Um crime contra o homem
A utilização da energia atómica para fins militares é um crime «contra o homem e a sua dignidade» e «contra qualquer possibilidade de futuro». O Papa Francisco voltou a denunciar os riscos do recurso às armas nucleares, reiterando — numa missiva ao bispo de Hiroshima por ocasião do g 7 — a severa admoestação lançada em 24 de novembro de 2019, durante a visita ao Memorial da paz naquela cidade japonesa. Publicamos em seguida o texto da carta divulgada na manhã de 20 de maio.
A Sua Excelência
Reverendíssima
Alexis Mitsuru Shirahama
Bispo de Hiroshima
Enquanto a cimeira do g 7 se reúne em Hiroshima para debater sobre questões urgentes diante das quais a comunidade mundial se encontra atualmente, gostaria de lhe assegurar a minha proximidade espiritual e as minhas orações para que o summit dê frutos. A escolha de Hiroshima como lugar para este encontro é particularmente significativa, à luz da ameaça contínua do uso de armas nucleares. Recordo a profunda impressão que me causou a visita comovedora ao Memorial da Paz, durante a minha viagem ao Japão em 2019. Ali, de pé, em oração silenciosa e pensando nas vítimas inocentes do ataque nuclear ocorrido décadas antes, eu quis reiterar a firme convicção da Santa Sé de que «o uso da energia atómica para fins bélicos é, hoje mais do que nunca, um crime não só contra o homem e a sua dignidade, mas contra qualquer possibilidade de futuro na nossa casa comum» (Discurso no Memorial da Paz, 24 de novembro de 2019).
É para aquele futuro que homens e mulheres responsáveis olham agora com preocupação, especialmente no sulco da nossa experiência de uma pandemia global e da persistência de conflitos armados em várias regiões, incluindo a guerra devastadora que se trava em solo ucraniano. Os acontecimentos dos últimos anos tornaram evidente que só juntos, em fraternidade e solidariedade, a nossa família humana pode procurar sarar as feridas e construir um mundo justo e pacífico.
Com efeito, é cada vez mais evidente que, no mundo multipolar do século xxi , a busca da paz está intimamente ligada à necessidade de segurança e à reflexão sobre os meios mais eficazes para a garantir. Esta reflexão deve necessariamente ter em conta que a segurança global deve ser integral, capaz de abranger questões como o acesso ao alimento e à água, o respeito pelo meio ambiente, os cuidados médicos, as fontes de energia e a distribuição equitativa dos bens do mundo. Um conceito integral de segurança pode servir para ancorar o multilateralismo e a cooperação internacional entre atores governamentais e não governamentais, com base na profunda interligação entre estas questões, que torna necessário adotar, juntos, uma abordagem de cooperação multilateral responsável.
Como «símbolo de memória», Hiroshima proclama com força a inadequação das armas nucleares para responder de modo eficaz às grandes ameaças atuais contra a paz e para garantir a segurança nacional e internacional. Basta considerar o impacto humanitário e ambiental catastrófico que resultará da utilização de armas nucleares, assim como o desperdício e a má destinação de recursos humanos e económicos que a sua produção comporta. Também não devemos subestimar os efeitos do persistente clima de medo e suspeita gerado pela sua mera posse, que compromete o crescimento de um clima de confiança mútua e de diálogo. Neste contexto, as armas nucleares e as outras armas de destruição de massa representam um multiplicador de riscos que oferece apenas uma ilusão de paz.
Assegurando-lhe as minhas preces por si e por quantos são confiados aos seus cuidados pastorais, uno-me a Vossa Excelência orando para que o encontro do g 7 em Hiroshima dê provas de uma visão clarividente, lançando os fundamentos para uma paz duradoura e para uma segurança estável e sustentável a longo prazo. Com gratidão pelo seu compromisso ao serviço da justiça e da paz, concedo de coração a minha bênção.
Roma, São João de Latrão 19 de maio de 2023.
Francisco