“E se o Papa
Osonho de sermos uma Igreja mais próxima e ainda mais dedicada aos marginalizados, pobres, deslocados e excluídos, tem sido uma constante nas palavras e decisões do Papa Francisco.
Estamos a cinquenta e cinco dias da realização da Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023 e, por isso, em tom de preparação para esta peregrinação à escala mundial visitámos um bairro da periferia para perceber como se estão a preparar para este acontecimento. Estivemos com famílias, ouvimos histórias, conhecemos pessoas.
As desigualdades socioeconómicas são a pedra angular quando o assunto é a construção clandestina. Ela encontra no cartão, na madeira, nas chapas e nas sobras de tijolo os materiais para uma casa familiar. Na ausência de rocha, constroem na areia.
Contudo, o bairro da Bela Vista, em Setúbal, conta uma história diferente. Levantado nos anos setenta para acolher portugueses naturais de outras regiões do país, recebeu famílias que procuravam a sua oportunidade na grande produção industrial que se desenvolvia na época em grande escala. A par destes trabalhadores, outras famílias foram chegando e, sem dinheiro para pagar rendas e sem casas para habitar, começaram a improvisar soluções precárias que lhes protegiam a cabeça do sol e o corpo da chuva.
Portugal tem hoje menos bairros de lata do que no passado. A grande maioria das barracas erguidas ao longo de várias décadas deu lugar a prédios de habitação social que contrastam, por vezes, com os prédios de luxo deles separados por uma estrada. Prédios simples, sem ornamentos, com portas, janelas, estores. Mas se isto nos parece uma evidência banal, para a Maria Luísa não é. Tem 57 anos e vive no bairro da Bela Vista. Conta que já conheceu milhares de pessoas: “Conheci gente muito boa, de todas as cores e feitios — todos pobres como eu, os ricos não vêm para cá”, começa por nos contar.
“Quem não é do bairro tem medo de andar por aqui porque não conhece as pessoas de cá e quando alguém vem de fora é visto com desconfiança, afinal vem cá fazer o quê se não há nada para ver!?”, sorri e dá uma gargalhada. Maria Luísa é viúva, tem cinco filhos sete irmãos, catorze sobrinhos e é madrinha de 4 crianças.
Perguntámos-lhe sobre a Jornada Mundial da Juventude, mas a conversa acabou por tomar outro rumo — a sua preocupação era com a saúde do Papa: “soube que ele anda doente, tenho rezado pelas suas melhoras”, junta as mãos e olha em direção ao céu. É uma mulher de fé, mas diz não saber o que é a jmj . Ouviu dizer que o Papa vem a Portugal.
Nas ruas do bairro da Bela Vista as pessoas juntam-se à entrada dos prédios aproveitando a sombra enquanto esperam as crianças que estão prestes a sair da escola — deixam passar o tempo.
Vagueando pelas ruas ouvimos músicas que se cruzam e nos chegam do interior das habitações. Pressentimos o olhar fulminante dos mais desconfiados e sentimos a doçura dos pequeninos que nos abraçam e pedem para jogar à bola. Não deixa de ser curioso que bairros como este tenham sido o berço de muitas estrelas do futebol. A vida confere a estas crianças garra, agilidade, rapidez.
Há sinais que não passam despercebidos. Em muitos dos carros ali estacionados vimos terços, imagens de Nossa Senhora, crucifixos. Sinais de uma fé. Junto a um desses automóveis conhecemos a Inês.
Inês Isabel tem trinta anos, é casada, tem três filhos e é empregada de balcão. Já ouviu falar da Jornada Mundial da Juventude, mas não vai participar. “Até gostava de ter a experiência de conhecer outras pessoas e queria ver o Papa, mas não posso estar a faltar ao emprego”, lamenta. Deixou a escola para criar filhos. Como não quer depender dos subsídios do estado levanta-se cedo e procura um segundo emprego. “A minha mãe ajuda-me todos os meses. Se não fosse a paróquia faltava comida lá em casa”, enquanto nos fala da situação familiar mostra-nos fotografias dos filhos no telemóvel.
Rapidamente concluímos que seria impossível conhecer o bairro da Bela Vista sem visitar a paróquia — muitas das pessoas com quem falámos referiram a ajuda que recebem da Igreja: comida, roupa, serviços de saúde, conforto espiritual. Conversámos com o padre Constantino, pároco na Igreja de Nossa Senhora da Conceição que foi ordenado sacerdote por Dom Manuel Martins, primeiro bispo da diocese de Setúbal. Dom Manuel Martins destacou-se pelo apoio que deu aos pobres, aos mais frágeis, aos trabalhadores. Foi voz ativa na defesa dos direitos humanos e serviu o povo, com o povo. Também ele andava a pé pelas ruas e falava com todos, nunca se fechou no Paço nem recusou andar junto dos pobres.
O serviço do Centro Social Paroquial Dom Manuel Martins é uma realidade com mais de vinte anos, ainda que só em 2017 tenha sido reconhecido formalmente. “Não dependemos do estado para matar a fome, aqui são as pessoas da paróquia que oferecem ao centro e o centro distribui pelos que mais precisam. Partilhamos. Sabemos quem dá e quem recebe”, afirma orgulhosamente o padre Constantino que fez questão de nos levar a conhecer o bairro.
As pessoas estimam a sua presença, cumprimentam-no com entusiasmo — conhece cada um pelo nome. A Jornada Mundial da Juventude tem sido tema de divulgação na paróquia. Há inclusivamente dois jovens que estão em contacto com o Comité Organizador. Vão participar no encontro, mas reconhecem que para os jovens do bairro não é fácil integrarem-se num evento desta natureza. Estando tão perto de Lisboa, acabam por estar longe e, acima de tudo, há que preparar os jovens para que esta peregrinação não seja um simples passeio semelhante a um grande festival de jovens. “Há que chegar ao centro da questão. Caso contrário é só barulho…”, remata o Pe. Constantino.
Entretanto, conhecemos a história de outro jovem, o Nelson. Tem 34 anos é de Cabo-Verde e está em Portugal desde 2009. Cresceu no bairro. Licenciou-se — pagou o curso em prestações — e hoje trabalha na paróquia no gabinete de apoio social para aqueles que procuram emprego e que precisam de ajuda na documentação para legalizar a sua permanência em Portugal. O Nelson já ouviu falar da jmj e está feliz por saber que o Papa vem a Portugal: “É muito bom saber que o Papa vem falar com os jovens. É um sinal de esperança. Acredito que isso vá mudar a cabeça de muita gente pois são muitos os que acreditam nas suas palavras”.
Perguntámos-lhe como é que se estavam a preparar para a Jornada Mundial da Juventude, mas considera ser cedo para falar nisso. Não se inscreveu porque não tem um grupo organizado e não sabe ao certo como fará com a deslocação. Ainda assim, gostava de viver “aquele momento único cheio de esperança”.
Os cartazes da Jornada Mundial da Juventude de 2023 estão espalhados pelo país e mostram ser inclusivos. A comunicação da jmj tem promovido campanhas de sensibilização para receberem mais voluntários e também para que mais famílias de acolhimento se inscrevam. Ainda assim, facilmente se percebe que quem vive nas periferias ainda não sente a “pressa no ar”. A pressa vivida é a de chegar a horas ao emprego, a pressa de chegar cedo à segurança social ou a pressa pelo dia de receber o subsídio.
Ainda no coração do bairro, conhecemos o Sr. José Maria. Cumprimentou o padre Constantino com grande euforia. Ele faz parte da comunidade cigana que vive no bairro da Bela Vista. O padre Constantino perguntou-lhe: “e se o Papa viesse aqui ao bairro?” “Era recebido de braços abertos, não é todos os dias que apanhamos um homem desses aqui”, respondeu o Sr. José Maria.
Quisemos ainda saber o que gostaria ele de mostrar ao Papa. “Não lhe ia mostrar o centro comercial nem o jardim, não é verdade? Queria que ele conhecesse as pessoas do bairro”.
O Sr. José Maria quer ver o Papa e está disposto a receber peregrinos em sua casa, mas duvida que alguém aceite ficar hospedado num bairro social.
Uma grande parte da comunidade cigana é Evangélica, mas tem um profundo respeito pela Igreja Católica até porque “a capela da paróquia é a única na zona que aceita receber os velórios dos ciganos”. O padre Constantino reconhece as dificuldades e os contrastes culturais com a comunidade cigana, mas não desiste nem aceita a exclusão.
Embora os bairros possam ser estigmatizados pela sociedade, neles podemos encontrar muitos talentos, sonhos e uma vontade imensa de progredir. Infelizmente, as oportunidades são escassas e o acesso a recursos é limitado. Outras vezes não se trata de existência de oportunidades, mas na preparação para as saber reconhecer e agarrar.
No entanto, percebe-se que não estão dispostos a desistir. Lutam por uma vida melhor para os seus filhos. Acreditam que, com investimentos adequados em infraestrutura, educação e emprego, se pode transformar o bairro num lugar próspero e seguro. É fundamental quebrar o ciclo de marginalização e pobreza que afeta tantos bairros sociais — em Portugal e no mundo. Precisamos de políticas públicas que promovam a inclusão social, a igualdade de oportunidades e o desenvolvimento sustentável. Acreditamos que cada pessoa merece uma oportunidade justa na vida, independentemente do lugar onde nascem ou onde vivem.
Viver em um bairro social pode ser desafiador, mas também é uma fonte de força e resiliência. A comunidade é unida, luta e acredita que é possível superar as adversidades.
Já no final da nossa visita, conhecemos uma família timorense. Fazem parte de uma comunidade que já foi mais numerosa, mas que continua a ter a mesma distinção pela positiva. É uma comunidade que se destaca por ser pacífica, dedicada e com uma fé muito participativa. Nos olhos de duas das crianças conseguimos ver o sonho e a esperança. Nelas não encontramos qualquer sinal de preocupação, medo ou indiferença. Encontramos o sinal puro daqueles a quem o Reino foi destinado e que esperam apenas pela oportunidade de serem felizes.
Ainda que o tema da Jornada Mundial da Juventude não esteja na ordem dia na vida das periferias, a verdade é que é uma oportunidade que não deve passar ao lado.
A Jornada Mundial da juventude oferece aos jovens portugueses a oportunidade de experimentar a dimensão universal da Igreja, reforçando a sua identidade católica e o seu compromisso com os valores cristãos. Valores que devem defender a construção de pontes e a ligação cada vez mais humana entre todos.
Quando a mensagem do evangelho chegar a toda a parte, só então estará cumprida a nossa missão.
Nuno André
Investigador de história e filosofia