«Imigrantes mortos no mar...». Há dez anos, o Papa Francisco, peregrino em Lampedusa, iniciava assim a sua homilia, traçando depois uma linha de distinção entre as águas da morte e as da vida. Se voltasse, infelizmente, repetiria as mesmas palavras.
Na Vigília pascal de 2011, lemos as escrituras como se descrevessem a história da ilha através dos olhos de Deus. No Êxodo, as águas dão a morte aos algozes, aos escravagistas, aos traficantes de carne humana, aos contrabandistas, enquanto dão a vida aos errantes em busca de um pouso numa nova terra. Mas a história atual das migrações subverte o dado bíblico.
No Êxodo, a libertação dos oprimidos não passa pela construção de lagers, nem de contentores utilizados como locais de detenção desumana. Pelo contrário, nas águas das muitas “Lampedusas” políticas, antes de serem físicas, assiste-se ao trabalho maléfico de desnortear, de apagar a memória dos “nomes” — são apenas migrantes, não seres humanos — transformando a nossa numa civilização sem memória e uma sociedade sem dor.
Assim, nas “Lampedusas” — que são Pylos, Cutro, Lesbos, Lampedusa... — naufragam juntos o Nome de Deus e os nomes das suas filhas e dos seus filhos, das suas meninas e dos seus meninos... naufraga a civilização. Em nome de Deus, que é Misericórdia... paremos o naufrágio da civilização!
Esta “Porta da Europa”, assim como o cais Favarolo, são testemunhas silenciosas do processo que vai contra a criação de Deus. São testemunhas de uma guerra, não menos fratricida do que a guerra na Ucrânia e as outras guerras que mancham o mundo de sangue, só que aqui os arsenais não são constituídos por armas, mas por corpos de migrantes. Corpos que a política exibe como números, se permanecerem vivos; corpos de delito, que nem sequer merecem ser contados, se morrerem afogados no Mediterrâneo ou no Egeu, e/ou de privações na rota dos Balcãs, de sede no deserto do Níger, de violação e violência nos lagers da Líbia.
Relendo a Sagrada Escritura, descobriríamos que, se a fronteira fosse um muro construído sobre a água, desapareceria o conceito de criação e permaneceria o conceito de «isolamento», que é a traiçoeira e demoníaca tentação destrutiva de todos os tempos.
Para os migrantes, a água é um reservatório de esperança, mas perigoso, porque ambíguo quanto ao resultado: «Conseguirei?»; «Sobreviverei a esta perigosa travessia?»; «Chegarei a um futuro melhor?». Para eles, ela recorda o fracasso, o medo, a morte, o túmulo. Que o Mediterrâneo volte a ser um ventre de trocas fecundas, um gerador de culturas, de credos e de civilização!
Para um homem do mar, o porto é ventre, útero, lugar de abrigo e de repouso, lugar de fecundidade e de vida, de geração e de regeneração. Faz lembrar o ventre da mãe; os seus cais são como braços abertos e acolhedores; as suas lanternas, à esquerda e à direita, como estrelas polares em desertos de água e escuridão. Fechar o seu acesso não é escolher a esterilidade? Não considerar as mulheres e os homens equivale a praticar abortos sobre abortos, sem possibilidade de objeção de consciência?
Na triste vicissitude das migrações, este porto deixou de ser um lugar de vida para ser um local de desembarque de cadáveres e/ou de seres «semivivos»: um lugar de sepultamento para os primeiros, o primeiro lugar de «detenção» para os segundos, considerados estrangeiros ilegais. É testemunha tanto do trânsito deplorável de numerosos mortos, como de vidas extraídas das garras da morte. Vidas salvas, alimentadas, cuidadas... por agentes sanitários, forças policiais, voluntários, cidadãos, movidos não importa se pela fé ou pelo sentido do dever, mas certamente pela compaixão e pela ternura, que salvam do escárnio e da profanação os corpos dos migrantes mortos, preservando-os primeiro na piedade e depois nos nichos funerários dos cemitérios.
Olhemos então para esta porta através da qual se espreita o horizonte. Ela tem o poder de nos fazer sonhar com a justiça e de nos horrorizar com a infâmia e a iniquidade. Sonhemos aqui com o Papa Francisco a alegria «de nos misturarmos, de nos encontrarmos, de nos abraçarmos, de nos apoiarmos, de participarmos nesta maré um pouco caótica que se pode transformar numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana de solidariedade, numa santa peregrinação» ( eg , 87).