Reflexão litúrgico-pastoral
Vigiar sempre sobre
Aí está, no Evangelho deste Domingo xxx do Tempo Comum (Mt 22, 34-40), mais uma pergunta armadilhada [«para o experimentar», verbo grego peirázô, literalmente «montar um laço, uma armadilha»] posta a Jesus por um fariseu, um doutor da lei (nomikós), única menção deste nome em todo o Evangelho de Mateus. Antes deste «legista» partir ao encontro de Jesus com a sua pergunta traiçoeira, destinada a capturá-lo na armadilha preparada, é-nos dito que os fariseus se reuniram (Mt 22, 34). Mas já o tinham feito também em Mt 22, 15, antes da pergunta sobre o imposto, e é ainda reunidos que os encontramos em Mt 22, 41, antes da pergunta decisiva de Jesus [aí é Jesus que formula a pergunta] acerca da filiação do Messias, que os reduzirá ao silêncio (Mt 22, 46). Estas sucessivas reuniões dos fariseus para estudar a maneira de tramar Jesus representam uma clara alusão ao Salmo 2, em que se diz que os reis das nações se amotinam contra Deus e contra o seu Messias (v. 2).
2. A pergunta armadilhada que o «legista» fariseu coloca hoje a Jesus soa assim: «Mestre, qual é o mandamento maior (entolê megálê) da Lei?» (Mt 22, 36). A pergunta parece inofensiva, mas está carregada de malícia, o que aproxima o fariseu do grande tentador de Mt 4, 1, em que o diabo se apresenta com o mesmo verbo peirázô. Com a sua pergunta envenenada, o fariseu pretende, em primeiro lugar, tirar a limpo a suspeição que já emerge em Mt 5, 17, e que tem a ver com o facto de se pensar que Jesus, com os seus ensinamentos novos, teria vindo «revogar a Lei ou os Profetas». Então, com a sua pergunta, o fariseu pretende saber se Jesus conhece a Lei e se lhe é fiel. Mas pretende ainda arrastar Jesus para o plano inclinado da interminável e polémica discussão académica. De facto, os mestres judeus, lendo minuciosamente a Lei, ou seja, os cinco primeiros Livros da Bíblia [= Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio], e reduzindo-a a preceitos, tinham chegado ao cômputo de 613 preceitos, sendo 365, tantos quantos os dias do ano, negativos, e 248, tantos quantos, assim se pensava então, os membros do corpo humano, positivos.
3. A questão que entretinha os mestres e as suas escolas era agora a de estabelecer uma ordem nesses 613 preceitos ou mandamentos, dizendo qual consideravam o primeiro ou o mais importante ou o maior, e assim por diante. Discussão interminável e natural fonte de conflitos, pois, como é usual dizer-se, cada mestre sua sentença. Qual seria então a posição de Jesus nesta matéria, e como a defenderia?
4. Jesus responde ao «legista» fariseu, não caindo, porém, na apertada ratoeira que este lhe arma, mas abrindo portas, janelas e... corações engessados! Na verdade, e como sempre costuma fazer, a resposta de Jesus excede, rebentando-a, a pergunta feita. Feita a pergunta, e sem fazer nenhuma introdução, Jesus passa a citar de imediato o Livro do Deuteronómio 6, 5: « Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o coração, toda a alma, todas as forças». E acrescenta: «Este é o maior e primeiro (hê megálê kaì prôtê) mandamento». Dito isto, Jesus opera um inesperado, para o «legista», salto de trapézio, e acrescenta o segundo mandamento, que não tinha entrado na pergunta do legista: «O segundo (deutéra), porém, é semelhante (homoía) a este», e cita agora o Livro do Levítico 19, 18: « Amarás o teu próximo como a ti mesmo». Este procedimento interpretativo de unir dois mandamentos, que tivessem em comum começar pela mesma palavra, já se tinha tornado habitual entre os mestres judaicos, e era conhecido por gezerah shewah.[= igualdade dividida]. A novidade de Jesus é vincular estes dois mandamentos, que abrem com a mesma palavra: amarás . E vincular estes dois mandamentos significa sujeitar tudo ao jugo do amor . Esta postura tão clara de Jesus que, de algum modo, reclama e retempera a «regra de ouro» da Escritura, por Jesus formulada na reta final do Sermão da Montanha (Mt 7, 12), quebra a matreirice da pergunta do fariseu, não dando azo ao prolongar da discussão.
5. Ora, o «legista» estava apenas interessado em saber qual era, segundo o Mestre Jesus, «o maior (megálê) mandamento da Lei». Jesus respondeu dizendo qual era o maior e primeiro, mas acrescentou o segundo (deutéra) mandamento. Mas não disse simplesmente que este segundo era o segundo. Disse que este segundo era semelhante (homoía) ao maior e primeiro. Ora, se é semelhante (e só Mateus usa aqui este semelhante), já não é apenas segundo, mas passa a fazer corpo com o maior e primeiro. Sendo assim, então o amor a Deus é verificável no amor ao próximo, no nosso dia a dia.
6. Mas Jesus rebenta outra vez a pergunta do «legista», na conclusão que tira, e em que refere que «Destes dois mandamentos se suspende» (krématai) (Mt 22, 40), verbo só aqui usado no Novo Testamento, isto é, «depende», «dependura», «decorre» «toda a Lei e os Profetas» (Mt 22, 40; cf. 7, 12). Não se trata, portanto, de um final, de uma conclusão a que se chega, de um resumo, mas de um ponto de partida, de um fundamento. Na linguagem de Santo Agostinho, seria como o fundamento de um edifício espiritual que se encontra no cume, na pedra cumeeira. A locução «a Lei e os Profetas» é uma forma de dizer toda a Escritura. A pergunta do «legista» visava apenas a Lei, mas Jesus acrescenta «os Profetas», clarificando, pois, na sua resposta, que é a inteira Escritura que está atravessada pelo fio de ouro do amor a Deus e ao próximo.
7. Como quem diz: o grau do teu amor a Deus verifica-se pela qualidade do teu amor ao próximo. Diretamente de Jesus para o «legista» e para nós: se olhas para mim de lado, de forma enviesada e preconceituosa, se vens cheio de más intenções, se colocas um laço, uma armadilha, diante dos meus pés, então estás longe de todos os mandamentos. Do 1º, do 2º, do 3º e do 613º!
8. Tudo somado, aquele «legista», ao arvorar-se em perguntador traiçoeiro, não se estava a situar corretamente face a Deus e face ao seu próximo. Não era o amor que o fazia mover. Não estava a colocar a Escritura Santa no centro da sua vida. Andava muito pela periferia. Ocupava muito do seu tempo, não a amar , mas a « armar laços», a tentar tramar os outros! De onde se deduz que é preciso vigiar todos os dias sobre aquilo que verdadeiramente nos move.
9. Nem de propósito. Salta daqui um afazer sem fim, um imenso convite a sairmos de nós, sem armadilhas e só com amor, ao encontro dos nossos irmãos. Escreveu o Papa Bento xvi , na sua mensagem para o 85º Dia Missionário Mundial (2011): «A missão universal empenha todos , tudo e sempre ». Entenda-se bem: todos , tudo e sempre ! Um silogismo fácil: se a missão envolve todos , tudo e sempre , então atinge-nos no essencial, e não afeta apenas as sobras, porque ficamos sem sobras! Verificação: então por que razão continuamos com toda a tranquilidade do mundo a dedicar à missão universal de Jesus e do Evangelho apenas as nossas sobras de pessoas, de meios e de tempo? Como podemos andar, afinal, também nós, armadilhados de boas, subtis e sub-reptícias intenções? Por outras palavras: que Evangelho anunciamos, e quem (e o quê) está no centro da nossa vida e move a nossa vida?
D. António Couto
Bispo de Lamego