A relevância da mensagem de São Leonardo Murialdo — que «se tornou o porta-voz da palavra profética da Igreja num mundo dominado por interesses económicos e poder, dando voz aos mais marginalizados» — foi reproposta pelo Papa aos membros da congregação de São José, fundada pelo sacerdote de Turim a 19 de março de há 150 anos. Para a ocasião, o Pontífice recebeu-os em audiência na manhã de 17 de março, na Sala Clementina, dirigindo-se a eles da seguinte forma.
Caros irmãos e irmãs
bom dia e bem-vindos!
Agradeço de coração ao Padre Tullio Locatelli pelas palavras que me dirigiu, saúdo os Bispos presentes e a Madre-geral, e dou-vos as boas-vindas a todos.
Encontramo-nos no 150º aniversário da fundação da vossa Congregação. De facto, no dia 19 de março de 1873 São Leonardo Murialdo fundou a Pia Sociedade de São José de Turim para o cuidado e formação, especialmente de jovens trabalhadores. Faz-me pensar muito sobre este tempo, lá, no “fogo” — digamos — no centro da maçonaria, em Turim, no Piemonte, tantos santos, tantos! E temos de estudar porquê, porquê naquela época. E mesmo no centro da maçonaria e dos anticlericais, os santos, e muitos, não um, muitos. Assim fundou em Turim, neste contexto duro, marcado por tanta pobreza moral, cultural e económica, perante a qual não ficou indiferente: aceitou o desafio e pôs-se a trabalhar, no meio da maçonaria.
Assim nasceu uma realidade que ao longo de século e meio foi enriquecida com pessoas, obras, diferentes experiências culturais e, acima de tudo, muito amor. Uma realidade composta hoje por cerca de quinhentos religiosos — eles são poucos, é preciso crescer! — e, além disso, pelas Irmãs Murialdinas de São José — a quem também enviamos os nossos melhores votos, no septuagésimo aniversário da sua fundação —, pelo Instituto Secular e por vários leigos, todos unidos numa única Família. Como cresceu a semente colocada por Deus na Igreja através das mãos generosas de São Leonardo Murialdo!
No ano passado, por ocasião da abertura desta celebração jubilar, escrevi ao vosso Superior-geral e desejei que continuásseis a crescer na «arte de compreender as necessidades dos tempos, e de lhes proporcionar a criatividade do Espírito Santo». Não podeis controlar o Espírito, é Ele que nos leva em frente. É preciso apenas discernimento e fidelidade. Exortei-vos a tomar especial cuidado com os «mais jovens, que hoje como nunca precisam de testemunhas credíveis». E encorajei-vos a nunca deixar de sonhar, seguindo o exemplo de São José, vosso Padoeiro, e de São Leonardo, num espírito de autêntica paternidade.1
Hoje, ao renovar-vos este convite, gostaria de salientar três aspetos, que considero importantes para a vossa vida e para o vosso apostolado. Eles são: o primado do amor de Deus, a atenção ao mundo em mudança e a meiguice paterna da caridade.
A experiência do amor de Deus marcou profundamente a vida de São Leonardo. Sentiu-o dentro dele forte, concreto, irresistível, como ele próprio testemunha, escrevendo: «Deus ama-me. Que alegria! [...] Ele nunca me esquece, Ele segue-me e guia-me sempre!». E convidava antes de tudo os irmãos a deixarem-se amar por Deus. Deixar-se amar por Deus: este foi o segredo da sua vida e do seu apostolado. Não apenas para amar, não, para se deixar amar. Aquela passividade — sublinho — aquela passividade da vida consagrada, que cresce no silêncio, na oração, na caridade e no serviço. E o convite também se aplica a nós: deixemo-nos amar por Deus para sermos testemunhas credíveis do seu amor; deixemos que o seu amor guie os nossos afetos, pensamentos e ações. Não regras, não disposições.
Um gracejo: quando um Geral da Companhia de Jesus, o Padre Ledochowski, quis reunir toda a espiritualidade da Companhia num livro, para “regular” tudo — havia a regra do cozinheiro, tudo regulado, para que a Companhia de Jesus tivesse o ideal à sua frente — enviou o primeiro exemplar ao abade beneditino, e ele respondeu-lhe: Caro Padre-geral, com este documento o senhor matou a Companhia de Jesus! Quando se quer regular tudo, “enjaula-se” o Espírito Santo. E há muitos — religiosos, consagrados, sacerdotes e bispos — que “enjaularam” o Espírito Santo. Por favor, deem liberdade, deem criatividade. Caminhar sempre com a orientação do Espírito.
São Leonardo Murialdo era certamente um homem profundamente místico. No entanto, isto também o tornou muito atento e sensível às necessidades dos homens e mulheres do seu tempo (cf. 2 Cor 5, 14), dos quais foi um observador perspicaz e um profeta corajoso. Ele foi capaz de notar a existência de novas, sérias e muitas vezes escondidas dificuldades à sua volta, e não hesitou em ocupar-se delas. Ensinava em particular aos jovens trabalhadores a planear o seu futuro, a fazer ouvir a sua voz e a ajudarem-se mutuamente. Tornou-se porta-voz da palavra profética da Igreja, num mundo dominado por interesses económicos e de poder, dando voz aos mais marginalizados. Foi então capaz de compreender o valor dos leigos na vida e no apostolado do Povo de Deus. Na segunda metade do século xix , um século antes do Vaticano ii ,2 ele disse: «O leigo, de qualquer classe social, não pode ser [...] menos apóstolo do que o padre e, em alguns ambientes, mais do que o padre». Naquele tempo, isto soava a protestantismo. Ele foi corajoso! Ele era um homem de Deus inteligente, aberto! Convido-vos a cultivar a sua mesma paixão e coragem: juntos, leigos, religiosos e religiosas, por caminhos partilhados de oração, discernimento e trabalho, para serem artífices de justiça e comunhão.
A este respeito, gostaria de me referir a um último valor importante do vosso carisma: a meiguice paternal da caridade. Que a procureis e vivais entre vós, num espírito de fraternidade, e a exerçais para com todos. Sede como Maria, nossa Mãe: ao mesmo tempo fortes no testemunho e gentis no amor. São Leonardo disse: «Caridade é olhar e dizer o que é belo em cada um, perdoar de coração, ter serenidade de semblante, afabilidade, mansidão». E para o fazer, é preciso saber carregar a cruz. É preciso rezar, é preciso sacrifício. E ainda: «Tal como sem fé não se agrada a Deus, assim sem meiguice não se agrada ao próximo». Estas são as suas palavras: um programa simples e poderoso de vida e apostolado.
Gostaria também de dar o testemunho dos vossos alunos. Quando eu era professor em San Miguel, eles estudavam lá, e tinham um Superior muito prático e muito bom. Costumávamos dizer que este Josefino, o Superior, era o “Prémio Nobel” da esperteza! Porque era um homem de Deus, mas um homem astuto! Ele movia-se bem! Lembro-me bem, um bom grupo de estudantes.
É por isso que gostaria de concluir recordando o convite de Murialdo à santidade: «Fazei-vos santos», disse ele, «e fazei-o rapidamente... Porque o santo tem um olhar clarividente, torna a vida mais humana, comunica esperança e confiança e sabe partilhar a sua experiência de que Deus é Amor».
Caros irmãos, queridas irmãs, agradeço-vos pelo que sois e pelo que fazeis na Igreja, nas pegadas de São Leonardo e inspirados por São José. Abençoo-vos a todos de coração. E, por favor não vos esqueçais de rezar por mim. Obrigado!
1 Cf. Carta ao Padre-geral da Congregação de São José por ocasião do 150º aniversário de fundação, 2 de março de 2022.
2 S. Leonardo Murialdo, Discurso numa Conferência de São Vicente, Paris, 1865.