· Cidade do Vaticano ·

Reflexão litúrgico-pastoral
Para o domingo XIII do tempo comum

Um copo de água e a vida eterna

 Um copo de água e a vida eterna  POR-026
28 junho 2023

Neste Domingo xiii do Tempo Comum, escutaremos o final do Discurso Missionário de Jesus no Evangelho de Mateus (10, 37-42), que iniciámos há dois Domingos atrás. O texto desdobra-se em duas vertentes. Primeira: o discípulo enviado por Jesus em missão terá de viver totalmente vinculado a Jesus, totalmente empenhado na causa de Jesus e com Ele totalmente identificado (Mt 10, 37-39), notas insistentemente repetidas ao longo dos Evangelhos. Segunda: específico desta última parte do Discurso Missionário de Jesus é que este Discurso não é dirigido apenas aos missionários, mas sobretudo àqueles que os acolhem. O acolhimento feito aos missionários reveste-se de extrema importância na parte do Discurso hoje escutado, pois é dito que acolher os enviados de Jesus Cristo é acolher o próprio Cristo e Aquele que o enviou (Mt 10, 40). Para tornar este aspeto visível e audível, neste pequeno texto de seis versículos, o verbo «acolher» (déchomai) faz-se notar por seis vezes (Mt 10, 40 [4 vezes].41 [2 vezes]). «Acolher» é, pois, a palavra-chave do Evangelho de hoje. E a imagem daquele simples copo de água continuará ali sempre, sobre a página ardente do Evangelho, para nos dizer que, nestas contas do rosário do Reino de Deus, teremos de começar sempre pelo abecedário.

2. A primeira nota de todo o anunciador (kêryx) consiste não tanto naquilo que anuncia, mas na fidelidade àquele que o envia. São Paulo di-lo com rigorosa precisão: «Como hão de anunciar (kêrýssô), se não forem enviados (apostéllô)?» (Rm 10, 15). O estreitíssimo vínculo que une os anunciadores do Evangelho a Jesus e ao Pai, que o enviou, constitui a força inquebrável e a pérola inegociável dos discípulos de Jesus, por Jesus enviados. Esta força que une a Jesus os seus discípulos é mais forte e valiosa do que a família que nos é mais próxima e querida: o pai, a mãe, o filho, a filha. É mesmo mais forte e valiosa do que a nossa própria vida terrena. Em boa verdade, cada enviado de Jesus é um portador de Deus, um mostrador de Deus. Porque Deus tem de andar ali ao lado de cada enviado de Jesus. De cada enviado de Jesus, nós temos de dizer: «Vê-se Deus daqui!», porque só Deus nos pode pedir tanto! Sim, só Deus me pode pedir que me desprenda da minha família e… da minha própria vida! É assim, e é só assim, que quem me vê, pode ver também Deus perto de mim! Para os missionários do Evangelho o que vale é a vida eterna, a vida divina, a vida vivente, a vida que não morre, que por Deus lhes é dada, e que eles podem e devem oferecer como dom supremo, assim como podem ainda ser também fonte de bênçãos para quem evangelicamente os acolher. É, portanto, inegociável o amor a Jesus, isto é, a nossa ligação e identificação com Jesus. Devíamos ter sempre diante de nós a cena em que Jesus confia a Simão Pedro o cuidado pastoral dos seus próprios cordeiros e ovelhas. Jesus pergunta por três vezes: «Simão, filho de João, tu amas-me?» (Jo 21, 15-17). Salta à vista que entre aquilo de que Pedro tem necessidade imperiosa para levar por diante a missão que lhe é confiada, o seu amor a Jesus terá de ocupar sempre o primeiro lugar. A proximidade e simpatia para com as pessoas têm também a sua importância e lugar, mas fica bem claro que ocupam um patamar mais abaixo.

3. Acolher os Doze, os Apóstolos, os discípulos de Jesus, os missionários e evangelizadores de todos os tempos, não consiste apenas em recebê-los educadamente em casa. Consiste também, e sobretudo, em expor-se ao anúncio que trazem, ao testemunho que dão. Não consiste apenas em abrir-lhes as portas da casa, embora isso também seja importante para quem deixou tudo, mesmo tudo, por causa de Jesus Cristo (Mt 10, 37-39), e de vez em quando precisa de um quarto de hora de hospitalidade. Mas tem muito mais a ver com abrir o coração à mensagem de que são portadores, sabendo e vendo bem que, por detrás dos anunciadores do Evangelho, está Jesus, que os enviou, e por detrás de Jesus está o Pai, que enviou o seu Filho Monogénito. Portanto, acolher os enviados de Jesus é acolher o próprio Jesus, é acolher Deus! Portanto ainda e insistentemente, acolher os anunciadores do Evangelho, os mensageiros, os profetas, os justos, é abrir a porta a Deus, abrir o coração a Deus. É tomar consciência de que ali acaba o nosso poder, e começa um poder novo. O anúncio de que os anunciadores são portadores implica, da parte destes, total fidelidade e identificação com Jesus, e, da parte de quem acolhe o anúncio, implica decisões e incisões que podem ir até ao sangue, requer uma nova postura pró ou contra Jesus Cristo, uma escolha que não admite compromissos ou soluções retóricas, pode dividir a humanidade, a família, o coração de cada um. Muitas vezes esperamos que os profetas, dada a sua proximidade com Deus, nos ajudem a justificar os nossos compromissos e comportamentos, a nossa maneira de viver assim-assim, e, porventura, que nos possam até ajudar a obter alguma vantagem ou lucro. Mas, nesta matéria, o profeta é intolerante e radical. Não vende nada. Também não se vende. Deixa Deus em nossa casa. E passa a ser tudo novo. Se somos hóspedes de Deus, é forçoso aprender a conviver com Deus. Em última análise, só sabemos acolher, porque também já fomos acolhidos.

4. Acolher Jesus ou os seus enviados, «portadores de Jesus», «portadores de Deus», «portadores do Espírito», para usar a bela terminologia de Santo Inácio de Antioquia quando, a caminho do martírio em Roma, escreve aos Efésios (Ad Ephesios 9,2), é aceitar expor-se à cirurgia da Palavra, que divide junturas e medula e julga as disposições e intenções do coração (Hb 4, 12). Acolher os enviados de Jesus não é como dar uma receção ou organizar uma festa de amigos. É aceitar conviver com um bisturi dentro de si, com um fogo a arder nos ossos e na alma, dentro de si, como se vê em Jeremias 20,9, em Isaías 6, 6-7, em Elias (Sir 48, 1), naqueles dois de Emaús (Lc 24,32) e naqueles que, naquele quinquagésimo dia, estavam em Jerusalém (At 2, 3): como o fogo os modelou e habilitou para entender e para dizer tudo de novo, de modo novo! Ousar andar tão perto de Deus, aproximar-se de Deus, é «empenhar o coração» (ʽarab ʼt—libô), no sentido genuíno de «pôr o coração no prego», numa casa de penhores, como refere de forma exemplar Jr 30, 21. É como subir a um poste de alta tensão, onde está escrito: «Perigo de morte!». Quem entra no mundo de Deus ou deixa Deus entrar no seu mundo, sabe bem que anda Deus ali por perto, e sabe, por isso, que não andará nunca perdido, e compreende ainda que nem esta vida terrena é o bem maior, nem a morte o maior mal. O valor mais alto é a nossa ligação com Deus e com a sua vontade. É, afinal, tão arriscado como oferecer um copo de água com amor a um missionário. É verdade, diz-nos o Evangelho, que este simples copo de água pode valer a vida eterna! (Mt 10, 42).

5. A melodia do acolhimento vem de longe. Nove séculos antes de Cristo, lê-se hoje no Segundo Livro dos Reis 4, 8-11.14-16, que uma mulher rica de Sunam, uma aldeiazinha situada na planície meridional do monte Carmelo, acolheu em sua casa o profeta Eliseu, em quem ela reconhece um «homem de Deus» (2 Rs 4, 9). Eliseu, do hebraico ʼelîshaʽ ou ʼelyashaʽ [= «Deus salvou»], é apresentado como filho de Safat, natural de Abel Mehôlah, no vale do Jordão, e os Livros dos Reis mostram-no como sucessor de Elias e continuador da sua missão profética. Para tal, recebe o manto de Elias (1 Rs 19, 19; 2 Rs 2, 13) e a dupla porção do seu espírito (2 Rs 2, 9), e segue o mestre até ao seu arrebatamento (1 Rs 19, 21; 2 Rs 2, 1-11). A hospitalidade da mulher de Sunam traduz-se na construção de um pequeno quarto no terraço da casa, equipado com uma cama, uma mesa, uma cadeira e uma lâmpada (2 Rs 4, 10). O suficiente para Eliseu, o «homem de Deus», poder repousar quando estiver de passagem por Sunam. Mas, como quem acolhe um profeta por ele ser profeta, recebe recompensa de profeta, também a mulher hospitaleira de Sunam recebe uma recompensa nova: um filho! (2 Rs 4, 16). A Palavra profética tem, de facto, uma energia nova: é a Palavra antes das coisas e do homem, de modo diferente da história comummente entendida, que põe as palavras depois das coisas e do homem. Aí está a maravilha de se viver com o Deus Criador à nossa beira: «Deus diz e tudo acontece» (Sl 33, 9).

D. António Couto
Bispo de Lamego