A visita à sede de Scholas Occurrentes, em Cascais, na manhã de quinta-feira, 3 de agosto, foi ritmada pelos testemunhos, em português, de três jovens de diferentes religiões, aos quais o Papa Francisco respondeu em espanhol, dando origem a um diálogo, cujo texto integral publicamos a seguir.
[Aladje Dabo, muçulmano] Bom dia! Scholas! Scholas! Scholas!
Quando este espaço me foi proposto, não tive dúvidas em aceitar e entrar porque nele todos partilham as suas emoções e sentimentos. É um espaço onde cada um contribui com aquilo que tem, de valores éticos e morais, para o bem-estar da comunidade, independentemente da própria religião ou origem. Sou muçulmano da Guiné-Bissau, mas sinto-me parte deste espaço. E, como muçulmano, sinto a obrigação e o dever de me unir e fazer parte deste movimento. Pois o próprio islão encoraja à boa convivência entre as crenças, entre as várias crenças. E exorta e preocupa-se pelo bem-estar da comunidade. Diz-nos aquilo que devemos fazer, ou seja, que devemos cuidar do próximo. Por isso gostaria de saber o motivo por que Scholas é um espaço com que todos se identificam e porque é necessário tanta diversidade para se obter uma obra de arte? Obrigado.
[Papa Francisco] Scholas torna possível que cada um se sinta interpelado. Com grande respeito, que não é um respeito estático, mas dinâmico, que põe as pessoas em movimento para fazerem coisas, para exprimirem-se agindo, como nesta pintura que, segundo as palavras de José Maria del Corral, é uma “capela sistina” pintada por vós [Aplausos]. Scholas põe-te em movimento, faz-te respeitar o outro e escutar o outro que tem algo a dizer-te, e o outro por sua vez escutar-te a ti porque tens algo a dizer-lhe. Scholas mostra-te o caminho para avançar e faz-te seguir para diante. Scholas é um encontro em que caminham todos, independentemente do país e da religião pedindo apenas para olharem para diante e caminharem juntos. E isto é construtivo como os três km e meio de mural que fizestes para chegar até aqui.
[Paulo Esaka Oliveira da Silva, de religião evangélica] Queria avançar um pouco na direção da diversidade, para entrar no tema que está na base dos dois meses do nosso trabalho: o caos. Nós, como grupo, e também eu individualmente, tivemos oportunidade de visitar várias comunidades diferentes, várias pessoas diferentes, de religião diferente, de culturas diferentes, e isto proporcionou-nos uma ocasião grandiosa para descobrir e aprofundar cada vez mais — não só dentro de nós mesmos, mas também no âmbito da comunidade inteira — quais são os verdadeiros sentimento que nutrem, os verdadeiros sofrimentos que sentem e deste modo dar-lhes a possibilidade de exprimir tudo isso com uma pincelada, com uma linha no mural. Dar-lhes a oportunidade de se expressarem! E isto inevitavelmente envolve-nos, toca o nosso coração e faz-nos pensar: Temos este sentimento? Estes sofrimentos fazem parte de nós, do nosso conviver? Então eu queria perguntar: Que seria da nossa existência sem o caos original? Obrigado.
[Papa Francisco] Tu dizes “caos”, está bem! É a crise... Sabe donde vem a palavra “crise”? Quando se recolhia o trigo, passava-se pelo crivo, crivava-se… (Notai o parentesco entre “crise” e “crivar”). E a crise, nas pessoas, são situações da vida, acontecimentos, problemas orgânicos, mau humor ou bom humor. Isto criva-te e tu deves escolher. Uma vida sem crise é uma vida asséptica. Gostas de beber água? Gostas. Mas, se te der água destilada, não presta, não sabe de nada! Uma vida sem crise é como a água destilada, não sabe de nada. Não serve para nada, senão para guardar no armário à porta fechada. As crises devem ser aceites, devem ser assumidas e resolvidas, porque ficar prisioneiro na crise também não é bom… seria um suicídio contínuo. É como estar para chegar e nunca mais se chega, não é? As crises têm que ser atravessadas, devemos aceitá-las. E raramente sozinhos. Também isto é importante no grupo Scholas: caminhar juntos para juntos enfrentar as crises, resolver as coisas. Importante é continuar para diante e crescer juntos. Então avante! Nem que seja apenas para comer uma feijoada.
[Mariana Barrada, católica] Nestes dois últimos meses, trabalhamos muito para conseguir fazer o mural que o Papa viu lá fora. Mas, este mural verdadeiramente representa o caos. O caos que, muitas vezes, quando o vivemos e o vivemos de perto, não compreendemos e é uma grande confusão. Parecem só linhas aleatórias. Mas no momento em que nos distanciamos, a certa distância começamos a conseguir ver formas, cores; começamos a conseguir encontrar um sentido neste caos, a conseguir pensar mais do que aquilo que frequentemente mal vemos ou sentimos, mas conseguimos exprimi-lo. Para mim, por exemplo, foi uma experiência muito importante, porque também já vivi momentos de grande caos na minha vida — acho que todos os vivemos — e a verdade é que ouvir a história dos outros, abrir-se verdadeiramente para escutar, para partilhar, para acolher todas as pessoas que participaram na realização deste mural, foi um privilégio, talvez ainda maior do que para eles, para nós que estamos aqui e tornamos possível isto ter acontecido. E tudo isto, porque buscamos este sentido; todos procuramos este sentido profundo de perceber, e que é algo maior do que o simples estar aqui. Assim queremos perguntar-lhe: Quando passou junto do mural, que sentiu, que experimentou ao longo do trajeto até aqui, e concretamente no coração deste mural que, para nós, na realidade é verdadeiramente o princípio ou o fim; não sabemos. E, antes de responder, queremos também, em nome de todos, oferecer-lhe um pincel; este pincel representa-nos a todos nós.
[Papa Francisco] É lindo o que disseste do caos? Alguém dizia que a vida do homem, a nossa vida humana, é fazer do caos um cosmos, ou seja, do que não tem sentido, está desordenado, é caótico fazer um cosmos, com sentido, aberto, convidativo, abrangente. Não quero fazer aqui o catequista, mas se virmos a estrutura da narração da Criação, que é uma narração mítica, no verdadeiro sentido da palavra “mito”. Pois o mito é uma forma de conhecimento e quem escreveu o relato da Criação usou este tipo de história. Um aparte! Esta narração foi escrita muito tempo depois que o povo judeu teve a experiência da libertação. Por outras palavras, primeiro houve toda a experiência do êxodo do povo hebreu e, depois, lançaram um olhar de retrospetiva. E como começou a história? Como se transformou o caos em cosmos? Lá, em linguagem poética, narra-se como Deus um dia do caos fez a luz, noutro dia faz o homem e continua a criar coisas e a transformar o caos em cosmos. Na nossa vida, sucede o mesmo: há momentos de crise (retomo esta palavra!), que são caóticos, deixas de saber em que ponto estás. Todos atravessamos estes momentos escuros. Caos. E aqui o trabalho pessoal, o trabalho das pessoas que nos acompanham, de um grupo como este, é transformar em cosmos. Torna-se difícil para mim, neste caos desta “capela sistina” (risos), pensar que há um cosmos por trás dela, porque qual é o cosmos? Estais a construí-lo vós na mensagem que estais a passar, no caminho que tendes à vossa frente. Nunca vos esqueçais disto: transformar o caos num cosmos. E este é o caminho de cada um, não é? Uma vida que permanece caótica é uma vida falida, e uma vida que nunca sentiu o caos é uma vida destilada, onde tudo é perfeito. E as vidas destiladas não dão vida, morrem em si mesmas. Mas se uma vida pessoal e relacional, que experimentou a crise como caos e aos poucos dentro de si, e na comunidade, conseguiu transformar-se num cosmos... parabéns!
[Uma jovem de Scholas Occurrentes] Muito obrigada, Papa Francisco, pelas tuas palavras. Obrigada.
[Uma jovem] É uma alegria para nós concluir assim este caminho. Mas, apesar desta experiência terminar, gostaríamos de pensar que a obra realmente nunca termina. Por isso, hoje, concluiremos começando. E, assim, quando um caminho se fecha, um novo caminho se abre. Decidimos chamar este projeto «Vida entre Mundos». De facto, o mural inteiro é uma experiência e uma expressão de vida que nascem do encontro de tantas realidades diferentes. Por isso, hoje daremos um salto e reuniremos um mundo físico com um mundo virtual.
[Uma jovem] Pedimos-te, querido Francisco, que nos acompanhes até à parede, que está atrás de ti e nos ofereças de presente a última pincelada deste mural, mas com um pincel muito particular, capaz de iniciar simultaneamente uma obra virtual que conseguirá reunir as diferentes comunidades de Scholas em todo o mundo.
[José María del Corral, presidente de Scholas Ocurrentes] Papa Francisco, o vídeo, esse pincel virtual de que falava Eugénia, é uma arma em prol da paz. Parece uma pistola porque disparará aqui, mas, em vez de matar, esta pincelada que darás na parede, vais dá-la também no mundo virtual. Neste momento, há miúdos de Scholas em Moçambique, que montaram um dispositivo no Tofo, para ver a pincelada que realizarás agora fazendo-a seguir no mundo virtual, porque os jovens querem que sejas tu a unir o mundo físico com o virtual para que o mundo virtual nunca deixe de ser concreto e comprometido com a realidade [aplausos]. Pintemos a parede.
[Papa Francisco] Esta é a história do bom Samaritano, e nenhum de nós está dispensado de ser um bom Samaritano. É uma obrigação que todos nós temos. Cada um tem que procurar sê-lo na vida, porque a vida se acaba e, se o não conseguiu, fica perdido como na guerra. O bom Samaritano encontrou o homem caído no chão… Antes dele, porém, passara um levita, tinha passado um sacerdote, mas estavam com pressa. Não lhe deram importância. Além de ter pressa, eles não podiam tocá-lo porque havia sangue; e, segundo a legislação da época, quem tocava no sangue tornava-se impuro. Consequentemente tinha de se purificar, não sei dizer por quanto tempo, de modo que isto impedia-os de cumprir o seu dever, não deviam tocar... «Morre, mas eu não te toco, não me torno impuro. Morre, mas eu impuro não fico». Não vos esqueçais disto. Quantas vezes nos pode passar pela cabeça: «Morre, mas eu não me torno impuro»! Quantas vezes se prefere a «pureza ritual» à proximidade humana! Segundo a mentalidade do tempo, os samaritanos eram mal vistos pelos judeus: eram «desgraçados», todos desgraçados e comerciantes… Não eram puros de mente, de coração; eram marginalizados, mas o bom Samaritano vê o homem por terra, pára e a narração diz que sentiu compaixão. Enquanto os outros pensavam «morre; preocupa-me a minha pureza», este sentiu compaixão. Deixo-vos a pergunta: O que é que me faz sentir compaixão? Ou tens um coração tão árido que já não sente compaixão? Cada um responda para si. Depois, que acontece? Leva-o para uma estalagem, pede um quarto para ele e diz ao estalajadeiro: «Olha! Daqui a três dias eu volto». Entretanto avanço isto e, se for mais, pagar-te-ei quando voltar. Afinal aquele dito “desgraçado” era um que pagava. Assim, temos os ladrões que o deixam meio-morto, o bom Samaritano que cuida dele, o levita e o sacerdote que se afastam para não se tornarem impuros. E Jesus diz: este entra no Reino dos Céus, porque teve compaixão. Pensai um pouco nesta história. Onde estou eu? Prejudico as pessoas? Onde estou eu? Evito as dificuldades reais ou não temo sujar as mãos? Às vezes na vida é preciso sujar as mãos, para não sujar o coração.
[Uma jovem] Obrigada, querido Francisco, pela tua prenda, um verdadeiro sinal para continuarmos a caminhar juntos.
[Papa Francisco] Agora dou-vos a bênção, mas prometei pedir depois a bênção também para mim.
Rezai por mim e quem dentre vós não o pode fazer, porque não sabe ou não costuma fazê-lo, mande-me energia positiva.