AIgreja primitiva considerava a Barca como figura da Igreja. Tertuliano (150-220) parece ter sido o primeiro a expressar esta temática por escrito (De Baptismo, xii , 7). E é fácil perceber a ligação: a Barca aparece como um dos lugares em que Jesus está no meio dos seus discípulos e a sós com eles. De facto, a Barca demarca um espaço privilegiado que Jesus partilha apenas com os seus discípulos. Mais ninguém entra nesta Barca. No relato de Mateus, apenas por uma vez, e é o texto que temos a graça de escutar neste Domingo xix (Mt 14, 22-33; cf. Mc 6, 45-52; Jo 6, 16-21), os discípulos sobem sozinhos, sem Jesus, para a Barca e dirigem-se para a outra margem do Mar da Galileia. Jesus não sobe para a Barca com eles, mas é Ele que os força a subir para a Barca e a fazer a travessia (v. 22). Enquanto os discípulos são forçados a embarcar nesta aventura, Jesus despede a multidão e sobe ao monte para rezar a sós (v. 23). Veio a noite, e a Barca, com os discípulos a bordo, já navegava em pleno Mar. Entretanto, as ondas começaram a agitar a Barca, pois o vento era contrário (v. 24), e é sabido que estas embarcações eram pouco resistentes. A arqueologia pôs a descoberto, na costa ocidental do Mar da Galileia, nas proximidades de Magdala, uma Barca de pesca do tempo de Jesus. Media 8 metros de comprimento por 2,5 metros de largura. Já se vê que se trata de uma embarcação frágil, presa fácil das ondas. A Igreja como a Barca, frágeis as duas, com Jesus por perto e seguindo as suas ordens.
2. Importa sublinhar e não perder de vista que Jesus está no monte a rezar. E, no Evangelho de Mateus, o monte, muitas vezes referido neste Evangelho, traz consigo a iniciativa de Jesus e mostra-o a abraçar e abrir caminhos novos para a nossa frágil humanidade. É assim o deserto e o monte da tentação (Mt 4, 8), que prepara o início da pregação de Jesus, o monte das bem-aventuranças (Mt 5, 1), o monte da oração (Mt 14, 23), o monte das curas (Mt 15, 29-31), o monte da Transfiguração (Mt 17, 1.9) e, finalmente, o monte indicado por Jesus na Galileia (Mt 28, 16), monte do reencontro de Jesus com os seus discípulos e do envio por todo o mundo e todo o tempo a anunciar o Evangelho.
3. Portanto, do cimo do monte em que reza ao Pai, Jesus não deixa de velar pelos seus discípulos, atarefados a lutar com o escuro da noite, o vento e as ondas. Esta importante cena de contornos pedagógicos em que os discípulos são, por assim dizer, atirados para a luta por Jesus, serve para fazer compreender aos discípulos que vão encontrar dificuldades e que vão ter de as enfrentar, mas que não vão conseguir resolvê-las sozinhos. Tenhamos sempre presente que esta situação foi preparada por Jesus, que forçou os seus discípulos a subir sozinhos para aquela Barca e a avançar mar adentro para a outra margem. Lição para os discípulos: é Jesus que nos envia, não para um mundo cómodo, feito à medida, mas para um mundo repleto de perseguições e adversidades. E é ainda neste contexto que os discípulos vão fazer a experiência da aparente ausência de Jesus naquela Barca, e que sozinhos não conseguem superar as provas que têm pela frente. No meio dos discípulos, na mente e no coração dos discípulos, tem de ressoar sempre aquela palavra de Jesus: «Sem mim, nada podeis fazer» (Jo 15, 5). Aparente ausência. Esta experiência serve também para Jesus ir preparando os seus discípulos para os tempos que se avizinham em que Ele deixará de estar presente fisicamente, mas em que estará presente de modo novo, não visível e sensível. Mas estará lá sempre com mansidão sem que sequer nos apercebamos da sua presença! Não podemos é ficar de tal modo atolados nas circunstâncias e nos problemas que deixemos de ver Jesus!
4. Mas nesta noite, no monte, Jesus reza ao Pai, e não deixa de velar também sobre os seus discípulos e de vir ao seu encontro nas horas mais difíceis ou na hora de acordar. Portanto, ei-lo que vem ao encontro deles caminhando sobre o mar (v. 25). Os relatos de Mateus e de Marcos anotam a hora da chegada de Jesus: quarta vigília da noite, que o mesmo é dizer, entre as três e as seis horas da madrugada, portanto, na parte final da noite. Recordemos que a hora habitual de acordar rondava as seis horas da manhã. «Andar sobre o mar» é claramente um indicador divino, que a Escritura Antiga reserva só a Deus, sendo Deus Aquele «cuja estrada é no meio do mar, / e o seu caminho sobre as muitas águas» (Sl 77, 20; cf. Jb 9, 8; Hab 3, 15). Ao ver um vulto a caminhar sobre o mar, pensaram aqueles discípulos que se tratava de um fantasma (muito em voga na mentalidade popular de então), e os índices do medo, já elevados por causa do vento e das ondas, subiram ainda mais face a esta nova ameaça, e gritaram de pavor (v. 26). É então que Jesus intervém, descodificando-se diante deles com uma palavra de revelação (verbo grego laléô): «Coragem! Eu sou! Não tenhais medo!» (v. 27). Sobretudo aquele «Eu sou» (egô eimi), Nome com que Deus se revela a Moisés (Êx 3, 14) e que atravessa a Escritura Antiga. Sob a proteção de Jesus, não há mais lugar para medos de espécie alguma.
5. Mateus empresta ainda a este episódio uma tonalidade própria, pois é o único dos Evangelistas a inserir o diálogo de Pedro com Jesus. Também Pedro vai caminhar sobre as águas, a seu pedido, e seguindo a ordem de Jesus: «Vem!» (v. 28-29). Entenda-se então: Pedro caminha sobre as águas como Jesus, mas não com autoridade própria. O que Pedro faz assenta na Palavra de Jesus e na Fé que o liga a Jesus. Importante lição: Pedro faz o mesmo que faz Jesus enquanto permanecer vinculado a Jesus pela Fé. Esmorecendo a Fé em Jesus, deixando de fixar o olhar em Jesus e colocando a sua atenção apenas nas circunstâncias envolventes, Pedro torna-se presa fácil de outras forças e dá por si a sucumbir no meio da tempestade. Pedro como nós. Mas, sentindo o perigo, Pedro volta-se uma vez mais para Jesus, e grita: «Salva-me, Senhor!» (v. 30). E sente logo a mão de Jesus que o segura, ao mesmo tempo que o repreende: «homem da pequena fé (oligópistos), por que duvidaste?» (v. 31). Nós como Pedro. Nós como Pedro, mas também como os outros discípulos que viram tudo desde a Barca, e sentem agora o vento amainar (v. 32), e se prostram diante de Jesus, expressão cultual, e confessam a sua fé: «Verdadeiramente, Tu és Filho de Deus!» (v. 33).
6. A outra figura deste Domingo é Elias, «o fugitivo» (1 Rs 19, 9-13). «Fugitivo» de si mesmo, de todos e de tudo. Todos o procuram para o matar, o mundo perdeu o seu encanto e o seu sentido, e até Deus não parece ser mais o mesmo. Como esta lição está cheia de atualidade... E o certo é que este Elias, que surge solto na página, sem pai nem mãe, sem livro anagráfico, apenas com Deus do seu lado (cf. 1 Rs 17, 1-24), continua a ser conduzido e comandado por Deus, que o salva da morte no deserto (cf. 1 Rs 19, 5-8), e o liberta das suas próprias amarras, fazendo-o sair [ sai !] para fora do escuro e do medo (cf. 1 Rs 19, 11), e abrindo à sua frente um caminho novo, tenro e frágil, como o que espera um bebé que sai do ventre materno. Sair (yatsa’) é o verbo do Êxodo, mas é também o verbo do nascimento! Ouve-se, nesta página imensa por duas vezes: no v. 11, no imperativo: «Sai!», e no v. 13, no indicativo: «Elias saiu».
7. É assim que o menino Elias, recém-nascido e recém-libertado, assiste no Sinai à sequência teofânica antiga: vento forte, terramoto, fogo! Tudo manifestações desatualizadas e deformadas de Deus. Outra vez a sequência retórica 3 + 1, a fazer apostar toda a atenção no 4! E aqui, depois do vento, do terramoto, do fogo, Elias ouve «a voz de um fino silêncio!» (1 Rs 19, 12b). Entenda-se: a voz de um silêncio cortante, voz de Deus que arde e opera dentro de nós. Colagem de figuras: «A tua Palavra ardia no meu coração como um fogo devorador, / encerrado dentro dos meus ossos», confessa Jeremias 20, 9. Já Moisés tinha descoberto aquela chama viva, que ardia no meio da sarça, e que não obedecia às leis da combustão, não queimava, / mas chamava (cf. Êx 3, 2-4). Também os dois de Emaús sentiram o coração a arder, devido à Palavra e ao Sentido novo que abria caminhos onde caminhos não havia (Lc 24, 32). Elias encontrou essa Palavra nova na «voz de um fino silêncio» (1 Rs 19, 12), escrita fina de Deus, / com ponta de diamante, / no coração do homem (cf. Jr 17, 1; 31, 33). E o autor da Carta aos Hebreus compara esse «fino dizer» ou «escrever» a uma espada de dois gumes, um bisturi, que opera dentro de nós e limpa a esclerose do nosso coração (cf. Jo 15, 3) e o zelo estéril, que rasga o âmago do homem e lhe deixa soltas as pregas do coração (cf. Hb 4, 12; Ap 1, 16). É claro que este silêncio suave não é o silêncio que Elias se preparou para fazer. Elias não se preparou para silêncio nenhum. Ele partiu para o Sinai à espera de se encontrar lá com o Deus forte e invencível, Senhor do vento, do terramoto e do fogo, que através desses poderosos elementos se expressava! Não é, portanto, o silêncio que move Elias. Não é Elias que faz silêncio! É o silêncio que faz Elias! Não sou eu que faço silêncio! É o silêncio que me faz!
*Bispo de Lamego
D. António Couto *