· Cidade do Vaticano ·

Reflexão litúrgico-pastoral Para o domingo xxviii do tempo comum

Deus está sempre de mãos abertas

 Deus está sempre de mãos abertas  POR-041
12 outubro 2023

No seguimento dos dois Domingos anteriores ( xxvi e xxvii ), também neste Domingo xxviii do Tempo Comum, os chefes religiosos e civis judaicos continuam na mira de Jesus. O Evangelho deste Domingo é retirado de Mt 22, 1-14. Já quando ouviram as duas parábolas anteriores — a dos «dois filhos» (Mt 21, 28-32) e a dos «vinhateiros homicidas» (Mt 21, 33-43 — perceberam bem que as palavras de Jesus se dirigiam a eles, e, parafraseando Jorge Luis Borges, perceberam também que as palavras de Jesus estavam carregadas como uma arma. O narrador informa-nos, de resto, no final, que «os chefes dos sacerdotes e os fariseus, ouvindo estas parábolas, perceberam que Jesus se referia a eles, e procuravam prendê-lo», e que só não o fizeram por «receio das multidões, que o tinham por profeta» (Mt 21, 45-46).

2. É importante, para o leitor, esta última informação do narrador, pois o texto de hoje, que segue imediatamente os anteriores, começa assim: «E, respondendo, Jesus disse-lhes novamente em parábolas» (Mt 22, 1). Ficamos então a saber que o novo dizer parabólico de Jesus serve de resposta aos pensamentos e planos violentos que as parábolas anteriores desencadearam nos chefes judaicos.

3. E segue a primeira, estupenda parábola, que parte da afirmação da semelhança do Reino dos Céus a um banquete nupcial que um Rei fez para o seu filho. «Reino dos Céus», usual em Mateus, é uma circunlocução para dizer «Reino de Deus». E a figura do Rei é muitas vezes usada no Antigo Testamento e no judaísmo para designar Deus. E o verbo «fazer» evoca imediatamente o relato da criação (Gn 1, 1-2, 4a), em que o verbo fazer se conta por dez vezes. E o filho do Rei, para uma audiência cristã da parábola, designava de imediato Jesus. E o banquete nupcial feito pelo Rei é uma imagem fortíssima de festa e de alegria, tantas vezes anunciado pelos profetas (veja-se, por exemplo, a lição de hoje do profeta Isaías 25, 6), e impacientemente aguardado pelos judeus piedosos. É seguro: ser convidado e poder participar num banquete assim era um sonho para qualquer judeu piedoso!

4. Atravessam o texto várias surpresas. Primeira surpresa: quando o Rei enviou os seus servos a chamar os convidados para o banquete, estes não queriam (ouk êthelon: impf. de thélô) vir (Mt 22, 3). O uso do imperfeito indica duração; não se trata, portanto, de um ato, mas de uma atitude: nem hoje, nem amanhã, nem em dia nenhum. E o uso do verbo querer deixa claro que se trata de uma ação voluntária, e não de uma qualquer predisposição ou sentimento. Mais ainda: que a ação é deliberada, fica patente no facto de o Rei ter enviado outros servos para voltar a chamar os convidados , e estes nem prestaram atenção, indo cada um à sua vida (Mt 22, 4-5). E os restantes ainda maltrataram e mataram os servos do Rei (Mt 22, 6).

5. Note-se ainda que foi o próprio Rei que preparou (hêtoímaka: perf. de hetoimázô) o banquete, empenhando-se pessoalmente nele (Mt 22, 4). O verbo preparar está colocado em lugares-chave em Mateus: veja-se 3, 3: «Preparai o caminho do Senhor»; 25, 34: «Vinde, benditos de meu Pai, recebei o Reino preparado para vós...; 26, 17.19: preparar a Páscoa.

6. Este cuidado meticuloso posto pelo Rei na preparação do seu banquete para nós parece esbarrar depois na brutalidade com que se irou (ôrgísthê: aor. de orgízomai), enviou as suas tropas, matou aqueles homicidas e incendiou a sua cidade (Mt 22, 7). O sentido voa aqui em duas direções: primeira, o uso do aoristo (passado em português, itálico no texto acima) em todos os verbos gregos mostra que «a sua ira dura apenas um momento», como diz o Salmo 30, 6; segunda, o castigo descrito retrata e interpreta os acontecimentos dramáticos bem conhecidos do ano 70 d. c . (destruição do Templo e de Jerusalém pelos generais romanos Vespasiano e Tito).

7. Segunda surpresa: as sucessivas e gradativas recusas dos convidados não desarmam o Rei, que diz (légei) então aos seus servos (Mt 22, 8): ide às encruzilhadas dos caminhos, e todos os que encontrardes, chamai-os para o banquete (Mt 22, 9). Os servos saíram e reuniram todos os que encontraram, maus e bons (Mt 22, 10). Missão universal que brota do amor fontal de Deus Pai (Ad gentes, n. 2). E foi assim, por nova, excessiva e a todos os títulos surpreendente iniciativa do Rei, que se encheu a sala do banquete. Note-se o novo dizer do Rei, posto no presente histórico: «Diz então aos seus servos» (Mt 22, 8), que marca um primeiro ponto alto no relato. Note-se ainda que o intervalo militar verificado parece não ter esfriado a comida daquela mesa sempre posta!

8. Terceira surpresa: o Rei entra, vê «um homem» sem o traje nupcial, e expulsa-o da casa alumiada para as trevas cegas e as lágrimas vazias. Que o homem não tenha o traje nupcial é surpresa para o Rei, não para nós. Para nós, a surpresa é que todos os outros, maus e bons, tenham o traje nupcial, uma vez que foram como que arrastados à pressa e à força dos caminhos lamacentos dos seus trabalhos! Como é que ainda conseguiram vestir o traje nupcial, não deixa de ser surpreendente para nós! Para o Rei, é aquele «um homem», que não vestiu o traje nupcial, que causa surpresa! E chegamos ao segundo ponto alto do relato, marcado também pelo verbo dizer no presente histórico. De facto, o Rei trata aquele «um homem» cordialmente, e diz -lhe (légei autô): «Amigo» (hetaîre), apelativo que só Mateus usa no Novo Testamento (20, 13; 22, 12; 26, 50), e que apenas é usado quando se aborda alguém de forma muito cordial, de forma especialmente cordial. A este amigo (hetaîros), o Rei concede, mediante esta última abordagem direta e cordial, uma última oportunidade de se dizer, isto é, de reconhecer o seu desarranjo interior e de mudar a sua vida.

9. Oportunidade desperdiçada, pois o homem simplesmente não responde. Ficou calado e petrificado (Mt 22, 12). Note-se o mesmo tratamento de Jesus para Judas naquela noite escura, mas ainda à beirinha da Luz: «Amigo (hetaîre), para que estás aqui?» (Mt 26, 50). Judas também não respondeu.

10. É aqui que a parábola nos atinge a todos em cheio. Vistas bem as coisas, e poucos se aperceberão disto, só o Rei fala nesta parábola. E se ouvirmos bem, diz -nos: «Amigo...».

11. A razão daquele homem não usar o traje nupcial. 1) Não o usa devido à técnica do arrasto que o apanhou desprevenido e sem tempo para ir a casa ao menos para lavar a cara e mudar de roupa. Este é o entendimento banal e superficial da parábola, que nos rouba as verdadeiras chaves de leitura e nos leva para leituras mais ou menos moralizantes! 2) Também não podemos explicar o não-uso do traje nupcial recorrendo, como é habitual, a motivos também moralizantes traduzidos em comportamentos menos dignos. Esse motivo e essas pessoas (os convidados ) já foram excluídos (cf. Mt 22, 8), e é-nos dito expressamente que os servos daquele rei levaram agora para a sala do banquete todos os que encontraram, maus e bons (cf. Mt 22, 10); se foram levados todos, maus e bons, é difícil suportar aqui uma leitura moralizante. 3) Não é, portanto, pelo facto de ser mau ou andar distraído que aquele homem não usa o traje nupcial. 4) Procuremos então outro caminho: aquele homem não usa o traje nupcial, porque não o quis receber. O traje da festa não se vai buscar a casa; tão-pouco traduz a nossa bondade ou qualquer mérito nosso. Está antes disso e antes de nós. É um presente do Rei à entrada da sala do banquete, à entrada para a vida. É verdade que, no nosso mundo ocidental, são os convidados que levam os presentes. No mundo oriental, quem convida é que oferece presentes aos convidados, entre os quais se conta o vestido da festa, isto é a vida dada por Deus. Não convém, portanto, materializar o vestido, e ver nele apenas uma peça de roupa! É sabido que, no mundo bíblico, o vestido significa a vida. Ao fundo da cena está sempre a nossa vida dada e que deve ser com alegria recebida. Ao fundo da cena está, portanto, sempre Deus de mãos abertas, que reclama as nossas mãos também abertas.

12. Nunca nos esqueçamos então de que é de Deus toda a verdadeira iniciativa. Nunca nos esqueçamos também de começar sempre por receber: em relação a Deus somos sempre recebedores. E de gastar o resto do tempo que nos for dado a agradecer e a partilhar.

*Bispo de Lamego

D. António Couto *