«La Civiltà Cattolica» publicou a 10 de maio no seu site, com a assinatura do diretor, o relato da conversa do Papa Francisco com os jesuítas húngaros, com os quais se encontrou a 29 de abril na nunciatura de Budapeste, durante a sua viagem apostólica à terra magiar. A seguir, a transcrição integral da conversa.
No segundo dia da sua viagem apostólica à Hungria, 29 de abril, o Papa Francisco encontrou-se com os jesuítas do país.
Por volta das 18 horas, entrou na sala da Nunciatura, onde estavam reunidos 32 jesuítas, incluindo o Provincial, padre Attila András. Depois cumprimentou muitos deles, um a um. O encontro começou com uma saudação do padre András, que apresentou também a situação da província. No final, o Papa agradeceu-lhes e disse: «Agora fazei as perguntas que desejardes. Obrigado!». Os jesuítas quereriam oferecer uma prenda por cada resposta dada: «um jogo», disse o sócio do provincial, padre Koronkai Zoltán. Francisco riu-se com gosto, mas pediu para fazer primeiro todas as perguntas, e depois, no final, oferecer as prendas todas juntas, porque temia que não houvesse tempo suficiente.
A primeira pergunta é relativa à pastoral juvenil: como lidar com os jovens?
Para mim, a palavra é «testemunho». Sem testemunho não se pode fazer nada. Acaba-se como naquela bela canção de Mina: «parole, parole, parole...» [palavras, palavras, palavras...]. Sem testemunho não se pode fazer nada. E testemunho significa coerência de vida.
Caro Papa Francisco, é uma alegria tê-lo connosco. O que o levou a regressar à Hungria depois da sua viagem em 2021?
A razão é que na primeira vez devia ir à Eslováquia, mas em Budapeste havia o Congresso eucarístico. Por isso vim aqui por algumas horas. Mas fiz a promessa de voltar e voltei.
Como se comportar com os jovens em formação na Companhia de Jesus e com os jovens em geral? Que conselhos nos pode dar?
Falar claramente. Alguém costumava dizer que para ser um bom jesuíta é preciso pensar claro e falar obscuro. Mas com os jovens não deve de ser assim: temos de falar claramente, mostrar-lhes coerência. Os jovens sentem quando não há coerência. E com os jovens em formação é preciso falar como adultos, como se fala aos homens, não às crianças. E introduzi-los na experiência espiritual, prepará-los para a grande experiência espiritual que são os Exercícios. Os jovens não toleram a linguagem dupla, isso é claro para mim. Mas ser claro não significa de modo algum ser agressivo. A clareza deve ser sempre combinada com a amabilidade, a fraternidade, a paternidade.
A palavra-chave é «autenticidade». Deixar que os jovens digam o que sentem. Para mim, o diálogo entre um jovem e um idoso é importante: falar, debater. Espero autenticidade, que digam as coisas como elas são, as dificuldades, os pecados... E tu, como formador, deves ensinar aos jovens a coerência. Depois, é importante que os jovens dialoguem com os idosos. Os anciãos não podem ficar sozinhos na enfermaria: devem estar em comunidade, para que seja possível uma reciprocidade entre eles e os jovens. Recordemos a profecia de Joel: os velhos terão sonhos e os jovens serão profetas. A profecia de um jovem é aquela que nasce de uma relação de ternura com os idosos. A «ternura» é uma das palavras-chave de Deus: proximidade, compaixão e ternura. Neste caminho, nunca erraremos. Este é o estilo de Deus.
Gostaria de lhe fazer uma pergunta sobre o tema do amor cristão para quem cometeu abusos sexuais. O Evangelho pede-nos para amar, mas como se faz a amar ao mesmo tempo as pessoas que sofreram abusos e os seus abusadores? Deus ama todos. Ama-os também. Mas nós? Sem nunca encobrir nada, obviamente, como podemos nós amar os abusadores? Gostaria de oferecer a compaixão e o amor que o Evangelho me pede para todos, inclusive para o inimigo. Mas como é possível?
Não é nada fácil. Compreendemos hoje que a realidade do abuso é muito vasta: há abusos sexuais, psicológicos, económicos, com os migrantes... Referes-te aos abusos sexuais. Como nos aproximarmos, como falar com os abusadores pelos quais sentimos repugnância? Sim, também eles são filhos de Deus. Mas como se pode amá-los? A tua pergunta é muito forte. O abusador deve ser condenado, de facto, mas como irmão. Condená-lo deve ser entendido como um ato de caridade. Há uma lógica, uma maneira de amar o inimigo que se exprime também desta forma. E não é fácil de entender e de viver. O abusador é um inimigo. Cada um de nós sente-o tal porque se reflete no sofrimento do abusado. Quando sentimos o que o abuso deixa no coração dos abusados, a impressão que temos é tremenda. Também falar com o abusador deixa-nos indignados, não é fácil. Mas também eles são filhos de Deus. E é preciso uma pastoral. Eles merecem uma punição, mas ao mesmo tempo um cuidado pastoral. Como fazer isso? Não, não é fácil. Tens razão.
Qual foi a sua relação com o padre Ferenc Jálics? O que aconteceu? De que modo viveu como provincial aquela trágica situação? Vossa Santidade recebeu acusações graves...
Os padres Ferenc Jálics e Orlando Yorio, trabalhavam num bairro operário e trabalhavam bem. Jálics foi o meu padre espiritual e confessor durante os dois primeiros anos de teologia. No bairro onde ele trabalhava, havia uma célula de guerrilha. Mas os dois jesuítas não tinham nada a ver com eles: eram pastores, não políticos. Mas foram feitos prisioneiros inocentes. Não encontraram nada para os acusar, mas tiveram de cumprir nove meses de prisão, sofrendo ameaças e torturas. Depois foram libertados, mas estas coisas deixam feridas profundas. Jálics veio ter comigo e falámos. Aconselhei-o a ir para a casa da sua mãe, nos Estados Unidos. A situação era demasiado confusa e incerta. Depois nasceu a lenda de que teria sido eu a entregá-los para serem presos. Sabei que, há um mês, a Conferência episcopal argentina publicou dois volumes dos três previstos com todos os documentos relacionados com quanto aconteceu entre a Igreja e os militares. Podeis encontrar tudo neles.
Mas voltemos aos factos que eu estava a contar. Quando os militares foram embora, Jálics pediu-me autorização para vir fazer um curso de exercícios espirituais na Argentina. Eu autorizei-o a vir e até celebrámos juntos uma missa. Depois voltei a vê-lo quando eu era arcebispo e também Papa: veio a Roma para me visitar. Sempre tivemos esta relação. Mas quando veio visitar-me pela última vez no Vaticano, vi que estava a sofrer porque não sabia como falar comigo. Havia uma distância. As feridas daqueles anos passados permaneceram tanto em mim como nele, porque ambos vivemos aquela perseguição.
Alguns membros do governo queriam «cortar-me a cabeça», e não falavam tanto deste problema do Jálics, mas punham em questão toda a minha maneira de agir durante a ditadura. Por isso, chamaram-me ao tribunal. Foi-me dada a possibilidade de escolher o local do interrogatório. Optei por o fazer no episcópio. Durou quatro horas e dez minutos. Um dos juízes foi muito insistente sobre o meu comportamento. Respondi sempre com sinceridade. Mas, do meu ponto de vista, a única pergunta séria e bem fundamentada foi formulada pelo advogado que pertencia ao partido comunista. E graças àquela pergunta, as coisas ficaram esclarecidas. No final, foi certificada a minha inocência. Mas naquele julgamento quase não se falou de Jálics, mas de outros casos de pessoas que tinham pedido ajuda.
Depois, como Papa, revi dois desses juízes em Roma. Um deles com um grupo de argentinos. Não o reconheci imediatamente, mas tive a impressão de já o ter visto. Olhava para ele, olhava para ele. Entre mim, dizia: «mas eu conheço-o». Ele abraçou-me e saiu. Depois voltei a vê-lo e ele apresentou-se. Disse-lhe: «Mereço cem vezes uma punição, mas não por aquele motivo». Disse-lhe para não pensar mais naquela história. Sim, mereço um julgamento pelos meus pecados, mas sobre este ponto quero ser claro. Outro dos três juízes veio também dizer-me claramente que tinha recebido instruções do governo para me condenar.
Mas quero acrescentar que, quando Jálics e Yorio foram detidos pelos militares, a situação na Argentina era confusa e não se sabia muito bem o que fazer. Fiz o que achei que devia fazer para os defender. Foi uma vicissitude muito dolorosa.
Jálics era um homem bom, um homem de Deus, um homem que procurava Deus, mas foi vítima de um meio social ao qual não pertencia. Ele próprio se apercebeu disso. Era o grupo dos guerrilheiros que atuavam no lugar onde ele foi ser capelão. Mas na documentação que foi publicada em dois volumes encontrareis a verdade sobre este caso.
O Concílio Vaticano ii fala da relação entre a Igreja e o mundo moderno. Como poderíamos conciliar a Igreja e a realidade que já é ultramoderna? Como encontrar a voz de Deus e amar o nosso tempo?
Não sei como responder teoricamente a esta questão, mas sei certamente que o Concílio é ainda um trabalho em curso. Dizem que é preciso um século para que um Concílio seja assimilado. E sei que as resistências são terríveis. Há um restauracionismo incrível. Aquilo a que chamo «retrocedismo», como diz a Carta aos Hebreus 10, 39: «Nós, porém, não somos dos que retrocedem». O fluxo da história e da graça vai de baixo para cima como a seiva de uma árvore que dá frutos. Mas sem este fluxo permaneces uma múmia. Voltar atrás não preserva a vida, nunca. É preciso mudar, como escreve São Vicente de Lérins em Commonitorium primum, quando afirma que até o dogma da religião cristã progride, consolida-se com os anos, desenvolve-se com o tempo, aprofunda-se com a idade. Mas trata-se de uma mudança de baixo para cima. O perigo hoje é o retrocedismo, a reação contra o moderno. É uma doença nostálgica. Foi por isso que decidi que agora a concessão de celebrar segundo o Missal Romano de 1962 é obrigatória para todos os sacerdotes recém-ordenados. Depois de todas as consultas necessárias, tomei esta decisão porque vi que esta medida pastoral, bem feita por João Paulo ii e Bento xvi , era utilizada de forma ideológica, para voltar atrás. Era necessário parar este retrocedismo, que não estava na visão pastoral dos meus predecessores.
Daqui a três semanas serei ordenado sacerdote. Lembra-se de como foi a sua ordenação sacerdotal? Gostaria de dar alguns conselhos a um sacerdote recém-ordenado?
Éramos cinco. Dois de nós estão vivos. Tenho uma boa recordação. E estou grato aos superiores que nos prepararam bem e organizaram uma celebração bonita, simples, sem pompa nem ostentação, no jardim da Faculdade. Momentos bonitos. E também foi bom para mim ver que estava presente um grupo dos meus companheiros do laboratório químico onde trabalhava, todos ateus e comunistas. Estavam presentes! Uma delas foi raptada e depois assassinada pelos militares. Queres um conselho: não te afastes dos idosos!
* * *
No final, Francisco levantou-se e disse: «Obrigado por esta visita. Podemos rezar a Nossa Senhora e depois concederei a bênção». Em seguida, o Papa recebeu vários dons, que cada um apresentou com explicações pormenorizadas. Francisco cumprimentou individualmente aqueles que não tinha saudado no início e depois foi tirada uma fotografia de grupo.
Antonio Spadaro