· Cidade do Vaticano ·

Discurso aos participantes no Green and Blue festival

Uma mudança de rota em matéria de meio ambiente já não pode ser adiada

 Uma mudança de rota em matéria de meio ambiente  já não pode ser adiada  POR-023
07 junho 2023

É urgente «uma mudança de rota, uma alteração decisiva no atual modelo de consumo e de produção, muitas vezes impregnado na cultura da indiferença e do descarte, descarte do meio ambiente e descarte das pessoas», denunciou o Papa no discurso aos participantes no Green and Blue festival, recebidos na Biblioteca particular do Palácio apostólico do Vaticano na manhã de 5 de junho, Dia do Meio Ambiente «Earth for All».

Prezados irmãos e irmãs!

Passaram mais de 50 anos desde a inauguração da primeira grande Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em Estocolmo, a 5 de junho de 1972. Ela deu início a várias assembleias que convocaram a comunidade internacional para se confrontar sobre o modo como a humanidade administra a nossa casa comum. Por isso, 5 de junho tornou-se o Dia Mundial do Meio Ambiente. Não esqueço que, quando fui a Estrasburgo, o então Presidente Hollande convidou a Ministra do Meio Ambiente, Ségolène Royal, para me receber, e ela disse-me que ouvira dizer que eu estava a escrever algo sobre o meio ambiente. Eu respondi-lhe que sim, que estava a pensar, com um grupo de cientistas e também com um grupo de teólogos. E ela disse-me o seguinte: “Por favor, publique-o antes da Conferência de Paris”. E assim foi feito. E o de Paris foi realmente um bom encontro, não devido a este meu documento, mas porque era de alto nível. Depois de Paris, infelizmente... E isso preocupa-me!

Muitas coisas mudaram neste meio século; basta pensar no advento das novas tecnologias, no impacto de fenómenos transversais e globais como a pandemia, na transformação de uma «sociedade cada vez mais globalizada [que] nos torna próximos, mas não irmãos».1 Assistimos a uma «crescente sensibilidade em relação ao meio ambiente e ao cuidado da natureza», amadurecendo «uma sincera e dolorosa preocupação pelo que acontece com o nosso planeta» (Enc. Laudato si’, 19). Os especialistas realçam com clareza que as escolhas e ações realizadas nesta década terão impactos durante milhares de anos.2 Ampliou-se o nosso conhecimento sobre o impacto das nossas ações na nossa casa comum e em quantos a habitam e a habitarão. Isto aumentou também o nosso sentido de responsabilidade perante Deus, que nos confiou o cuidado da criação, perante o próximo e perante as gerações vindouras.

«Enquanto a humanidade do período pós-industrial talvez seja recordada como uma das mais irresponsáveis da história, espera-se que a humanidade do início do século xxi possa ser recordada por ter assumido generosamente as suas graves responsabilidades» (ibid., 165).

O fenómeno das mudanças climáticas recorda-nos insistentemente as nossas responsabilidades: ele atinge em particular os mais pobres e os mais frágeis, que menos contribuíram para a sua evolução. É primeiro uma questão de justiça e, depois, de solidariedade. As mudanças climáticas levam-nos também a basear a nossa ação numa cooperação responsável de todos: hoje o nosso mundo é demasiado interdependente e não se pode permitir de ser subdividido em blocos de países que promovem os próprios interesses de forma isolada ou insustentável. «As feridas causadas à humanidade pela pandemia de Covid-19 e pelo fenómeno das mudanças climáticas são comparáveis às resultantes de um conflito global»,3 onde o verdadeiro inimigo é o comportamento irresponsável, que tem repercussões em todas as componentes da nossa humanidade, hoje e amanhã. Há alguns anos, vieram visitar-me os pescadores de San Benedetto del Tronto que, num ano, conseguiram tirar do mar doze toneladas de plástico!

Tal como «na sequência da segunda guerra mundial, hoje é necessário que toda a comunidade internacional dê prioridade à realização de ações colegiais, solidárias e clarividentes»,4 reconhecendo «a grandeza, a urgência e a beleza do desafio que temos à nossa frente» (Laudato si’, 15). Um desafio grande, urgente e belo, que exige uma dinâmica coesa e proativa.

Trata-se de um desafio “grande” e exigente, pois requer uma mudança de rota, uma alteração decisiva em relação ao atual modelo de consumo e de produção, demasiadas vezes mergulhado na cultura da indiferença e do descarte, descarte do meio ambiente e descarte das pessoas. Hoje, os grupos da MacDonald’s, empresa de restaurantes, vieram dizer-me que aboliram o plástico e que tudo é feito com papel reciclável, tudo... No Vaticano, o plástico é proibido. E conseguimos chegar a 93%, disseram-me, sem plástico. São passos, passos reais que devemos continuar a dar. Passos reais!

Além disso, como indicado por muitos no mundo científico, a mudança deste modelo é “urgente” e já não pode ser adiada. Um grande cientista disse recentemente — alguns de vós estavam certamente presentes: “Ontem nasceu uma neta minha; não gostaria que a minha netinha, daqui a trinta anos, vivesse num mundo inabitável”. Temos que fazer algo. É urgente, não pode ser adiado. Temos que consolidar «o diálogo sobre o modo como construímos o futuro do planeta» (ibid., 14), conscientes de que viver «a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional, nem um aspeto secundário [da nossa experiência de vida], mas parte essencial de uma existência virtuosa» (ibid., 217).

Trata-se, portanto, de um desafio “belo”, estimulante e realizável: passar de uma cultura do descarte para estilos de vida marcados pela cultura do respeito e do cuidado, cuidado da criação e cuidado do próximo, vizinho ou distante no espaço e no tempo. Estamos diante de um percurso educativo para uma transformação da nossa sociedade, uma conversão tanto individual como comunitária (cf. ibid., 219).

Não faltam oportunidades e iniciativas que visam enfrentar seriamente este desafio. Saúdo aqui os representantes de algumas Cidades de vários Continentes, que me fazem pensar como este desafio deve ser enfrentado, de modo subsidiário, a todos os níveis: das pequenas escolhas quotidianas às políticas locais, passando pelas internacionais. Mais uma vez, é importante recordar a importância da cooperação responsável a todos os níveis. Precisamos da contribuição de todos. E isto custa! Recordo que os pescadores de San Benedetto del Tronto me disseram: “Para nós, a escolha foi um pouco difícil no início, pois trazer plástico em vez de peixe não nos fazia ganhar”. Mas havia algo: o amor pela criação era maior. Eis, o plástico e o peixe... E assim continuaram. Mas custa!

É necessário acelerar esta mudança de rota a favor de uma cultura do cuidado — como se cuida das crianças — que coloque no centro a dignidade humana e o bem comum. E que seja alimentada por «aquela aliança entre ser humano e meio ambiente, que deve ser espelho do amor criador de Deus, de quem vimos e para quem estamos a caminho».5

«Não privemos as novas gerações da esperança num futuro melhor».6 Obrigado por tudo o que fazeis!

1 bento xvi , Carta Encíclica Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 19.

2 Cf. ipcc , Climate Change 2023 Synthesis Report, Summary for Policymakers, c .1, p. 24.

3 Mensagem ao Presidente da cop 26, 29 de outubro de 2021.

4 Ibidem.

5 bento xvi , Caritas in veritate, 50.

6 Mensagem vídeo ao Climate Ambition Summit, 12 de dezembro de 2020.