· Cidade do Vaticano ·

Reflexão litúrgico-pastoral Para o domingo xiv do tempo comum

Cristãos com a grandeza dos pequeninos

 Cristãos com a grandeza dos pequeninos  POR-027
06 julho 2023

As poucas linhas do Evangelho deste Domingo xiv do Tempo Comum, retiradas de Mateus 11, 25-30, guardam o segredo mais inteiro de Jesus. Há quem considere estas breves linhas como o mais belo e importante dizer de Jesus nos Evangelhos Sinópticos. Na verdade, estas linhas leves e ledas como asas guardam o segredo mais inteiro de Jesus, o seu tesouro mais profundo, o tesouro ou a pedra preciosa da parábola (Mt 13, 44-46), preciosa e firme, porque leve e suave como uma almofada, onde Jesus pode reclinar tranquilamente a cabeça (Jo 1, 18), e tranquilamente conduzir, dormindo mansamente à popa, a nossa barca no meio deste mar encapelado (Mc 4, 38). Nos lábios de Jesus, chama-se « pai » (Mt 11, 25) este lugar seguro e manso, doce e aprazível, que acolhe os pequeninos (nêpioi), os senta sobre os seus joelhos, lhes conta a sua história mais bela, e lhes afaga o rosto com ternura. Diz bem Santo Agostinho que «o peso de Cristo é tão leve que levanta, como o peso das asas para os passarinhos!».

2. «Eu Te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos pequeninos (népioi)» (Mt 11, 25). Sim, aos pequeninos, grego népioi, que em sonoridade portuguesa daria «népias», nada, nenhuma ciência, nenhum poder, nenhum valor, nenhuma autonomia, radical dependência e heteronomia, realidades tão de fora do mundo moderno, senhor de si e dobrado sobre si, incurvatus in se, para usar a expressão de Lutero, amigo de si mesmo (phílautos), de acordo com a advertência de Paulo a Timóteo (2 Tm 3, 2), e não amigo de Deus (théphilos), a quem Lucas dedica a sua obra em dois Volumes (cf. Lc 1, 3; At 1, 1). Oh abismo da sabedoria dos pequeninos, daqueles que nada podem fazer sozinhos, mas que sabem confiar, e sabem que podem confiar, e sabem em quem confiar (cf. 2 Tm 2, 12). É sobre os pequeninos que recai toda a atenção de Jesus, que, de resto, voluntariamente se confunde com eles, pois diz: «Todas as vezes que fizestes isto (ou o deixastes de fazer) a “um destes meus irmãos, os mais pequeninos”, foi a Mim que o fizestes (ou o deixastes de fazer)» (Mt 25, 40 e 45). E, no ritual do Batismo, são estes os dizeres que acompanham a entrega da vela acesa aos pais e padrinhos da criança batizada: «a vós, pais e padrinhos, se confia o encargo de velar por esta luz, para que estes pequeninos, iluminados por Cristo, vivam sempre como filhos da luz…».

3. Abre-se aqui um dos mais belos fios de ouro da espiritualidade cristã, habitualmente denominado por «infância espiritual», o «pequeno caminho», «o permanecer pequeno», «o estar nos braços de Jesus», que Santa Teresinha do Menino Jesus (1873-1897) exalta na sua «História de uma alma», que tem a sua nascente mais funda naquela maravilha que é o Salmo 131, 2, em que o orante se diz assim: «Estou tranquilo e sereno/, como criança desmamada (gamûl),/ no colo da sua mãe;/ como criança desmamada,/ está em mim a minha alma». Não se trata de uma quietude irracional e cega, semelhante à do recém-nascido, depois de ter mamado no seio da sua mãe. O texto fala de uma criança desmamada (gamûl). E é sabido que, no Oriente, o desmame oficial acontecia tarde, pelos três anos, e dava origem a uma grande festa familiar (cf. Gn 21, 8; 1 Sm 1, 22-24). Também o famoso Padre Jesuíta francês, Léonce de Grandmaison (1868-1927), se segurava neste fio de ouro, e rezava assim: «Santa Maria, Mãe de Deus, conserva em mim um coração de criança, puro e transparente, como uma nascente».

4. Os pequeninos, os népioi, népias, que nada valem de per si, dependem dos seus pais ou de alguém que cuide deles com carinho. Se Jesus os traz desta maneira para a primeira página, temos então de perguntar: o que é que são então cristãos adultos, maduros na sua fé? Serão aqueles que sabem tudo, que estão seguros de si, que chegaram ao fim de um curso ou percurso, que têm um estatuto, um status, que têm um diploma na mão, que já não são dependentes porque já não precisam de ninguém que cuide deles? Seguramente não. Cristãos adultos na sua fé são aqueles que sabem que precisam de Deus a todo o momento, e que sabem debruçar-se sobre os pequeninos com amor. Cristãos adultos na fé não somos nós que pensamos que temos as chaves de tudo e de todos, que abrimos ou fechamos todas as portas, mas somos nós como filhos de Deus, a quem carinhosamente tratamos por pai (ʼAbbaʼ), em quem depositamos toda a nossa confiança, somos nós como filhos e irmãos, carinhosamente atentos uns aos outros, até ao ponto sem retorno de já não sabermos viver senão repartindo o pão e o coração.

5. «Eu Te bendigo, ó pai , Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos pequeninos» (Mt 11, 25; cf. Lc 10, 21). Esta é uma das muitas vezes em que, nos Evangelhos, Jesus aparece a rezar ao pai , mas é uma das poucas vezes em que nos é dada a graça de ouvirmos o conteúdo da oração de Jesus [além desta vez, só no Getsémani: « pai , se é possível, afasta de mim este cálice, mas não se faça a minha vontade, mas sim a tua» (Mt 26, 39 e 42), e na Cruz por três vezes: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Mt 27, 46); « pai , perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34); « pai , nas tuas mãos entrego o meu espírito» (Lc 23, 46)]. Note-se que a belíssima oração do « pai Nosso» (Mt 6, 9-13; cf. Lc 11, 2-4) é-nos ensinada por Jesus, mas não o ouvimos a rezá-la. Um cristão adulto na sua fé, isto é, na sua confiança de criança, tem de se pôr, como Jesus, totalmente nas mãos seguras e carinhosas do pai , única direção da sua e da nossa vida dada, recebida e oferecida.

6. É assim que o Evangelho entra por nós adentro, cortante como uma espada de dois gumes ou como um bisturi que opera dentro de nós (Hb 4, 12; Ap 1, 16), e de que não podemos fugir. Como aquela «voz de um fino silêncio» (qôl demamah daqqah) (1 Rs 19, 12), puro murmúrio que fez estragos nas entranhas de Elias, ou aqueles «gemidos sem palavras» (stenagmoîs alalêtois) (Rm 8, 26), lalação filial, em que conta e canta a ternura do Espírito que em nós soletra ՚Abba՚, ՚Ab—ba՚, Pa-pá (Gl 4, 6). É como o dizer ardente do Deus vivo que ferve nas entranhas, no coração, na pulsação, nos lábios, nas veias, nos ossos e na alma, como se vê em Jeremias 20,9, em Isaías 6, 6-7, em Elias (Sir 48, 1), naqueles dois de Emaús (Lc 24, 32) e naqueles que, naquele quinquagésimo dia, estavam em Jerusalém (At 2, 3): como o fogo os modelou e habilitou para entender e para dizer tudo de novo, de modo novo! Vem-me à memória uma velha história que circulava na África Oriental, e que falava de uma mulher pobre que andava sempre com uma Bíblia grande debaixo do braço. Dizem que nunca se separava dela. As pessoas que a viam passar todos os dias, faziam chacota dela com dizeres do género: «Por quê sempre a Bíblia, se há tantos livros para ler?» Mas a mulher lá seguia o seu caminho, imperturbável e indiferente às provocações. Um dia, porém, a mulher da Bíblia viu-se cercada por um bando de escarnecedores. Então, levantando bem alto a sua Bíblia, a mulher, abrindo um grande sorriso, disse: «Eu bem sei que há muitos outros livros que posso ler! Mas este é o único livro que me lê a mim!».

7. Nenhum arrogante raciocínio, nenhum orgulho ou gorgulho, nenhuma escada pelas nossas mãos construída, conduz a Deus. Nenhuma arrogância conduz a Deus. Jesus, Mestre novo, não aponta para coisas nem ensina coisas. Não nos chama a responder a um inquérito, a preencher uma ficha, responder a uma entrevista, fazer uma inscrição, pagar a matrícula, não entrega apontamentos. O seu ensino é pessoal. Apresenta-se e diz: «Vinde a Mim» e «aprendei de Mim» (Mt 11, 28 e 29). Ele não ensina coisas. Ensina-se a si mesmo, dá-se a si mesmo. Aprendeu do Pai, que tudo lhe deu (Mt 11, 27). Dar e receber. Jugo suave e carga leve (Mt 11, 30). Como os missionários do Evangelho, que devem partir sempre sem ouro, nem prata, nem cobre, nem saco, nem duas túnicas, nem sandálias, nem bastão, dando de graça o que de graça receberam (cf. Mt 10, 8-10). Nenhum acessório ou mero adereço nos faz falta. Dar o acessório, o adereço, o supérfluo, o que sobra, não tem a marca de Deus, não é fazer a verdadeira memória de Jesus, que se entregou a si mesmo por nós (Ef 5, 2), que se entregou por mim (Gl 2, 20). Como é da nossa humana experiência, o acessório, o adereço, o supérfluo deixa a vida intacta. O dom de si mesmo, se for verdadeiro, afeta a nossa vida, porque é decisivo e incisivo, é para sempre, tem a marca da vida eterna, põe-nos no seguimento de Jesus, a par com Jesus, ao ritmo de Jesus, completamente lado-a-lado com Jesus, debaixo do mesmo jugo, fazendo o mesmo caminho.

8. Esta agenda [ age + nda ] de Jesus, que fica «connosco todos os dias» (Mt 28, 20), podemos vê-la diariamente na sua maneira feliz, ousada, pobre, despojada, humilde, filial, fraternal, próxima e dedicada de viver, bem ao jeito do Rei novo e fazedor de paz e de felicidade, sonhado por Zacarias (9, 9-10) no último quartel do século iv a. c ., em claro contraponto com o esplendor militar dos cavalos e pesados carros de combate de Alexandre Magno, que então atravessava a costa palestinense a caminho do Egito. Da agenda de Jesus, faz parte indeclinável a completa orientação da sua vida filial para o Pai, abrindo a este mundo novos rumos e desafios imensos de paz e de fraternidade. Não carros e cavalos, glória militar, vanglória do poder. Jesus, o Rei novo, belo e manso, vem montado num jumento, que não é animal que se leve para a guerra! «Estrada bela! É andando nela, que encontraremos repouso para a nossa vida» (Jr 6, 16).

*Bispo de Lamego

D. António Couto *