OEvangelho deste Domingo xxvi do Tempo Comum (Mt 21, 28-32) apresenta mais uma parábola de Jesus, atirada aos representantes das principais autoridades judaicas, os «chefes dos sacerdotes» e os «anciãos» do povo, em confronto direto com Jesus, no Templo, como se pode ver desde Mt 21, 15 e 23. O confronto acontece naturalmente no vasto Átrio dos Pagãos (cerca de 13,5 hectares), onde era usual aparecerem os pregadores e os mestres, onde se passavam informações e se travavam discussões académicas, religiosas, políticas e outras. O aparecimento dos «chefes dos sacerdotes» e dos «anciãos» do povo neste Átrio do Templo em disputa com Jesus deve-se ao facto de terem visto Jesus expulsar do Templo vendedores, comerciantes e cambistas (Mt 21, 12), e depois de o terem visto também curar cegos e coxos na área do Templo (Mt 21, 14), e de terem visto e ouvido as crianças a soltar no Templo a aclamação messiânica: «Hossana ao Filho de David!» (Mt 21, 15). Perante o que tinham visto e ouvido, os referidos representantes das autoridades judaicas vieram perguntar a Jesus: «Com que autoridade fazes estas coisas, e quem te deu essa autoridade?» (Mt 21, 23). Jesus respondeu, pondo também uma pergunta, e condicionando a sua resposta à resposta dos seus interlocutores à questão por Ele posta, método muito em uso neste tipo de disputas. Eis as palavras de Jesus: «Também Eu vos farei uma pergunta; se me responderdes, também Eu vos direi com que autoridade faço estas coisas. E perguntou: o batismo de João de onde (póthen) era? Do céu ou dos homens?» (Mt 21, 24-25). Os chefes judeus conversaram entre eles, e concluíram que a pergunta de Jesus era uma armadilha, pois fosse qual fosse a resposta que dessem, ficavam sempre entalados. Se dissessem que era do céu, Jesus retorquir-lhes-ia: «Então por que não lhe destes ouvidos?»; se dissessem que era dos homens, seria o povo que lhes cairia em cima, pois todos consideravam João um profeta. Por isso, diplomaticamente responderam: «Não sabemos», o que levou Jesus a responder à questão que lhe tinham posto: «Também Eu não vos digo com que autoridade faço estas coisas» (Mt 21, 27).
2. Na verdade, este confronto entre Jesus e as autoridades judaicas já se arrasta desde Mt 4, 12, quando Jesus, que veio da Galileia à Judeia para ser batizado por João (Mt 3, 13), pouco depois tomou conhecimento, com peso proléptico, da prisão de João Batista, regressando por isso à Galileia, onde começou a pregar usando as mesmas palavras que João Batista usava na Judeia: «Convertei-vos, porque se fez próximo o Reino dos Céus» (Mt 4, 17; cf. 3, 2). É significativo que, nestas disputas públicas, Jesus faça questão de trazer para a cena João Batista, e de o mostrar associado a si, seu verdadeiro precursor, quer na pregação quer na rejeição! Veja-se ainda Mt 9, 14-15; 14, 7-15.
3. E também o vai buscar para a parábola de hoje (Mt 21, 28-32), cujo aguilhão continua a ser apontado aos representantes das autoridades judaicas, aos bem colocados na religião e na vida pública. São esses que são interpelados por Jesus: «Que vos parece?» (Mt 21, 28), e, depois, no final da parábola: «Qual dos dois fez a vontade do Pai?» (Mt 21, 31). Entre estas duas perguntas, Jesus apresenta aos seus autoritários interlocutores, a chamada «parábola dos dois filhos» (Mt 21, 28b-30). Tudo somado, trata-se de um pai que tem dois filhos. Dirige-se ao primeiro, e diz-lhe: «Filho, vai hoje (sêmeron) trabalhar na vinha», ao que o filho respondeu: «Não quero», mas, entretanto, mudou de ideias (metamelêtheís), e foi. Como a mudança de ideias do primeiro filho permanece desconhecida do seu pai, este dirigiu as mesmas palavras ao segundo filho, que disse logo muito respeitosamente: «Eu vou, senhor». Mas, na verdade, não foi.
4. É aqui, depois de apresentada a parábola, que Jesus formula a segunda pergunta com extrema precisão, sem escapatórias, como quem espeta um aguilhão. A pergunta não é: «Qual dos dois respeitou o seu Pai?». Se fosse este o sentido da pergunta, talvez a resposta pudesse recair sobre o segundo filho, que disse «sim» ao seu Pai, pois na cultura daquele tempo e lugar era incompreensível e insuportável dizer «não» ao próprio Pai. Mas a pergunta de Jesus é sem equívocos: «Qual dos dois fez a vontade do Pai?». As autoritárias autoridades de Jerusalém não tinham escolha, e foram rápidas a responder: «O primeiro» (Mt 21, 31a). Note-se que o «primeiro» foi aquele que disse «não», faltando gravemente ao respeito ao seu Pai, mas depois, mudou o coração (metamélomai), e fez a vontade do Pai.
5. Chega agora a altura das verdades mais inteiras, uma espécie de tiro ao alvo. Diz Jesus de forma solene: «Em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas vos precederão no Reino dos Céus» (Mt 21, 31b). E continua, justificando a razão de ter trazido João Batista para o meio da cena para fazer par e paralelo consigo: «Veio João no caminho da justiça, e vós não acreditastes nele, mas os publicanos e as prostitutas acreditaram nele. Mas vós, tendo visto, nem sequer mudastes depois o coração (metamélomai) para acreditar nele» (Mt 21, 32). Por partes: 1) Jesus põe diante das autoridades judaicas o par dos «publicanos e prostitutas». É fácil de ver que os publicanos estavam ao serviço do império romano, mas o mesmo acontecia com as prostitutas ao serviço dos soldados romanos! Mas à vista de João Batista, mudaram a vida. 2) João andava no «caminho da justiça». Em Mateus, o homem justo, que anda no caminho da justiça, é aquele que faz a vontade de Deus. Jesus associa-o a si. 3) O primeiro filho da parábola de hoje também começou por longe, mas acabou por mudar a vida e entrar no caminho da justiça, tal como os publicanos e as prostitutas, e fez a vontade do Pai. 4) Fora da cena e do acesso ao Reino dos Céus continuam as autoridades judaicas, que bem viram e ouviram João Batista e Jesus, mas continuam sem mudar a vida, ao contrário do primeiro filho da parábola e dos publicanos e prostitutas. 5) Há que reparar ainda que a vontade daquele Pai é para fazer hoje . Não admite demoras.
6. Embora neste pequeno texto, Mateus restrinja as autoridades judaicas aos «chefes dos sacerdotes» e «anciãos» do povo, Mateus usa, nestes Capítulos 21-23, muitos outros títulos de autoridades judaicas em confronto aberto com Jesus. Lembramos os «chefes dos sacerdotes e os escribas» (Mt 21, 15), os «chefes dos sacerdotes e os fariseus» (Mt 21, 45), «os fariseus… com os herodianos» (Mt 22, 15-16), os «saduceus» (Mt 22, 23) e os «fariseus» (Mt 22, 34.41). É sabido que estes titulares, nomeadamente os fariseus, aparecem no Evangelho de Mateus como aqueles que «dizem, mas não fazem» (Mt 23, 3). E fazer, em oposição a dizer, é um tema fundamental neste Evangelho, assim expresso por Jesus no Discurso programático da Montanha: «Não todo aquele que me diz: “Senhor, Senhor” entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade do meu Pai que está nos céus» (Mt 7, 21). Note-se também que, neste Evangelho de Mateus, o verdadeiro fazer traduz-se em fazer fruto, como consequência da conversão ou mudança operada na nossa vida. Como é importante, a ideia é recorrente neste Evangelho: veja-se Mt 3, 8; 7, 16-20; 12, 33; 13, 8; 21, 41.43; 25, 40.45. Mas também a justiça é um termo recorrente em Mateus. E justiça, no Evangelho de Mateus, indica o desígnio divino de salvação e a nossa obediência a esse desígnio. Dada a sua importância, esta nota da justiça faz-se ouvir por sete vezes neste Evangelho: veja-se Mt 3, 15; 5, 6.10.20; 6, 1.33; 21, 32.
7. Posto isto, é agora mais fácil deixar entrar em nós a força da parábola de Jesus, contada a gente habituada apenas a dizer, dizer, dizer… O homem e pai, na parábola, é Deus. A vinha é dele, mas é também nossa. Nunca se fala, no corpo desta parábola, da minha vinha. A vinha é, portanto, campo aberto de alegria e de liberdade, onde todos os filhos de Deus podem encontrar um novo espaço relacional, porventura ainda inédito, de filialidade e fraternidade.
8. É dito que este Pai tem dois filhos, que são todos os seus filhos, nas suas semelhanças e diferenças. Somos todos nós, nas nossas semelhanças e diferenças. Ao primeiro, o Pai diz: «Filho, vai hoje trabalhar na vinha» (Mt 21, 28). Note-se o termo carinhoso «filho», o imperativo da liberdade «vai», que nos coloca na estrada de Abraão, o « hoje », que requer resposta pronta e inadiável, e a «vinha», símbolo da festa e da alegria. Note-se ainda a resposta tresloucada deste «filho»: «Não quero» (Mt 21, 29a), e a emenda: «mas, depois, arrependeu-se e foi» (Mt 21, 29b). Note-se também a resposta respeitosa do segundo filho, depois de ter ouvido o mesmo convite do seu Pai: «Eu vou, senhor» (Mt 21, 30a), e a constatação do narrador de que, de facto, não foi (Mt 21, 30b). Como se vê, todos os filhos de Deus-Pai ouvem o mesmo convite e veem a mesma atitude de carinho. Respondem que não ou que sim, e ambos mudam! O que disse que não, de facto, vai hoje fazer a vontade do pai ; o que disse que sim, ficou apenas em palavras, apenas mudando o sim em não.
9. Os interpelados por Jesus (chefes dos sacerdotes e anciãos), os que só dizem, dizem, dizem, têm de reconhecer que não é o que se diz , mas o que se faz , o que verdadeiramente conta. E ainda têm de reconhecer que João Batista bem que os tinha chamado à conversão (mudança de vida e atitude) para fazerem frutos de justiça (Mt 3, 8; 21, 32) e obedecerem ao desígnio de Deus, mas nem por isso lhe deram qualquer atenção (Mt 21, 32). Entenda-se: o que fez João Batista é o que Jesus faz agora, e tão-pouco lhe prestam atenção, convertendo-se ou mudando de vida e de atitudes. É aqui que são chamados a fazer contraponto os publicanos e as prostitutas. Estes ouviram João e ouvem agora Jesus, e estão a mudar a sua vida (Mt 21, 31-32)! Note-se sempre que nem isto podemos desmentir, pois o Autor destas páginas deslumbrantes que estamos a folhear, Mateus, era publicano. E mudou tanto, que agora é um Apóstolo e Evangelista! E nós?
*Bispo de Lamego
D. António Couto *