Um Papa narrado
Já se disse e escreveu tudo sobre João Paulo ii ? Certamente, a extraordinária duração do seu Pontificado e o seu papel de protagonista absoluto na história do século xx fizeram com que cada um dos seus discursos e gestos públicos fossem narrados, interpretados e comentados. Todavia, as memórias póstumas do seu carismático porta-voz, Joaquín Navarro-Valls, publicadas recentemente na Espanha pela Editorial Planeta com o título “Mis años con Juan Pablo ii ” (que em breve será publicadas em italiano pela Mondadori), oferecem-nos um olhar atento sobre Karol Wojtyła, constelado de episódios e histórias inéditas que enriquecem o conhecimento do perfil humano do grande Pontífice polaco. Um grupo de professores da faculdade de comunicação da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, do Opus Dei (da qual Navarro-Valls fazia parte) editou as “notas pessoais” — reunidas em mais de vinte anos como diretor da sala de Imprensa da Santa Sé — orientado por Diego Contreras que, na apresentação do volumoso livro — quase 600 páginas — ressalta que el Portavoz pediu, “caso interessasse a alguém”, que as suas memórias só fossem publicadas depois da sua morte (ocorrida em julho de 2017). E isto, frisa Contreras, também para evitar que a sua experiência aparecesse como “modelo” comunicativo da Santa Sé, precisamente quando se dava início à reorganização da comunicação do Vaticano.
Não obstante a dimensão do volume, a leitura flui rápida e de modo cativante. A escrita de Navarro-Valls, que foi apreciado jornalista do diário espanhol abc antes de chegar ao Vaticano, em 1984, é clara e convincente, e tem o mérito de nos “mostrar” não só o protagonista da sua narração — o Papa que ele amou “como um pai” — mas também algumas das personalidades mais relevantes da Igreja do pós-Concílio, como Madre Teresa, Ratzinger, Casaroli e Tauran. Igualmente interessantes são as considerações sobre os grandes personagens da história que Navarro-Valls encontrou naqueles anos, tais como Reagan, Gorbachev, Havel, Fidel Castro, tornando assim este texto interessante também do ponto de vista historiográfico. O que impressiona desde as primeiras páginas é a estreita relação com Karol Wojtyła (e os seus colaboradores), consolidada ao longo do tempo por inúmeros encontros, não apenas de trabalho, e os períodos de férias passados com o Papa nas montanhas (no Trentino e depois no Vale de Aosta), que talvez sejam a parte mais bonita de toda a obra. Esta confiança que João Paulo ii tinha nele, observa Navarro-Valls nas anotações, antes de passar o testemunho ao seu estimado sucessor, padre Federico Lombardi, permitiu-lhe “avaliar as situações e adaptar o que comunicava”. O porta-voz do Vaticano reconhece ter sido um “privilegiado” pela possibilidade de trabalhar com acesso direto ao Pontífice, mas ainda mais por ter podido ver “de perto um homem santo”.
O testemunho de santidade de Karol Wojtyła é precisamente o fio condutor, a trama que se desenrola ao longo do livro. Navarro-Valls realça, com admiração e emoção, que todas as pequenas ou grandes situações da sua vida pessoal e todas as decisões do seu ministério petrino são confiadas por João Paulo ii ao Senhor com total confiança e abandono. Quer tenha que preparar um encontro ou uma viagem difícil, quer se prepare para entrar, para uma das suas numerosas hospitalizações, na Policlínica Gemelli (o “Vaticano número 3”), o Papa nunca perde a tranquilidade nem o bom humor, outro traço que transparece com toda a vivacidade nestas memórias. Sem dúvida, o homem não é insensível ao que acontece, como se vê na perturbação que sente — e Navarro-Valls anota-o — sobretudo pelas muitas guerras que explodem durante o seu longo Pontificado e às quais João Paulo ii procura pôr fim de todas as formas, até com iniciativas nem sempre elogiadas por todos. Um capítulo à parte são as numerosas páginas dedicadas à doença de Karol Wojtyła, algumas das quais tocam o coração pela participação com que el Portavoz confessa o seu sofrimento ao ver o “atleta de Deus” perder progressivamente toda a possibilidade de movimento e depois até de falar, mas nunca a certeza — reforçada pela oração constante — de que o Senhor o acompanhará até ao termo da missão que lhe confiou.
No final, o volume apresenta-se também como precioso “manual de comunicação institucional”, que será útil para quantos — estudantes e profissionais desta área — quiserem conhecer os “bastidores” do trabalho de um grande comunicador do nosso tempo. Navarro-Valls não deixa de anotar as suas considerações sobre o que julga que deve ser melhorado na comunicação do Vaticano e às vezes queixa-se de uma burocratização que não lhe permite informar como gostaria. Por exemplo, aquilo que escreve sobre a criação do site da internet Vatican.va. Uma iniciativa que João Paulo ii aprova plenamente, mas que nem todos na Cúria romana compreendem e que alguns recebem com indiferença. Mas talvez as considerações mais marcantes sejam aquelas em que o porta-voz do Vaticano admite os seus erros. “Falei demasiado e mal”, escreve numa ocasião, sinal de humildade e de consciência da função de grande responsabilidade que desempenhava. Ex-presidente da Associação da imprensa estrangeira, Navarro-Valls compreendia bem as exigências dos seus colegas jornalistas. Era um deles. Frisa repetidamente a necessidade de estar sempre disponível para explicar o que acontece, de não ter medo de comunicar até em situações difíceis e de cultivar relações cordiais com os jornalistas, além da mera relação profissional. Esta é uma das lições mais preciosas e duradouras do porta-voz de João Paulo ii .
Alessandro Gisotti