Como um espinho
Na habitual saudação depois do Regina Coeli, na manhã de 28 de maio, o Papa começou por recordar o poeta e romancista Alessandro Manzoni, do qual há uma semana, a 22 de maio, foram comemorados os 150 anos da morte. Elogiando a sua arte literária, o Papa recordou-o como «cantor das vítimas e dos últimos» e referiu-se depois à história narrada na sua obra-prima, o romance Os Noivos, que ele muito aprecia.
Durante estes dez anos, Francisco falou muitas vezes dos poetas, da arte e da literatura em particular, como quando, por exemplo, ao regressar da viagem ao Oriente, se referiu ao “défice de poesia” que aflige os países ocidentais. Para não falar de Dostoievski, muitas vezes citado especialmente sobre o tema da liberdade, ou de Virgílio ou do próprio Dante, a quem o Papa quis dedicar uma inteira carta apostólica, a Candor lucis aeternae.
Estas referências contínuas revelam não só a amplitude das leituras de Jorge Mario Bergoglio, mas também a profundidade da sua visão de crente e de pastor, ou seja, não estamos numa área marginal da sua vida de homem de fé, mas no seu coração. Neste sentido, é esclarecedor ler o artigo do padre Antonio Spadaro, publicado no número de 4 de março de La Civiltà Cattolica, sobre A Literatura na formação do Papa Francisco, e, mais ainda, as próprias palavras que o Papa pronunciou no discurso de sábado 27 de maio aos participantes na conferência da La Civiltà Cattolica com a Georgetown University «A estética global da imaginação católica».
No início deste discurso, depois de ter citado Dante e Dostoievski, o Papa afirmou que «as palavras dos escritores me ajudaram a compreender-me a mim próprio, o mundo, o meu povo; mas também a aprofundar o meu coração humano, a minha vida pessoal de fé e até a minha tarefa pastoral, inclusive agora neste ministério. Assim, a palavra literária é como um espinho no coração que impele à contemplação e te põe a caminho. A poesia é aberta, lança-te para outro lado».
Uma afirmação poderosa: a poesia é também um instrumento para aprofundar a própria fé. Mas um instrumento que deve ser manuseado com cuidado, porque é «como um espinho no coração». Nada de idílico, não é um passeio entre as flores, mas uma experiência dramática, se não abismal. Este espinho assemelha-se, mas não é o “espinho na carne” do qual São Paulo fala na sua segunda carta aos Coríntios, que mortifica e afasta o risco da soberba. Certamente há um risco também na literatura se esta se tornar uma fuga da realidade, uma alienação frustrante que leva Mallarmé a suspirar no poema Brisa marinha «A carne é triste, sim, e eu li todos os livros». Mas este é um espinho que não mortifica, antes vivifica, pois, diz o Papa, impele à contemplação e ao caminho. Passando (um pouco abruptamente) de Mallarmé para Ian Fleming, vem-me à mente uma personagem de uma história do famoso agente 007 que, tendo levado um tiro no coração, não está (ainda) morto, apesar de a bala continuar a aproximar-se do órgão vital e de este facto ter, como efeito secundário, o “privilégio” ambivalente de já não sentir qualquer dor física.
O espinho no coração do qual fala o Papa desenvolve o efeito contrário: não anestesia, mas torna hipersensível. A palavra literária consegue este efeito: aumenta (a palavra “autor” vem do verbo latino augeo: aumentar, fazer crescer) e faz crescer a experiência de vida do leitor, que se torna mais sensível, adquire um olhar mais amplo, agudo e profundo. O artista sente “mais” e, ao sentir, permite que os outros sintam. O artista é um instrumento transmissor; ao receber um “choque” (de dor ou de alegria) da vida, volta a pô-lo em circulação, com o seu cunho único e inconfundível, o seu estilo que o distingue de mil outros artistas.
Este papel de oposição à tendência, muito forte atualmente, de procurar formas de se “anestesiar” faz do poeta e de cada artista uma figura fundamental no corpo social. Porque a arte sacode e desperta as consciências. No seu discurso de sábado, o Papa explicou que os artistas são «a voz das inquietações humanas», aquelas inquietações que muitas vezes acabam «enterradas nas profundezas do coração». Deste ponto de vista, disse o Papa, «bem sabeis que a inspiração artística não é apenas reconfortante, mas também inquietante, pois apresenta tanto as belas realidades da vida como as trágicas», pelo que a tarefa dos artistas é ser «criativos, sem domesticar as inquietações, vossas e da humanidade. Receio este processo de domesticação, porque tira a criatividade, tira a poesia. Com a palavra da poesia, recolher os desejos inquietos que habitam o coração humano, para que não arrefeçam e não se apaguem».
No dia 21 de novembro de 2009, no encontro com os artistas na Capela Sistina, Bento xvi citou Platão para dizer que «uma função essencial da verdadeira beleza, [...] consiste em comunicar ao homem um “sobressalto” saudável, que o faz sair de si mesmo, o arranca à resignação ao conformar-se com o quotidiano, fá-lo também sofrer, como uma seta que o fere, mas precisamente desta forma o “desperta” abrindo-lhe de novo os olhos do coração e da mente, pondo-lhe asas, elevando-o. A expressão de Dostoievski que estou para citar é sem dúvida ousada e paradoxal, mas convida a refletir: “A humanidade pode viver — diz ele — sem a ciência, pode viver sem pão, mas unicamente sem a beleza já não poderia viver, porque nada mais haveria para fazer no mundo. Qualquer segredo consiste nisto, toda a história consiste nisto”. Faz-lhe eco o pintor Georges Braque: “A arte existe para perturbar, enquanto a ciência tranquiliza”. A beleza chama a atenção, mas precisamente assim recorda ao homem o seu destino último, volta a pô-lo em marcha, enche-o de nova esperança, dá-lhe a coragem de viver até ao fim o dom único da existência. A busca da beleza da qual falo, evidentemente, não consiste em fuga alguma no irracional ou no mero esteticismo».
A inquietação, a perturbação que os artistas provocam, torna-se uma obra fundamental porque é vital, no sentido literal, uma fonte de vida. Sobretudo para o cristão, que encontra ajuda no trabalho dos poetas que consiste, recorda Francisco, em «dar vida, dar corpo, dar palavras a tudo o que o ser humano vive, sente, sonha, sofre, criando harmonia e beleza. É um trabalho evangélico que também nos ajuda a compreender melhor Deus, como o grande poeta da humanidade. [...] não deixeis de ser originais, criativos. Não percais a maravilha de estar vivos!». Esta última exortação, que o Papa repetiu duas vezes, é quase idêntica à que Chesterton escreveu na sua Autobiografia publicada em 1937, no ano seguinte à sua morte: «Este foi o meu primeiro problema, o de levar os homens a compreender a maravilha e o esplendor de estar vivos». A arte como antídoto contra o tédio e a tristeza e, acrescenta Francisco, «a mentalidade do cálculo e da uniformidade, um desafio ao nosso imaginário».
Poder-se-ia dizer que é um antídoto contra a “previsibilidade”. O poeta argentino Borges comparou de certo modo a filosofia e a poesia, ambas geradas pelo espanto, e observou que «sem dúvida, a nossa existência é um facto curioso. [...] o facto de nos espantarmos com a vida pode ser a essência da poesia. A poesia consiste em sentir as coisas como estranhas [...] A única diferença é que, no caso da filosofia, a resposta é dada de uma forma lógica, enquanto na poesia se utiliza a metáfora».
Andrea Monda