· Cidade do Vaticano ·

Irmã Lúcia de Jesus

Memória da beleza de Deus
no silêncio contemplativo

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28 junho 2023

Oque significa ser testemunha senão fazer da vida um memorial, a memória viva da experiência de Deus? Assim se diz a vida de Lúcia de Jesus (1907-2005), a pastorinha de Fátima tornada religiosa carmelita, que cedo compreendeu ser sua vocação viver no mundo, «lembrando aos que passam a grandeza das divinas misericórdias» (Memórias da Irmã Lúcia, p. 190). O seu nome, Lúcia, oferece aliás a justa metáfora que sintetiza a sua vida aberta à luz de Deus e feita reflexo dessa luz. A sua biografia traduz-se num permanente encontro com o Deus que se revelou como Luz ao seu coração em busca. Lúcia acolhe a imensidão da luz de Deus, deixando-se de tal forma seduzir por ela, que o seu rosto se converte num inesperado reflexo dessa luz. Foi o seu projeto de vida, que é projeto de santidade: «viver a luz de Deus que habita em mim, viver na luz, viver da luz e viver para a luz» (Diário, 18.6.1970).

Enamorada pela luz bela de Deus


Com os seus primos São Francisco e Santa Jacinta Marto, a agora venerável Lúcia de Jesus foi testemunha da boa nova que a Senhora do Rosário lhes confiou em Fátima: a beleza cativante de um Deus que é comunhão de amor. O mistério do Amor trinitário de Deus no qual Lúcia foi introduzida pelo Anjo e depois envolvida na aparição de junho de 1917, fascinou-a e tornou-se o coração pulsante da sua vida: mistério contemplado, amado e adorado no silêncio contemplativo e orante, desde a sua infância até aos últimos dias da sua vida de clausura. No livro Como vejo a mensagem, à longa distância de 66 anos dessa primeira experiência, Lúcia evoca deste momento os braços abertos de Maria que «com um gesto de maternal proteção, nos envolveu no reflexo da Luz do imenso Ser de Deus. Foi uma graça que nos marcou para sempre na esfera do sobrenatural» (p. 44). Este abraço do amor de Deus é, para ela, não apenas um momento inaugural de conversão, mas o lugar onde há de habitar toda a sua existência e onde se fundamenta permanentemente o seu compromisso vocacional.

Num mundo em que, por um lado, muitos crentes perderam ou, porventura, nunca experimentaram a beleza de Deus no coração e na vida e em que, por outro, muitos são os sedentos de uma beleza que preencha as ânsias profundas da existência, o testemunho de Lúcia vem recordar que, como diria J. B. Metz, «à crise de Deus só se responde com a paixão por Deus» e que à sede de Deus se responde com a transparência de uma vida enamorada pelo seu mistério de beleza e bondade.

Consagrada ao Coração da Mãe


Tal como o discípulo João junto à cruz, também a Irmã Lúcia recebeu Maria «em sua casa», com especial afeto e devoção. Assim se exprime: «Ver ali uma Senhora tão linda, que me diz ser do céu, senti uma alegria tão íntima que me encheu de confiança e amor; parecia-me que já nada me podia separar desta Senhora» (Como vejo a Mensagem, p. 30). Fora aliás a promessa que a Senhora lhe fizera em julho de 1917: «Eu nunca te deixarei. O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá a Deus». Lúcia confia-se a esta certeza e, na contemplação desse Coração Imaculado, aprende a humildade e a simplicidade que hão de surpreender todos os que com ela se cruzem. Esta humilde simplicidade de coração corrobora a credibilidade da mensagem que ela anuncia.

Lúcia consagra-se ao Coração materno de Maria que prometera acompanhá-la e empenha-se na consagração do mundo todo a este Coração. A Senhora prometera: «Por fim, o meu Coração Imaculado triunfará». Esta promessa recorda a vitória da Misericórdia, de que o Coração Imaculado é um símbolo humilde, mas também terno, afetuoso e atraente para conduzir o coração humano até Deus. Também do paradoxal triunfo do Coração a vida de Lúcia se faz imagem: ocultada na clausura, longe do palco dos grandes decisores e das luzes da fama, a santidade leveda no silêncio contemplativo, na partilha simples, no acolhimento de quem passa e na oração confiante. É o triunfo da santidade que nada mais é do que «viver na luz de Deus».

Testemunha para o mundo


À Irmã Lúcia coube, de modo particular, recordar à Igreja e ao mundo a boa notícia da presença de Deus. A mensagem e Fátima é uma palavra profética, de advertência e, ao mesmo tempo, de promessa de reconciliação e de paz. No momento em que as guerras mundiais mergulhavam em violência o século xx , em que povos se envolviam num processo de aniquilação e de morte jamais visto e imaginado, Deus, através da Mãe do seu Filho, dá sinais da sua misericórdia: anuncia-se presente, convida os homens a não se resignarem à banalização do mal e desperta a esperança através de um amplo renascimento espiritual de fervor, oração e conversão profunda dos corações.

Lúcia foi testemunha desta mensagem, uma memória viva ao longo do século xx , na verdade, na humildade e na discrição do seu silêncio contemplativo. Surpreende que uma humilde criança pastora, tornada simples religiosa de clausura, encontre na intimidade da sua cela carmelita a dinâmica da fidelidade à sua vocação missionária. Lúcia oculta-se no segredo da sua clausura para que a luz da mensagem brilhe intensamente. Dali, escreve as memórias dos acontecimentos de Fátima, mantém uma troca epistolar com a Igreja e o mundo e não desiste nunca de fazer eco da mensagem evangélica que acolhera.

A sua vocação ao Carmelo foi como que o coroar do “Sim” dado a Nossa Senhora logo na primeira aparição. A Irmã Lúcia foi compreendendo que, na sua vocação de carmelita a que se sentiu chamada por Deus, se poderia consagrar e oferecer totalmente a Ele para bem de toda a humanidade, numa vida de oração e sacrifício. Os mestres do Carmelo ensinar-lhe-ão o caminho do discipulado, que foi sempre um caminho de obediência.

Evocar a vida de Lúcia é, pois, um convite a reconhecer no tempo presente, também ele carregado de incertezas, temores e violências, a presença certa e misericordiosa de Deus. É também uma interpelação feita à Igreja a que se faça constantemente comunidade comprometida com um modo de ser simultaneamente corajoso e discreto, deixando transparecer a memória do evangelho.

António Marto
Bispo emérito de Leiria-Fátima