· Cidade do Vaticano ·

O Santo Padre em conversa com os jesuítas de Portugal

Há resistências na Igreja mas a porta está sempre aberta a todos

 Há resistências na Igreja mas a porta  está sempre aberta a todos  POR-035
31 agosto 2023

«Todos, todos, todos». O apelo lançado e relançado ao longo da Jornada mundial da juventude ( jmj ) de Lisboa por uma Igreja acolhedora, onde haja espaço para «todos, todos, todos», foi reiterado pelo Papa Francisco na conversa com os jesuítas de Portugal. O encontro aconteceu em 5 de agosto no Colégio de São João de Brito, uma escola dirigida pela Companhia de Jesus, durante a viagem do Pontífice à capital lusitana.

Na conversa — publicada na íntegra pela revista jesuíta La Civiltà Cattolica, o Santo Padre disse: «Perguntem o que quiserem. Não tenham medo de ser imprudentes ao perguntar». Vários tópicos foram abordados: dos desafios geracionais ao testemunho dos religiosos, das questões sobre a sexualidade humana ao desenvolvimento da doutrina, às preocupações com as guerras. «Desde o fim da segunda Guerra Mundial, as guerras têm sido incessantes em todo o mundo. E hoje vemos o que está a acontecer no mundo».

Resistências e atitudes reacionárias

As tensões intraeclesiais foram outro tema principal da conversa. Portanto, o “retrocedismo”, a “atitude reacionária” em algumas realidades eclesiais e a resistência ao Concílio Vaticano ii . «Muitos colocam em discussão o Vaticano ii sem o mencionar. Questionam os ensinamentos do Vaticano ii », disse o Papa.

Em seguida, respondeu a um religioso que contou que esteve nos Estados Unidos por um ano e ficou impressionado por ter visto “tantos, até mesmo bispos, que criticam o sua maneira de conduzir a Igreja”. «O senhor verificou que, nos Estados Unidos, a situação não é fácil: há uma atitude reacionária muito forte, organizada, que estrutura uma adesão até mesmo afetiva». E «a essas pessoas» ele lembrou «que o retrocedismo é inútil» e que há «uma justa evolução» na compreensão das questões de fé e moral: «Também a doutrina progride, se consolida com o tempo, se expande e se torna mais firme, mas sempre progredindo». Os exemplos da história são concretos: «Hoje, é pecado possuir bombas atómicas; a pena de morte é um pecado, não pode ser praticada, e antes não era assim; quanto à escravidão, alguns Pontífices antes de mim toleravam-na, mas hoje as coisas são diferentes. Então, as coisas mudam, mudam, mas com esses critérios».

Doutrina em evolução

«Para cima», foi a imagem que o Papa usou em seguida. «A mudança é necessária», repetiu; depois acrescentou: «A visão da doutrina da Igreja como um monólito está errada. Mas alguns saem, voltam para trás, são o que eu chamo “retrocedistas”. Quando se retrocede, forma-se algo fechado, desconectado das raízes da Igreja e perde-se a seiva da revelação».

A advertência do Papa foi clara: «Se não se mudar para cima, retrocede-se, e então assumem-se critérios de mudança diferentes daqueles que a própria fé lhe proporciona para crescer e mudar. E os efeitos sobre a moral são devastadores». Os problemas que os «moralistas» devem examinar hoje são, para o Pontífice, «muito sérios»; o risco é ver a ideologia suplantar a fé: «Pertencer a um setor da Igreja substitui a pertença à Igreja... E quando na vida se abandona a doutrina para substituí-la por uma ideologia, perde-se, perde-se como na guerra».

Mundanidade, o pior mal

Na conversa, o Papa ampliou o seu olhar para a sociedade atual, que ele vê como excessivamente «mundanizada», algo que o preocupa muito, sobretudo «quando a mundanidade entra na vida consagrada». O Pontífice referiu-se à recente carta que enviou aos sacerdotes de Roma, na qual adverte contra o clericalismo e o mundanismo espiritual como armadilhas nas quais se deve evitar cair.

«Uma coisa é preparar-se para dialogar com o mundo... outra é comprometer-se com as coisas do mundo, com a mundanidade», enfatizou, exortando mais uma vez a ler as quatro páginas finais da Meditação sobre a Igreja, na qual de Lubac afirma que a mundanidade espiritual «é o pior mal que pode penetrar na Igreja, pior até do que a época dos Papas “libertinos”».

Sociedade erotizada

Não ceder ao mundanismo, entretanto, não significa não dialogar com o mundo: «Não se pode viver em conserva», recomendou o Papa. «Vós não deveis ser religiosos introvertidos, sorrindo para dentro, falando para dentro, protegendo o vosso ambiente sem interpelar ninguém». Pelo contrário, é preciso «sair para este mundo», com os valores e desvalores que ele tem. Entre eles, o de uma vida demasiadamente “erotizada”.

A este respeito, Francisco sublinhou o problema da pornografia e o seu fácil acesso por meio dos telemóveis, convidando os sacerdotes a pedir ajuda e a falar sobre estes problemas, porque, ao contrário do passado, quando estas questões não eram tão agudas e eram até escondidas, «hoje a porta está escancarada, e não há razão para que os problemas permaneçam escondidos». «Se esconderdes os vossos problemas, é porque escolhestes fazer assim, mas não é culpa da sociedade nem sequer da vossa comunidade religiosa», afirmou.

Acolhimento a “todos”

Ainda sobre a questão da sexualidade, o Pontífice retomou o apelo a acolher as pessoas homossexuais na Igreja. «É evidente que hoje a questão da homossexualidade é muito forte, e a sensibilidade a esse respeito muda de acordo com as circunstâncias históricas», esclareceu. «Mas o que não me agrada minimamente, em geral, é que olhemos para o chamado “pecado da carne” com uma lupa, assim como se fez por tanto tempo em relação ao sexto mandamento. Quando se explorava os trabalhadores, se mentia ou trapaceava, não era importante mas, ao contrário, os pecados abaixo da cintura eram relevantes».

«Não se deve ser superficial e ingénuo, forçando as pessoas a fazer coisas e adotar comportamentos para os quais elas ainda não estão maduras ou não são capazes. Acompanhar as pessoas espiritual e pastoralmente requer muita sensibilidade e criatividade. Mas todos, todos, são chamados a viver na Igreja: nunca vos esqueçais disto».

“Alegria” pelo Sínodo

Não faltaram perguntas mais pessoais na conversa, como: «Santo Padre... o que pesa no seu coração e que alegrias experimenta neste período»? Francisco respondeu imediatamente: «A alegria que mais tenho em mente é a preparação para o Sínodo, mesmo que às vezes eu veja, nalgumas partes, que há falhas na maneira como está a ser conduzida. A alegria de ver como, a partir dos pequenos grupos paroquiais, dos pequenos grupos de igrejas, surgem reflexões muito bonitas e há um grande fermento. É uma alegria».

«O Sínodo não é uma invenção minha», disse Francisco ao lembrar que foi Paulo vi , no final do Concílio, «que percebeu que a Igreja católica tinha perdido a sinodalidade». Desde então, houve um «progresso lento» e, às vezes, «de maneira muito imperfeita». Hoje, portanto, há uma tentativa de dar novo vigor à sinodalidade, que, esclareceu o Pontífice, «não procura votos, como faria um partido político, não é uma questão de preferências, de pertencer a este ou àquele partido». «Num Sínodo — insistiu — o protagonista é o Espírito Santo. Ele é o protagonista. Portanto, devemos assegurar-nos de que é o Espírito que guia as coisas».