Um mês depois do encontro com a delegação de artistas — duzentos escritores, arquitetos, cineastas, atores, músicos, pintores, escultores — sob os afrescos da Capela Sistina, o apelo do Papa é mais atual e mais urgente do que nunca: para combater eficazmente a monotonia da homologação, é preciso olhar para a “alteridade”, mais profunda e mais livre, da arte. A criatividade do artista, disse o Papa Francisco a 23 de junho, participa na paixão geradora de Deus. Por isso, naquela ocasião, o Papa Bergoglio exortou os seus hóspedes a ser «olhos que olham e sonham». Nesta sua reflexão, o prefeito do Dicastério para a cultura e a educação vê a secularização da nossa época não só como problema, mas também, paradoxalmente, como oportunidade. Uma maneira de não dar nada por óbvio e de não se refugiar em automatismos confortáveis, aceitando o desafio do “hic et nunc”, do “aqui e agora”...
Oprocesso de secularização que há centenas de anos plasma de modo tão incisivo o Ocidente deve ser lido sob diversos ângulos. Se, por um lado, parece ter acolhido, nas suas várias modalidades, um acelerado «declínio ontológico» (para usar a expressão de George Steiner), por outro, contrastou o sedentarismo de certas visões rígidas, recuperando a condição metafórica e narrativa da verdade. Permitindo, não raro, a recuperação de vestígios que o silêncio ou a ausência tornam subitamente (mais) audíveis, como aquelas terras submersas que as grandes tempestades às vezes trazem à superfície.
No impactante retrato da contemporaneidade traçado pelo filósofo Charles Taylor, na ótica do crer e do não-crer, em A Secular Age, de 2007, um dado fundamental que sobressai é que o horizonte se modificou e as formas de acreditar — assim como de não acreditar — são todas sentidas como igualmente contestáveis e frágeis. Já não vivemos numa era de fé homogénea e a salvo de quaisquer questionamentos — se é que alguma vez podia ser descrita nestes termos — mas também não estamos no tempo em que o ateísmo parecia reivindicar uma espécie de superioridade cultural, como no período do Iluminismo e da sua longa herança. E Taylor posiciona-se contra uma narrativa que pretenderia projetar o futuro a partir de teorias da «subtração», como se houvesse incompatibilidade entre a religião e a complexidade da modernidade com os seus novos imaginários (sociais, culturais ou artísticos). Se uma estivesse presente, não haveria espaço para a outra. Em vez de falar de subtração, ele prefere falar da fase atual da história como «ocasião para a recomposição», que torna possível o surgimento de novas formas, de novos modos de existência. Com efeito, dá todo um mundo de relações a redescobrir e a inventar, mas é necessário construir um percurso de conversação e debate, livre de esquematismos, fantasmas e constrições anteriores, ativando formas genuínas de reconhecimento recíproco. Pois bem, isto passa por privilegiar o exercício do diálogo, o intercâmbio narrativo, o encontro entre atores não necessariamente sobrepostos, mas capazes de escuta mútua. O recomeçar da amizade.
Assim, podemos compreender o significado do encontro do Papa Francisco com os artistas na Capela Sistina e o impacto epocal das suas palavras, que traçam um horizonte corajoso, necessário e novo: «A vossa presença alegra-me, porque a Igreja sempre teve uma relação com os artistas que pode ser definida como natural e, ao mesmo tempo, especial. Trata-se de uma amizade natural, porque o artista leva a sério a profundidade inesgotável da existência (...). Mas é também uma amizade especial, sobretudo se pensarmos nos muitos trechos de história percorridos juntos que pertencem ao património de todos, crentes ou não-crentes. Conscientes disto, esperamos novos frutos também no nosso tempo, num clima de escuta, liberdade e respeito».
José Tolentino de Mendonça