· Cidade do Vaticano ·

Uma série de encontros no Vaticano com campeões
O cardeal Tolentino de Mendonça dialoga com Filippo Tortu

Quando o desporto te torna mais nobre

 Quando o desporto  te torna mais nobre  POR-012
23 março 2023

Foi com a linguagem do desporto e da poesia que o cardeal José Tolentino de Mendonça, prefeito do Dicastério para a cultura e a educação, e o campeão olímpico Filippo Tortu, iniciaram um diálogo que é um pacto entre gerações e uma proposta cultural, entre os valores existenciais da lentidão e da velocidade.

Cardeal Tolentino — Estou muito grato pela oportunidade deste encontro com Filippo para dialogarmos juntos sobre questões que tocam a vida. Porque falar de desporto é falar sobre a nossa humanidade e a forma da nossa humanidade hoje. O desporto não deve ser visto principalmente como uma forma de passatempo ou como uma expressão de uma tecnicidade, como se um atleta fosse uma máquina. Antes de mais, um atleta é uma pessoa humana. Filippo corre certamente com a técnica que aprendeu, com toda a sua disciplina e músculos. Mas também corre com o coração, com a cabeça, com o sonho de ser uma pessoa, com a capacidade de estar com os outros. A alegria de uma vitória, e não apenas na corrida de estafetas, é sempre partilhada. Mas certamente na vida de um atleta há também derrotas partilhadas. Por isso correr é também uma parábola da nossa humanidade.

Filippo Tortu — Obrigado por me dar a oportunidade de estar aqui, no Vaticano, para falar convosco. Enquanto estava a ver o vídeo com a minha história desportiva, tentei imaginar o que poderia dizer-vos. E até consegui encontrar dois ou três pontos... Devo dizer que todos eles foram enumerados neste belo discurso introdutivo que fez e que realmente me impressionou.

Hoje podia falar sobre quanto um atleta tem de sacrificar, quanto treino, quanta técnica, quanta preparação há por detrás de cada momento em cada corrida. Só de ver as imagens que agora foram mostradas, pensei em todas as horas que passei com os meus treinadores. No entanto, quando volto a ver o vídeo da vitória na estafeta nos Jogos Olímpicos de Tóquio, o que mais me emociona é o fragmento de uma imagem: quando cheguei à meta e abracei Fausto, o meu companheiro de equipa de estafetas. Sim, é o momento que mais me comove. E estou a ficar emocionado, até neste momento, ao lembrar-me dele. Porque naquele abraço está o significado do que o desporto significa para mim. Quando cruzei a meta olímpica, procurei com o olhar nas bancadas todas as pessoas que amo e com as quais tinha partilhado o caminho para Tóquio: foi a primeira e única vez que chorei e me emocionei com o atletismo.

Sacrifício é uma palavra que, no desporto, não me agrada. Em primeiro lugar, o desporto, na minha opinião, ensina-nos a relacionar-nos com nós próprios. Especialmente no meu caso, porque o atletismo é um desporto individual e tens de te relacionar contigo mesmo. Ao fazê-lo, confrontas-te com os teus maiores sonhos e, consequentemente, com os teus maiores medos. Nos Jogos Olímpicos de Tóquio, ganhámos. Mas há também o sofrimento quando se perde e é precisamente na experiência da derrota que se compreende quem és e quem podes ser. Foi isto que as Olimpíadas me ensinaram. Sempre detestei o lema “o importante não é ganhar, mas participar”: considero-o perdedor, vou competir para ganhar. No entanto, durante as Olimpíadas, experimentando primeiro uma grande desilusão na minha corrida individual, percebi que o importante era dar tudo para estar lá, naquele momento, para correr: ter partilhado um caminho com pessoas que se tornaram uma família. Certamente o meu pai, que é também o meu treinador, os meus companheiros, os fisioterapeutas... Em Tóquio percebi que o importante não era cruzar primeiro a meta, mas estar consciente de que tinha feito tudo o que podia para lá chegar, naquele momento. Esta consciência permitiu-me mudar como pessoa e, consequentemente, como atleta e também correr mais veloz como nunca antes tinha feito. Isto aconteceu em cinco dias. Devo dizer que esses cinco dias me mudaram profundamente como pessoa. Uma questão que gostaria de debater convosco é a seguinte: pratico um desporto individual, passo muito tempo sozinho. Olhando para dentro de mim, aprendi a compreender e a apreciar como é importante estar em paz consigo mesmo para estar em paz com os outros.

Cardeal Tolentino — As tuas palavras fazem-me pensar no que está escrito no templo de Apolo em Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”. Penso que temos de falar de paixão e Filippo é certamente uma pessoa apaixonada. Foi muito interessante ouvir esta construção de interioridade como atleta. Também o monge — como o estudioso na universidade, o contemplativo e, de facto, o atleta — passa muito tempo sozinho, testando-se a si mesmo, escutando-se. Assim, no final, ele constrói-se como pessoa. O compromisso, tão bem descrito nas tuas palavras, de encontrar a paz consigo mesmo, é o desejo que todos nós temos. Que esta experiência possa ser encontrada no desporto é muito interessante: podemos dizer de um contemplativo o que Filippo diz de um atleta, de alguém que procura uma experiência espiritual, colocando em questão a pessoa inteira.

Uma curiosidade, Filippo: os pés. Tive a experiência das minhas peregrinações a Santiago de Compostela e a Fátima: chega uma altura em que são os nossos pés que rezam, já não é a nossa cabeça. Também já tiveste esta experiência na corrida veloz?

Filippo Tortu — Há momentos em que os pés se desprendem do chão. Vão por si próprios. Aconteceu-me há apenas uma hora, antes de chegar aqui ao Vaticano. Eu estava a treinar e pedi para não fazer a última prova porque estava demasiado cansado, achei que não me iria beneficiar. É claro que o meu treinador vê sempre mais longe do que eu e insistiu. Ele tinha razão porque depois do segundo escalão foram os meus pés que me “levaram”: eu tive simplesmente que “os deixar ir” e “seguir”. Parece uma contradição: quando se corre à procura de velocidade, na realidade vai-se devagar. Quando “forças”, na verdade endureces-te. O que é preciso fazer para correr mais depressa? Basta confiar em tudo o que se fez no treino e que se aprendeu ao longo dos anos. Sim, lembrar também de duas ou três “coisas técnicas”, claro... mas depois tudo vem naturalmente. Deves estar sereno, confiante, mas não arrogante, embora o velocista deva ser um pouco arrogante na pista, mas só na pista. Tens de estar sereno e confiante devido a todo o treino que fizeste e porque, no final de contas, estás a fazer o que gostas e o que fazes melhor.

Cardeal Tolentino — Filippo, usaste uma expressão que me fez pensar ao falar sobre a figura do treinador. Descreveste-a muito bem: o treinador vê sempre mais à frente. Gostaria de te ouvir sobre esta relação com o treinador que nós, noutros campos — pensemos na tradição dos pintores — chamamos mestre. Como vives a tua relação com o treinador e como interpretas esta figura, tão fundamental para um atleta?

Filippo Tortu — O meu treinador é o meu pai. Para contar a história da nossa relação utilizo o que aprendi no catecismo: a questão está precisamente na liberdade de cometer erros. Deus coloca-nos sempre à frente a possibilidade de escolha e o meu pai fez o mesmo comigo. Ter o treinador em casa pode ser complicado: se chegares tarde a casa uma noite, ele deveria repreender-te. O meu pai, por outro lado, sempre me deu a possibilidade de escolher livremente, como se dissesse “este é o caminho se quiseres ser um atleta, mas escolhe”. Eu disse a mim mesmo: sou livre de fazer o que quero, mas não quero cometer erros. Mas o mérito é dele: além de ser um bom pai, é um excelente treinador. Temos uma relação baseada no diálogo: o treinador decide, mas ele quer sempre saber a minha opinião sobre o que estamos a fazer. Penso também que ele já sabe as minhas respostas...

Juntamente com o meu pai, há outra pessoa que se ocupa da fisioterapia. Desde criança que sinto a falta da figura do meu avô e por isso vejo este meu técnico como o meu avô. É importante ir aos treinos todos os dias sabendo, dentro, que tenho os dois melhores treinadores do mundo. Melhor, é importante para mim saber que tenho duas pessoas que me podem fazer sentir bem. Penso que esse é o aspeto mais importante na relação entre treinador e atleta.

Cardeal Tolentino — Conheceste pessoalmente o Papa Francisco. De certa forma, poder-se-ia descrevê-lo como um homem que vê mais longe, tal como definiste o treinador.

Filippo Tortu — Sim, o Papa é um homem que sabe ver mais longe. Quer seja um crente ou não, o Santo Padre representa “algo” muito maior, isto é o aspeto espiritual da pessoa. Por esta razão, sente-se “tocado” como homem. Lembro-me muito bem do encontro com o Papa. Normalmente na véspera de uma corrida procuro não me cansar: quase não saio do meu quarto e procuro dar poucos passos. Mas quando me disseram que havia uma oportunidade de conhecer o Papa Francisco, quis ir à Praça de São Pedro: na véspera de um jogo importante no Estádio Olímpico, passei duas horas ao sol, em pé. Mas devo também salientar que no dia seguinte a competição correu muito bem.

Cardeal Tolentino — Ouvindo-te, creio que há uma centelha que desperta o amor pela corrida. Tal como para a poesia. E é quando uma pessoa se esquece de si, do tempo e do cansaço: isso é amor.

Filippo Tortu — Sim, eu sempre quis ser atleta e aos 17 anos comecei a fazê-lo como trabalho. É por isso que não gosto de falar de sacrifício. Há pessoas que conseguem grandes resultados, mas vivem uma existência desregrada fora do campo: não as considero atletas, mesmo que fossem as melhores do mundo. Sou “dedicado” ao atletismo, isso faz-me sentir bem, e estou convencido que os atalhos nunca conduzirão à melhor versão de ti mesmo — mental e fisicamente — que é, afinal de contas, o verdadeiro objetivo do desporto.

Neste espírito, optei também por estudar na universidade. Ainda hoje falei com o orientador para me preparar para um exame. Honestamente, tive um momento complicado com a universidade, mas apercebi-me que a minha vida não estava a correr bem nesse sentido e decidi forçar-me a encontrar os espaços certos dentro do dia para estudar.

Cardinale Tolentino — Uma bela palavra italiana, para um estrangeiro como eu, é “apripista”: não apenas estar na pista, mas abrir novas pistas, criando novas visões e novas possibilidades. Um atleta descobre o que Kierkegaard dizia: o homem é, sobretudo, possibilidade. Estou muito feliz, também como prefeito do Dicastério para a cultura e a educação, com o testemunho de Filippo. É verdade que não é fácil fazer coincidir os estudos com a vida de um atleta de alto nível. Neste esforço para abrir pistas, o Papa Francisco é um exemplo, o qual associa à palavra educação a palavra esperança, de tal forma que por vezes parecem sinónimos. Se investirmos na educação nas nossas vidas, estamos a alargar o nosso campo de esperança. Recentemente, falando a estudantes e professores das Universidades pontifícias romanas, o Santo Padre utilizou uma forte metáfora: “Fazei coro”. E nos coros, por vezes há solistas porque a capacidade de ser protagonistas é também importante. Mas há sobretudo a consciência de que somos um “coro” e que ninguém se salva sozinho. Uma poetisa recorda-nos também que somos “uma obra de outros”. A solidão tem um valor em si e é a possibilidade de o homem entrar em si mesmo. Mas a nossa vocação é sermos este “coro” que nos oferece a alegria de viver em companhia, de partilhar esta aventura, esta magnífica corrida que é a vida.

Filippo Tortu — O atletismo é um desporto individual, na verdade corres sozinho. Mas na realidade, no momento em que entras na pista e estás atrás dos blocos, também representas a síntese de um trabalho que envolve muitas pessoas que são capazes de te colocar nas melhores condições possíveis para chegar à corrida. Se errares a corrida, desfazes um grande esforço de equipa. É uma responsabilidade que eu sinto e que me ajuda a dar o melhor de mim. Afinal de contas, quando tens de te sacrificar por outra pessoa, consegues fazer... “um pouco mais”. Por isso ganhámos a estafeta nas Olimpíadas. A soma dos nossos quatro tempos era pior do que a das outras equipas. Mas estávamos convencidos de que podíamos ganhar e, sobretudo, queríamos ganhar como grupo. Como equipa. Isto fez a diferença.


Na Sala Marconi do Palácio Pio

Recordando os atletas afogados no Mediterrâneo


Quando o desporto te torna mais nobre: esta expressão do Papa Francisco é o leitmotiv dos diálogos com atletas de alto nível promovidos no Vaticano, relançando a visão inclusiva e solidária de um desporto que é também autêntica expressão de cultura e oportunidade de crescimento social. O cardeal José Tolentino de Mendonça, prefeito do Dicastério para a cultura e a educação, e o campeão olímpico Filippo Tortu, foram os protagonistas do primeiro encontro na tarde de quarta-feira 15 de março, na Sala Marconi do Palácio Pio. Na abertura, Paolo Ruffini, prefeito do Dicastério para a comunicação, propôs as linhas para o diálogo, que foi moderado pelo vice-diretor editorial Alessandro Gisotti.

A iniciativa foi possível graças à Athletica Vaticana, clube polidesportivo da Santa Sé, juntamente com o Dicastério para a comunicação e o Dicastério para a cultura e a educação — ao qual o Papa na Constituição Apostólica Praedicate Evangelium confiou o desporto — também representado no encontro pelo bispo secretário Paul Tighe. Estavam presentes numerosos membros do corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé.

«O desporto pode ser um “instrumento” de paz», disse Ruffini, recordando «a antiga “trégua olímpica”» e também «a resolução, infelizmente desatendida, que a Assembleia das Nações Unidas vota na véspera de cada edição das Olimpíadas, precisamente para apelar ao fim das guerras». «O Papa Francisco, por ocasião da participação da Athletica Vaticana nos Jogos do Mediterrâneo na Argélia no verão passado, escreveu que “o desporto nos prepara para não cairmos na tragédia da guerra”. Acrescentando: “Talvez não impediremos as guerras, mas juntos podemos mostrar a possibilidade de uma humanidade mais fraterna”». 

«Temos no coração a dor pelas muitas pessoas que afogam no Mediterrâneo», disse o prefeito do Dicastério para a comunicação. E «morrer na travessia foi há alguns anos o destino de Ali Mbengu, um jovem atleta da Gâmbia, e de Samia, atleta somali que, depois de participar nos Jogos Olímpicos de Pequim de 2008, se afogou ao largo da costa de Lampedusa em 2012, enquanto tentava chegar a Itália». Mas também o desporto, desejou Ruffini, pode «fazer de modo que nunca mais volte a acontecer.  Tanto que nos Jogos do Mediterrâneo na Argélia, com 26 países presentes, foi precisamente a pequena “equipa do Papa”, atuando como “ponte” para um diálogo aberto com todos, que testemunhou a esperança de que o Mediterrâneo voltasse a ser novamente um “lugar” de encontros e não um “grande cemitério” de crianças, mulheres e homens». «É significativo que sejam dois Dicastérios a promover e apoiar estes diálogos», salientou Ruffini, «colocando lado a lado as “grandes palavras” que marcam o seu serviço: cultura, educação, comunicação». Porque hoje a linguagem do desporto «é uma chave que todos podem compreender para superar a fragilidade do nosso tempo e fazer-nos redescobrir como irmãs e irmãos todos.

Testemunhando que deveras o desporto te torna mais nobre, o presidente da Athletica Vaticana, Giampaolo Mattei, apresentou a iniciativa da Coppa degli Ultimi, abençoada pelo Papa por ocasião da Maratona de Roma, e apresentou uma placa a Massimiliano Bonari, o ciclista que no passado dia 5 de março, durante a “lendária” corrida das Estradas brancas na Toscana, não hesitou em parar e retirar-se para ajudar um atleta vítima de uma queda desastrosa, aguardando a chegada do helicóptero de socorro. Um gesto humano e desportivo — fraterno e espontâneo — que “relata” a experiência da “equipa do Papa”.