juntos. Com essa solução sábia: dois povos, dois Estados. O acordo de Oslo: dois Estados bem delimitados e Jerusalém com um estatuto especial».

Recordando a oração pela paz da semana passada, Francisco reiterou que o mundo atravessa uma «hora muito sombria. Não tem a capacidade de refletir com clareza e à hora mais escura, acrescentaria: mais uma derrota. Tem sido assim desde a última guerra mundial, desde 1945 até agora, uma derrota atrás da outra, porque as guerras não pararam. Mas o maior problema continua a ser as indústrias de armas. Uma pessoa que entende de investimentos, que encontrei numa reunião, disse-me que hoje os investimentos que dão mais rendimento são as fábricas de armas».

O Papa disse que ouve todos os dias, por telefone, os religiosos que estão em Gaza. «O vice-pároco egípcio, padre Yussuf, telefono-lhe todos os dias e ele diz-me: “Mas isto é terrível, agora a última coisa é que bombardearam o hospital, mas respeitam-nos na paróquia, na paróquia temos 563 pessoas, todas cristãs e também algumas muçulmanas. Crianças doentes das quais as irmãs de Madre Teresa cuidam”. Nesta pequena paróquia há 563 pessoas. Todos os dias procuro acompanhá-las. Até agora, graças a Deus, as forças israelitas respeitam esta paróquia».

Habituação à guerra e antissemitismo


«Lembro-me», disse o Papa, «de um momento muito duro no início do meu pontificado, quando a guerra eclodiu com tanta força na Síria e eu presidi a um ato de oração na praça, onde rezaram cristãos e também muçulmanos que trouxeram um tapete para rezar. Foi um momento muito difícil. Para mim, é algo negativo, mas depois, não é bonito dizê-lo, as pessoas habituam-se, infelizmente habituam-se. Não devemos habituar-nos a isto».

E sobre a questão de uma possível escalada mundial, salienta: «Seria o fim de muitas coisas e de muitas vidas. Penso que a sabedoria humana impeça estas coisas. Sim, há uma possibilidade, mas... e esta guerra toca-nos pelo que significa Israel, Palestina, Terra Santa, Jerusalém, mas também a Ucrânia nos toca porque está perto. Mas há muitas outras guerras que não nos tocam: Kivu, Iémen, Myanmar com os Rohingyas que são mártires. O mundo está em guerra, mas a indústria do armamento está por detrás dela». Francisco fala também do antissemitismo que «infelizmente permanece escondido. Vê-se, por exemplo, jovens aqui e ali que fazem algo. É verdade que neste caso é muito grande, mas há sempre um pouco de antissemitismo e nem sempre é suficiente ver o holocausto que fizeram na segunda guerra mundial, os 6 milhões de mortos, escravizados, e isto não passou. Infelizmente, não passou. Não consigo explicá-lo, não tenho explicações, é algo que vejo e não gosto disto».

O conflito na Ucrânia


Questionado sobre a reação dos ucranianos às iniciativas de paz da Santa Sé, Francisco respondeu: «Penso no povo ucraniano, não devemos julgá-lo hoje. O povo ucraniano é um povo mártir, sofreu perseguições no tempo de Stalin, perseguições muito fortes. É um povo mártir. Li um livro de memórias sobre isso e o martírio foi terrível, a Sibéria... um povo que sofreu muito e agora, seja o que for que os faça reviver isso, compreendo-o e recebi o presidente Zelensky, compreendo, mas precisamos de paz. Parai! Parai um pouco e procurai um acordo de paz, os acordos são a verdadeira solução para isto. Para ambos».

O Papa recorda: «No segundo dia da guerra na Ucrânia fui à embaixada russa, senti que devia ir e disse que estava disposto a encontrar-me com Putin, se ajudasse. O embaixador era um bom funcionário da Rússia. Agora acabou o mandato dele. A partir desse momento, tive um bom diálogo com a embaixada russa. Quando apresentava prisioneiros, ia lá e eles libertavam-nos, até libertaram alguns de Azov. Em síntese, a embaixada fez muito bem em libertar as pessoas que podiam ser libertadas. Mas o diálogo parou ali. Foi então que Lavrov me escreveu: “Obrigado, se quiser vir, mas não é necessário”. Eu queria visitar as duas partes.

A tragédia dos migrantes


«Sou filho de imigrantes», disse o Pontífice, «mas na Argentina somos 46 milhões, creio, e os indígenas são apenas 6 milhões, não mais. Os outros são todos migrantes. É realmente um país de migrações: italianos, espanhóis, ucranianos, russos, do Médio Oriente, todos. E muitos do Médio Oriente, por exemplo, na Argentina chamamos-lhes turcos, porque chegavam com passaportes turcos do grande Império otomano. O meu pai trabalhava no Banco da Itália e emigrou para lá, ficou lá e morreu lá, tinha família lá. Para mim, a experiência da migração é algo existencial deveras forte, não como a tragédia de agora. Houve más migrações no período do pós-guerra, mas hoje em dia continua a ser algo muito dramático e há cinco países que mais sofrem com a migração: Chipre, Grécia, Malta, Itália e Espanha. São os que mais recebem. Depois, quando estes migrantes da África vêm da Líbia, vemos a crueldade dos lagers líbios, ali há uma crueldade terrível; recomendo sempre a leitura de um livro escrito por um destes migrantes que esperou mais de três anos para chegar do Gana à Espanha: chama-se “Irmãozinho”, “Hermanito” em espanhol. É um livro curto, mas que relata a crueldade da migração. O que vimos ultimamente na Calábria é terrível. A Europa deve mostrar-se solidária com eles, estes cinco países não podem acolher todos e os governos da Europa devem entrar em diálogo. Há pequenas aldeias vazias com dez, quinze idosos e precisam de pessoas que vão trabalhar lá. Há uma política de migração com os passos da migração: recebê-los, acompanhá-los, promovê-los e dar-lhes um emprego. Que se insiram. E essa política de migração custa dinheiro. Mas penso na Suécia, que fez um bom trabalho na altura das ditaduras latino-americanas... Uma política de migração deve ser construtiva para o bem do país e para o bem deles, e também pan-europeia. Gostei quando a presidente da Comissão europeia foi a Lampedusa para ver: gosto porque ela procura fazer isto.

Mulheres na Igreja


«Aqui no Vaticano há mais mulheres que trabalham, por exemplo, a vice-governadora do Estado do Vaticano é uma mulher, uma religiosa, e o governador desempenha um papel mais genérico, mas quem chefia é uma mulher. No Conselho para a economia há seis cardeais e seis leigos, destes seis leigos, cinco são mulheres. Depois já há secretárias no lugar dos monsenhores: a secretária para a vida consagrada é uma mulher, para o desenvolvimento humano integral é uma mulher, na Comissão para a escolha dos bispos há três mulheres, porque as mulheres entendem o que nós não entendemos, as mulheres têm um talento especial para a situação e é necessário, creio que devem ser incluídas no trabalho normal da Igreja». Relativamente à ordenação de mulheres, Francisco disse: «Há um problema teológico, não um problema administrativo. As mulheres podem fazer tudo na Igreja, até desempenhar o papel de governador, não há problema. Mas do ponto de vista teológico, ministerial, são coisas diferentes: o princípio petrino, que é o da jurisdição, e o princípio mariano, que é o mais importante, porque a Igreja é mulher, a Igreja é esposa, a Igreja não é masculina, é mulher. É preciso uma teologia para compreender isto e o poder da Igreja feminina e das mulheres na Igreja é mais forte e mais importante do que o dos ministros homens. Maria é mais importante do que Pedro, porque a Igreja é mulher. Mas se quisermos reduzir isto ao funcionalismo, perderemos».

Sínodo e celibato


Para Francisco, o resultado do Sínodo sobre a sinodalidade foi «positivo. Falou-se de tudo com toda a liberdade. E isso é bom, e foi redigido um documento final, que deve ser estudado nesta segunda parte para a próxima sessão de outubro, como o da família, também este é um Sínodo em duas etapas. Creio que chegamos àquele exercício de sinodalidade que São Paulo vi tinha desejado no final do Concílio, porque se sentia que a Igreja do Ocidente tinha perdido a dimensão sinodal que, pelo contrário, as Igrejas do Oriente conservaram».

Respondendo a uma pergunta sobre o celibato dos sacerdotes, explicou: «É uma lei positiva, não é uma lei natural: os sacerdotes das Igrejas católicas orientais podem casar-se, enquanto que no Ocidente existe uma disciplina desde o século xii , creio, que deu início ao celibato. Mas é uma lei que pode ser eliminada, sem problemas. Penso que não ajuda. Porque o problema é outro. Não ajuda. É verdade que eliminaria algo negativo que alguns sacerdotes têm: são “solteirões”. Não sei se se diz assim em italiano, a espiritualidade dos solteirões. O sacerdote deve ser pai, deve estar inserido numa comunidade. Às vezes, isso preocupa-me muito, quando o sacerdote olha para dentro de si e faz de si uma figura do sagrado. Não gosto disso porque se perde o contacto. Lembro-me de uma vez ter encontrado um homem de mais ou menos 65 anos, pároco de três pequenas aldeias nas montanhas, cada aldeia com quinhentas almas. Perguntei-lhe: mas como o fazes? Conheces as pessoas? Ele sorriu e disse: “Sei o nome até dos seus cães”. Estes sacerdotes inseridos são verdadeiros pais da comunidade. Quando o sacerdote regressa um pouco “requintado”, perdemos».

Sobre a questão dos casais homossexuais, Francisco responde: «Quando digo todos, todos são as pessoas. A Igreja recebe as pessoas, toda a gente, e não pergunta como estão. Depois, no seu interior, todos crescem e amadurecem na pertença cristã. É verdade que hoje está um pouco na moda falar disto. A Igreja recebe todos. Outra coisa é quando há organizações que querem entrar. O princípio é este: a Igreja recebe todos os que podem ser batizados. As organizações não podem ser batizadas. As pessoas sim.

Abusos na Igreja e fora dela


Na entrevista ao diretor do Tg1, Francisco explicou que deu continuidade ao trabalho de Bento xvi . «Foi feita uma grande limpeza. Foram todos os casos de abuso e até alguns na Cúria foram mandados embora. O Papa Ratzinger foi corajoso neste âmbito. Enfrentou o problema e deu muitos passos, e depois entregou-o para terminar. Isto continua. O abuso de consciência, sexual, ou outros, não devem ser tolerados. São contrários ao Evangelho, o Evangelho é o serviço e não o abuso, e vemos tantos episcopados que fizeram um bom trabalho para estudar os abusos sexuais, mas também outros. Não temos a cultura de trabalhar contra os abusos: por exemplo, a estatística que recebi de uma entidade internacional que trabalha neste âmbito, 42 a 46 por cento dos abusos ocorrem nas famílias ou nos bairros e as pessoas têm o hábito de os encobrir. Isto é mau, muito mau».

O Papa reconhece que a Igreja fez muito para lutar contra a pedofilia, «mas ainda há muito a fazer».

O momento mais difícil e a Igreja que virá


Questionado sobre qual foi o momento mais difícil do seu pontificado, o Papa respondeu: «Talvez tenha sido difícil e duro quando tive que me opor à guerra na Síria, aquele encontro na praça que mencionei. Não sabia o que fazer, foi muito difícil. Não estava habituado a algo assim e também tinha medo de cometer um erro e fazer mal. Foi difícil, muito difícil. Houve também momentos fáceis e outros menos fáceis. Mas o Senhor ajudou-me sempre a resolver, ou pelo menos a ser paciente, a esperar para resolver». Quanto à Igreja depois do seu pontificado, diz: «O Senhor sabe, mas há sempre a melancolia do passado. Isso acontece. Está presente nas instituições e também na Igreja. Alguns querem voltar atrás, trata-se dos “retrocedistas”. Não aceitam que a Igreja ande para a frente, que esteja em movimento. Porque a Igreja está sempre em movimento, deve crescer. E a maneira de ser Igreja também deve crescer com os três belos princípios de Vicente de Lérins, deve crescer a partir das raízes. A partir da raiz, como árvore cresce da seiva, mas sempre ligada à raiz, uma Igreja que se desprende das raízes retrocede e perde esta seiva da tradição saudável, que não é conservadorismo, não. A tradição cresce. E deve avançar. Pensemos, por exemplo, na pena de morte. Hoje dizemos que a pena de morte não é moral. Também se cresce na escravatura. Outrora, os escravos eram normais. Hoje não são normais. A consciência moral também cresce. A posse de armas atómicas».

À pergunta sobre o que teme, o Papa respondeu: «Surgem pequenos medos. Que aconteça isto, que aconteça aquilo. A guerra na Terra Santa assusta-me. Estas pessoas sabem como isto vai acabar. Mas isso resolve-se diante do Senhor. Os medos não desaparecem. Mas permanecem de forma humana, digamos assim. É bom ter medo».

Respondendo à pergunta sobre o facto de alguns lhe chamarem “um Papa de esquerda”, Francisco disse: «Não gosto disto, direita, esquerda. Trata-se qualificações que não são reais. As verdadeiras qualificações são: é coerente, não é coerente? O que ele propõe é coerente com as suas raízes ou é estranho? Pensemos em São Paulo vi , disseram-lhe todo o tipo de coisas, porque era um inovador. E não tinha nada de esquerdista, nada de comunista. Se estas qualificações forem suficientes. Sim, conheço a direita e a esquerda, mas não é fácil perceber o que significa».

“Vou a Dubai para a cop 28”


«Sim, vou a Dubai. Penso que vou de 1 a 3 de dezembro. Vou ficar lá três dias. Lembro-me que quando fui a Estrasburgo, ao Parlamento europeu, o presidente Hollande enviou a ministra do meio ambiente, Ségolène Royal, para me receber e ela perguntou-me: “Mas está a preparar algo sobre o meio ambiente? Faça-o antes do encontro de Paris”. Convoquei aqui alguns cientistas, que se apressaram, saiu a Laudato si’, publicada antes de Paris. E o encontro de Paris foi o mais bonito de todos. Depois de Paris todos retrocederam, mas é preciso coragem para avançar. Depois da Laudato si’, cinco importantes responsáveis do setor petrolífero pediram um encontro. Todos para se justificarem — é preciso coragem. Um país que é uma ilha no Oceano Pacífico compra terras em Samoa para se deslocar, porque daqui a vinte anos já não existirá porque o mar cresce. Mas nós não acreditamos nisso. Ainda há tempo para parar. O nosso futuro está em jogo. O futuro dos nossos filhos e netos. É preciso um pouco de responsabilidade. Gosto de falar dos pescadores de San Benedetto del Tronto. Vieram falar comigo e disseram-me que pescam não sei quantas toneladas de plástico e não as voltam a lançar ao mar. Perdem dinheiro para limpar um pouco o mar. Temos sido péssimos guardas da criação».

Francisco confidenciou ainda que a última vez que foi à praia, de que «gosta tanto», foi em 1975. E recordou que fora noivo, antes de descobrir a vocação religiosa, de «uma jovem muito bondosa». Ela trabalhava no cinema. Era uma boa pessoa. Depois reencontrei-a como arcebispo de Buenos Aires, numa paróquia com o marido e os filhos».

Fé e saúde


Questionado sobre se a sua fé alguma vez vacilou, o Papa respondeu: «No sentido de a perder, não. Mas no sentido de não a sentir e de ir por caminhos escuros: onde está o Senhor? Sentimos que o Senhor se esconde, onde está sozinho? Ou retrocedemos e vamos para longe dele. E onde estás, Senhor? E por que não resolves isto? E ouvimos o Senhor dizer no íntimo, porque não tenho a varinha mágica. O Senhor não é Mandráke, não. Ele é outra coisa».

Sobre a sua saúde, diz: «Tenho o problema do joelho que continua a melhorar. Agora já consigo caminhar bem e depois fiz duas cirurgias à barriga: a primeira por causa de uma diverticulite no cólon transverso, tiraram um bocado e depois acontece o que acontece quando te abrem a barriga. E na última fui operado. Lavaram, vi o filme. Só faltava o sabão. Lavaram as aderências. E agora estou ótimo. Posso comer de tudo».

“Entre Maradona e Messi prefiro Pelé”


Concluindo, o Papa responde à pergunta sobre quem prefere entre os dois grandes jogadores argentinos, Maradona e Messi. «Vou citar um terceiro. Pelé. São os três que acompanhei. Maradona, como jogador, é grande. Mas como homem falhou. Coitado, escorregou com a corte daqueles que o elogiavam e não o ajudavam. Veio ver-me aqui no primeiro ano de pontificado e depois, coitado, acabou. É curioso: tantos desportistas acabam mal. Até no boxe. Messi é muito correto. É um senhor. Mas para mim, destes três, o grande senhor é Pelé. Um homem de coração. Falei com Pelé, encontrei-o uma vez num avião, quando estava em Buenos Aires, conversamos. Um homem de grande humanidade. Os três são fantásticos. Cada um com a sua especialidade. Messi faz o seu dever neste momento. E Pelé era ótimo!».