O cardeal Fernando Filoni, que na época da invasão do Iraque por parte dos Estados Unidos era núncio apostólico, recorda esse período dramático: «reinava a anarquia, foi um tempo de morte e destruição. O Isis foi a consequência de problemas que nunca foram resolvidos». A viagem de Francisco em 2021: «Ele abriu portas e mostrou que o diálogo é possível».
«Aguerra nunca pode ser considerada um meio como qualquer outro, a ser usado para resolver disputas entre nações». Era o dia 13 de janeiro de 2003 quando João Paulo ii , no discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé, lançava o seu apelo para afastar a ameaça de guerra que mais tarde se abateria sobre o povo do Iraque. Wojtyla exortava a não negligenciar as consequências que um conflito acarretaria «durante e após as operações militares». Este apelo também foi reiterado no Angelus de 16 de março de 2003, quando «diante das tremendas consequências que uma operação militar internacional teria para os povos do Iraque e para o equilíbrio de toda a região do Médio Oriente, já tão atormentada, bem como para os extremismos que poderiam surgir», disse ao mundo: «Ainda há tempo para negociar; ainda há espaço para a paz; nunca é tarde demais para nos entendermos uns aos outros e continuarmos a negociar».
A principal razão do ataque foi o medo de que Bagdad pudesse construir ou já possuir armas de destruição de massa. Esta hipótese foi posteriormente desmentida pelas investigações do pós-guerra. O secretário de Estado dos Estados Unidos, Colin Powell, admitiu mais tarde que as fontes de inteligência estavam erradas. «O Papa tinha falado e ninguém o tinha ouvido», lembra hoje o cardeal Fernando Filoni, na época núncio apostólico em Bagdad. Com a mídia do Vaticano, o cardeal recorda, depois de vinte anos, aquele momento dramático da história humana.
Eminência, em 20 de março de 2003, os Estados Unidos lançaram esta intervenção militar no Iraque. O senhor já estava ali há meses e viu a guerra chegar. Como vivenciou isto? Qual era a realidade deste conflito?
O sentimento de todos nós que estávamos no Iraque era de uma certa fatalidade, que não podíamos fazer nada além de sentir acima de nós decisões que desencadeariam a guerra e da qual éramos meramente vítimas. Tivemos que sofrer isso! Esta era a perceção das pessoas que eu conheci. Todos estavam esperando o que ia acontecer. Ninguém podia saber como seria a guerra, os bombardeamentos, os combates, o que aconteceria... As pessoas tinham armazenado arroz, pão, mas ninguém sabia exatamente como iria acontecer e como as pessoas seriam capazes de lidar com os bombardeamentos que não sabíamos nem onde, nem como, nem quando aconteceriam.
Portanto, não havia mais esperança de paz...
Todas as possibilidades tinham terminado. O Papa tinha falado e ninguém o tinha escutado, as Nações Unidas tinham-se pronunciado a favor da guerra, na Europa havia várias opiniões sobre a guerra, mas a determinação tinha sido concordada alguns dias antes nos Açores entre o presidente Bush e o primeiro-ministro Aznar e depois Blair, o primeiro-ministro britânico, que tinham decidido como e quando atacar. Aqui, nós éramos apenas vítimas desta realidade. Por parte da liderança iraquiana, havia uma vontade. Pelo menos eles sempre me haviam expressado que estavam dispostos a dialogar. Mas eles só pediram uma coisa: não humilhar os líderes, então podemos negociar sobre tudo. Nem mesmo isto foi aceite...
Esperava-se apenas o início da guerra...
Sim, vivemos com a fatal expectativa do primeiro bombardeamento que chegou entre a noite de 19 e 20 de março e atingiu os edifícios do governo e também os centros de comunicação. Os telefones foram imediatamente desligados, não havia mais nenhuma possibilidade de comunicação. Então, a invasão também começou no sul do Kuwait onde, sim, as tropas de Saddam foram destacadas, mas a preponderância da ação militar dominou todas as defesas alinhadas.
Como núncio, escolheu ficar para acompanhar o povo. Porquê esta escolha e como pôde acompanhar o povo?
Nós, como serviço diplomático da Santa Sé, estamos nos diferentes lugares pela paz, para garantir a liberdade da Igreja, para estar perto dos nossos cristãos, para mostrar a solidariedade do Papa com todas essas Igrejas, sejam elas minorias ou maiorias. O Núncio está lá para representar o Santo Padre. João Paulo ii tinha mostrado repetidamente a sua proximidade ao povo iraquiano. Apesar do que foi dito em muitos países, não é verdade que todos eram contra o Iraque, a Igreja era contra a guerra e a favor do povo iraquiano. Sobre outras questões, podia-se discutir.
Ficou, então, por solidariedade...
Sim, nós estávamos lá para mostrar essa solidariedade. E posso dizer que não só o núncio, mas nenhum sacerdote, nenhum bispo, nenhum religioso ou religiosa partiu: todos ficaram. Muitas famílias que podiam se distanciaram de Bagdad, algumas procuraram saídas, mas isto é compreensível quando há crianças e idosos. Mas o povo também permaneceu, o êxodo dos cristãos começou mais tarde. Portanto, foi necessário também que o núncio, que representa o Santo Padre, ficasse com os cristãos, os sacerdotes, os bispos. Isto sempre foi muito apreciado tanto pelo povo iraquiano quanto pelas autoridades.
Autoridades que, após alguns meses, perderam o poder. Vimos a queda de Saddam Hussein. Depois, houve anos muito difíceis com um confronto entre xiitas e sunitas e a dificuldade de encontrar um poder estável...
Saddam Hussein era um sunita e a minoria islâmica sunita — uma minoria considerável — de fato detinha o poder. Os xiitas não, de fato eles tinham sido conculcados especialmente no Centro-Sul. Assim, no momento em que o regime de Saddam caiu, a primeira coisa foi que os xiitas tomaram o poder. Assim, entre os aliados que estavam avançando e derrubando o poder do regime e os outros que não sabiam como reagiriam, reinava a anarquia. Todos os dias havia ataques, não militares, mas por aqueles que procuravam tomar o poder ou de outra forma se aproveitavam para roubar. Era uma época de grandes incêndios, vítimas: só porque alguém passava com um carro, eles o roubavam...
Havia o caos, ninguém sabia quem estava no comando, tinham desaparecido os militares, os vigilantes, não havia autoridade de nenhum tipo para controlar. Todos se lembram da pilhagem dos ministérios, exceto aquele que foi imediatamente presidiado: o ministério do petróleo. Lembro-me bem como uma das coisas mais terríveis foi o saque dos museus, onde milhares de obras de arte desapareceram. Até os soldados estadunidenses as levaram e, de fato, foram encontradas mais tarde em suas mochilas. A queima da enorme Biblioteca de Bagdad também foi terrível. Durante 2-3 dias, choveram cinzas sobre a cidade. Foi um caos inaceitável: atingir até mesmo as bibliotecas foi como atingir a história, a vida de um povo, além do fato de que toda a humanidade está privada de bens de valor incalculável.
Que consequências teve esse período de guerra sobre o rosto da Igreja e como essas consequências se refletem na Igreja de hoje?
A Igreja sofreu... Foi a primeira a ter muitos mártires, muitos assassinatos, explosões dentro ou em frente das igrejas. Nossos fiéis estiveram entre os primeiros a serem atingidos. Muitos bens foram perdidos porque, como havia anarquia, muitos lares de católicos e cristãos foram ocupados. Tudo isso naturalmente afetou as perspetivas futuras: que tipo de regime existiria? Que tipo de governo poderia ser estabelecido? Fundado sobre que tipo de lei, tendo em vista que muitas haviam sido revogadas? Refiro-me àquelas sobre liberdade religiosa, direitos civis, o direito de cada cidadão de viver em seu próprio país.
Mesmo quando era feita uma tentativa de impor uma lei, ela não era respeitada, os ataques eram contínuos. Isto se prolongou por anos. O Isis foi a consequência da anarquia, de problemas que não tinham sido resolvidos, de uma defesa indefinida. Tudo isso deu origem ao surgimento de quadrilhas e grupos que colocaram em crise a população. Toda a população, mas particularmente os cristãos que, na área do norte do Iraque, na planície de Nínive, nos vilarejos do Curdistão, se tornaram objeto de uma caça implacável junto com outras minorias da região.
Em 2015 Vossa Eminência foi enviado pelo Papa Francisco ao Iraque para expressar a sua proximidade. Depois houve a viagem do Papa. Como foi percebida a Igreja?
A perceção das autoridades, mas também das pessoas comuns, era de grande respeito pela Igreja Católica. Não havia essa perceção antes, nunca se falou da Igreja Católica, os jornais, as estações de televisão nunca disseram nada. Lembro que as pessoas ficaram espantadas quando pela primeira vez, após a queda de Saddam, puderam comprar aparelhos de tv que antes eram impossíveis de obeter — milhões de antenas parabólicas estavam chegando em enormes caminhões — e as pessoas puderam perceber que há um mundo lá fora e uma das coisas que descobriram no período em que morreu João Paulo ii , foram estas enormes filas de fiéis que vinham para rezar. E as pessoas no Iraque disseram: «Mas como? Sempre nos disseram que eram incrédulos e como é que estas pessoas rezam?».
Foi a primeira vez que eles tiveram um impacto com uma realidade diferente da que lhes havia sido descrita. E isto permaneceu, ou seja, o fato de que a Igreja basicamente defendeu o povo iraquiano. Sempre, mesmo durante o regime. Não foi uma defesa contra Saddam Hussein, mas uma defesa do povo, do direito de um povo a ter a sua liberdade, a sua dignidade, a sua expressão de fé. Isto também continuou com as ações posteriores do Papa: quando ele me enviou em solidariedade às centenas de milhares de cristãos que haviam fugido da Planície de Nínive, foi percebido como um sinal da proximidade do Papa e da Igreja. Foi muito importante porque a perceção do cristão antes era a de um infiel, ao contrário, os cristãos eram os únicos que demonstravam grande proximidade, não só moral, mas também económica, com o apoio da Cáritas e outras ajudas.
Então, como foi vivida a viagem do Papa Francisco ao Iraque?
A visita do Papa foi uma resposta ao desejo de João Paulo ii em 2000 de ir ao Iraque para o Ano Santo. Um desejo que lhe havia sido negado. Isto completou uma expectativa e abriu portas, começando com o fato de que o Papa se engajou no diálogo com o mundo sunita e também com o mundo xiita, e ao encontrar-se com Al-Sistani, mostrou que o diálogo é possível. Estas são portas que foram abertas e o início de um longo caminho.
Marie Duhamel