Reflexões litúrgico-pastorais
Um encontro novo
Otexto que o Evangelho deste Domingo vi da Páscoa (Jo 14, 15-21) enquadra-se naquele monumental Testamento que, no iv Evangelho, Jesus pronuncia, em ondas sucessivas, após a Ceia com os seus Discípulos (Jo 13, 12-17,26). Neste imenso texto, cujas linhas temáticas vêm e refluem e voltam a vir e a refluir, à maneira das ondas do mar que vêm sobre a praia, refluem e voltam, assistimos hoje ao primeiro dos cinco dizeres de Jesus, no iv Evangelho, relativos à Vinda do Espírito Santo, Paráclito (paráklêtos), isto é, Defensor [Advogado de defesa], Consolador e Intérprete. Este último significado deriva do aramaico paráklita, dos rabinos, que não tem o significado usual do grego (Defensor e Consolador), mas Intérprete, aquele que traduz Deus para nós e nós para Deus, fonte e ponte permanente de comunicação, compreensão e comunhão. O Espírito Paráclito é assim o grande construtor de pontes, comunhão e hifenização entre nós uns com os outros e com Deus. É, por isso, que Ele é o Amor, porque destrói todos os muros, preconceitos, ódios, divisões, incompreensões, asperezas, e faz nascer harmonia, amor, paz, comunhão, comunicação. Eis os cinco mencionados dizeres de Jesus, no iv Evangelho, sobre a Vinda do Espírito Santo, sempre dita no futuro: Jo 14, 16; 14, 26; 15, 26; 16, 7; 16, 13-15.
2. O texto de hoje põe Jesus a dizer que, a seu pedido, o Pai nos dará outro Paráclito (állon paráklêton) (Jo 14, 16). Outro. Este outro é o Espírito Santo. Mas o facto de Jesus dizer «outro Paráclito» faz-nos entender que Ele é também Paráclito, portanto, que é também nosso Defensor, Consolador e Intérprete, como de resto surge afirmado com todas as letras na Primeira Carta de S. João 2, 1: «Temos um Defensor (paráklêtos) junto do Pai, Jesus Cristo, o Justo».
3. O primeiro enviado do Pai é então o seu Filho, Jesus, que cumpre e revela o conteúdo da própria missão. O segundo enviado é o Espírito Paráclito. O Filho e o Espírito são, no dizer do grande bispo e teólogo Ireneu de Lião (130-202), as duas mãos do Pai amorosamente estendidas e enviadas em missão à humanidade. O Pai é, em relação aos dois, o enviante; o Filho e o Espírito são, em relação ao Pai, ambos enviados. Confrontando os textos, vemos que há semelhança da relação entre o Pai e o Paráclito com a relação entre o Pai e o Filho: ambas são expressas pelo mesmo verbo «enviar» (pémpô). Mas, juntamente com a semelhança, deparamo-nos também com diferenças. A primeira diferença está no facto de, em relação ao Filho, o verbo enviar estar no passado, encontrando-se no futuro em relação ao Paráclito. O envio de Jesus pelo Pai já se realizou, bem patente nas expressões: «O Pai que me enviou» (Jo 5, 23.37; 6, 44; 8, 16.18; 12, 49; 14, 24) e «Aquele que me enviou» (Jo 4, 34; 5, 24.30; 6, 38.39.40; 7, 16.28.33; 8, 26.29; 9, 4; 12, 44-45; 13, 20; 15, 21; 16, 5). De modo diferente, o envio do Paráclito é anunciado, mas deve ainda realizar-se no futuro, como se verifica na expressão: «O Pai enviá-lo-á no meu nome» (Jo 14, 26), do mesmo modo, que a sua tarefa de «ensinar» e «recordar» aparece igualmente enunciada no futuro (Jo 14, 26). A segunda diferença reside no facto de o envio de Jesus ser feito diretamente pelo Pai, sem intermediários, enquanto que o envio do Espírito Paráclito é feito pelo Pai mediante a intervenção de Jesus, traduzida pela expressão «no meu nome» (Jo 14, 26). E em duas das demais passagens relativas ao envio do Paráclito, é mesmo referido que o próprio Jesus é o sujeito direto do verbo enviar: «Eu enviá-lo-ei de junto do Pai» (Jo 15, 26); «Quando eu for, enviá-lo-ei para junto de vós» (Jo 16, 7). E o que se passa com o verbo «enviar» em termos de passado e futuro, passa-se também com o verbo «dar» (dídômi): «Deus (ho theós)... deu (édôken) o seu Filho unigénito» (Jo 3, 16), e «dará (dôsei) a vós outro Paráclito» (Jo 14, 16).
4. Sente-se, no monumental Testamento de Jesus, apresentado após a Ceia, em Jo 13, 12-17, 26, que a dor da separação física, provocada pela partida de Jesus, atravessa o coração dos discípulos de então. Se virmos bem, também no coração dos discípulos de hoje pode vir ao de cima a perceção de que Jesus está ausente, invisível, pouco percetível e dificilmente acessível. É verdade que a separação física, anunciada por Jesus, provoca nos seus discípulos de então uma dor difícil de ultrapassar. Mas é igualmente verdade que esta dor da separação revela o grande amor que une os discípulos a Jesus. As lágrimas e o amor traduzem a estreita ligação entre os discípulos e Jesus. Ao contrário dos discípulos, o Evangelho apresenta o mundo (ho kósmos), que não conhece Jesus, e, por isso, não o ama nem chora nem se apercebe de qualquer separação (Jo 14, 19).
5. Mas Jesus diz-nos ainda que esta sua ida para o Pai, não só não redunda em prejuízo para nós, mas constitui até proveito e lucro, «pois se Ele não for, o Espírito não virá para nós» (Jo 16, 7). E Jesus explica bem que também Ele nos ama e, por isso, não nos pode deixar abandonados e sós, como órfãos (orphanoí), mas virá outra vez para junto de nós (Jo 14, 18), e ousa tratar-nos carinhosamente por filhinhos (teknía) (Jo 13, 33). É verdade que agora Jesus se encaminha para a morte e morre de facto, mas não desaparece na morte. Vem e fica connosco na sua condição de Ressuscitado, para se fazer ver a nós e nos comunicar a sua própria vida nova (zôê), o Espírito Consolador, que vem para nós do seu Corpo Glorificado (Jo 7, 39; At 2, 33). Sim, com a sua morte, Ele desaparece aos olhos do mundo, que não o conhece, e que apenas sabe que Ele morreu numa Cruz. O mundo conhece apenas a morte, e nada sabe da vida verdadeira (zôê) (Jo 14, 19). Eis toda a sabedoria do mundo, que só leva em conta o que se vê, como a natureza, onde tudo nasce, cresce, envelhece, perece, desaparece e esquece. Outra coisa é o Deus Pessoal, Criador e Redentor. É sabido que também aqueles discípulos não superarão por si sós a prova ou o teste da Paixão e Morte de Jesus. Por isso, quando viram que a morte era o destino de Jesus, todos o abandonaram e fugiram (Mt 26, 56; Mc 14, 50). Será Jesus, Amor e Vida permanente e dissolvente, que reparará esta brecha, chamando de novo estes discípulos reprovados e desistentes (Mt 28, 7.10.16; Mc 16, 7). E eles, como nós, levando consigo toda a sua história anterior de amor e rutura e de milagrosa cura, voltam para a Galileia, para um encontro novo com o Ressuscitado, de quem, agora sim, nunca mais se separarão.
D. António Couto
Bispo de Lamego