· Cidade do Vaticano ·

Discurso do Pontífice ao Conselho de segurança das Nações Unidas

É preciso mais coragem
para procurar a paz
do que para fazer a guerra

TOPSHOT - Residents survey the remains of their home in the aftermath of a Russian attack on ...
22 junho 2023

É preciso mais coragem para se sentar à mesa das negociações do que para continuar as hostilidades


É preciso mais coragem «para procurar a paz do que para fazer a guerra, para preferir o encontro ao conflito, para se sentar à mesa das negociações do que para continuar as hostilidades», reiterou o Papa Francisco no discurso aos membros do Conselho de segurança das Nações Unidas, reunidos a 14 de junho, para um encontro sobre «Os valores da fraternidade humana na promoção e no apoio à paz». O texto do discurso preparado pelo Pontífice foi lido através de ligação vídeo pelo arcebispo Paul Richard Gallagher, secretário para as Relações com os Estados e as Organizações internacionais.

Agradeço-vos o amável convite para me dirigir a vós, que aceitei de bom grado, porque atravessamos um momento crucial para a humanidade, no qual a paz parece sucumbir perante a guerra. Os conflitos aumentam e a estabilidade está cada vez mais ameaçada. Vivemos uma terceira guerra mundial em pedaços que, quanto mais o tempo passa, mais parece expandir-se. O Conselho, cujo mandato é velar pela segurança e pela paz no mundo, por vezes aos olhos dos povos parece impotente e paralisado. Mas o vosso trabalho, apreciado pela Santa Sé, é essencial para promover a paz e, por isso, gostaria de vos convidar a enfrentar, com urgência, os problemas comuns, distanciando-vos de ideologias e particularismos, de visões e interesses partidários, e cultivando uma única intenção: trabalhar para o bem de toda a humanidade. De facto, espera-se que o Conselho respeite e aplique «a Carta das Nações Unidas com transparência e sinceridade, sem segundas intenções, como ponto de referência obrigatório da justiça e não como instrumento para mascarar intenções ambíguas».1

No mundo globalizado de hoje, estamos todos mais próximos, mas não por isso somos mais irmãos. Pelo contrário, sofremos uma carestia de fraternidade, que emerge de tantas situações de injustiça, pobreza e desigualdade, da falta de uma cultura de solidariedade. «As novas ideologias, caraterizadas pelo individualismo generalizado, pelo egocentrismo e pelo consumismo materialista, enfraquecem os laços sociais, alimentando aquela mentalidade do “descarte”, que leva ao desprezo e ao abandono dos mais fracos, daqueles que são considerados “inúteis”. Deste modo, a convivência humana assemelha-se cada vez mais a um mero do ut des pragmático e egoísta».2 Mas o pior efeito desta carestia de fraternidade são os conflitos armados e as guerras, que antagonizam não só indivíduos, mas povos inteiros, e cujas consequências negativas se repercutem durante gerações. Com o nascimento das Nações Unidas, parecia que a humanidade tinha aprendido, depois de duas terríveis guerras mundiais, a caminhar para uma paz mais estável, a tornar-se, finalmente, uma família de nações. Ao contrário, parece que voltamos atrás na história, com o surgimento de nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos, que desencadearam conflitos não só anacrónicos e ultrapassados, mas até mais violentos.3

Como homem de fé, considero que a paz é o sonho de Deus para a humanidade. Mas vejo, infelizmente, que por causa da guerra, este sonho maravilhoso transforma-se num pesadelo. É certo que, do ponto de vista económico, a guerra é muitas vezes mais atraente do que a paz, pois favorece o lucro, mas sempre de poucos e à custa do bem-estar de populações inteiras; por isso, o dinheiro ganho com a venda de armas é dinheiro sujo de sangue inocente. É preciso mais coragem para renunciar aos lucros fáceis para preservar a paz do que para vender armas cada vez mais sofisticadas e poderosas. É preciso mais coragem para procurar a paz do que para fazer a guerra. É preciso mais coragem para favorecer o encontro do que o conflito, para se sentar à mesa das negociações do que para prosseguir as hostilidades.

Para construir a paz, temos de nos afastar da lógica da legitimidade da guerra: se isto pode ter sido verdade no passado, quando os conflitos armados tinham um alcance mais limitado, hoje, com as armas nucleares e de destruição de massa, o campo de batalha tornou-se virtualmente ilimitado e os efeitos potencialmente catastróficos. Chegou o momento de dizer seriamente “não” à guerra, de afirmar que não são as guerras que são justas, mas que só a paz é justa: uma paz estável e duradoura, não construída sobre o perigoso equilíbrio da dissuasão, mas sobre a fraternidade que nos une. Porque caminhamos na mesma terra, somos todos irmãos e irmãs, habitantes da única casa comum, e não podemos obscurecer o céu sob o qual vivemos com as nuvens dos nacionalismos. Onde iremos parar se cada um pensar só em si? É por isso que aqueles que trabalham para construir a paz devem promover a fraternidade. É um trabalho artesanal que requer paixão e paciência, experiência e clarividência, tenacidade e dedicação, diálogo e diplomacia. E escuta: ouvir os clamores dos que sofrem com os conflitos, especialmente das crianças. Os seus olhos cheios de lágrimas julgam-nos; o futuro que lhes preparamos será o tribunal das nossas escolhas presentes.

A paz é possível se for verdadeiramente desejada! Ela deve encontrar no Conselho de Segurança «as suas caraterísticas fundamentais, que um conceito erróneo da paz facilmente faz esquecer: a paz deve ser racional, não passional, magnânima, não egoísta; a paz não deve ser inerte e passiva, mas dinâmica, ativa e progressiva, de acordo com as justas exigências dos direitos declarados e equitativos do homem, que exigem novas e melhores expressões dos mesmos; a paz não deve ser débil, inepta e servil, mas forte, tanto pelas razões morais que a justificam, como pelo consenso compacto das nações que a devem apoiar».4

Ainda estamos a tempo para escrever um novo capítulo de paz na história: podemos fazer da guerra algo do passado e não do futuro. Os debates no Conselho de Segurança para isto estão orientados e para isto servem. Gostaria de sublinhar mais uma vez uma palavra, que gosto de repetir porque a considero decisiva: fraternidade. Não pode permanecer uma ideia abstrata, mas deve tornar-se o ponto de partida concreto: de facto, representa «uma dimensão essencial do homem, que é um ser relacional. Uma consciência viva desta relacionalidade leva-nos a ver e a tratar cada pessoa como uma verdadeira irmã e um verdadeiro irmão; sem ela, torna-se impossível construir uma sociedade justa, uma paz sólida e duradoura».5

Para a paz, para cada iniciativa e processo de paz, asseguro o meu apoio, a minha oração e a dos fiéis católicos. Faço votos sinceros de que não só o Conselho de Segurança, mas toda a Organização das Nações Unidas, todos os seus Estados-membros e cada um dos seus funcionários, possam prestar um serviço eficaz à humanidade, assumindo a responsabilidade de salvaguardar não só o próprio futuro, mas o de todos, com a audácia de renovar agora, sem medo, o que é necessário para promover a fraternidade e a paz em todo o planeta. «Bem-aventurados os pacificadores» (Mt 5, 9).


1 Discurso aos membros da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, 25 de setembro de 2015.

2 Mensagem para o xlvii Dia Mundial da Paz, 1 de janeiro de 2014.

3 Cf. Carta Encíclica Fratelli tutti, n. 11.

4 São Paulo vi , Mensagem para o vi Dia Mundial da Paz, 1 de janeiro de 1973.

5 Mensagem para o xlvii Dia Mundial da Paz, 1 de janeiro de 2014.