Na manhã de 3 de fevereiro, quarto dia da viagem em terra africana, o Papa celebrou a missa privadamente na capela da nunciatura apostólica em Kinshasa e despediu-se dos empregados e benfeitores da representação pontifícia que o hospedou durante a sua estadia na República Democrática do Congo, oferecendo uma moldura com a medalha da visita e um cálice. Em seguida, deslocou-se para a sede da Conferência episcopal nacional do Congo (Cenco), que reúne os prelados das 48 circunscrições eclesiásticas do país. Após as palavras de boas-vindas que lhe foram dirigidas pelo arcebispo Marcel Utembi Tapa, presidente da Cenco, o Pontífice proferiu o discurso que publicamos a seguir.
Amados irmãos Bispos, bom dia!
Estou feliz por poder encontrar-vos e, de coração, agradeço a calorosa receção. Obrigado a D. Utembi Tapa pela saudação que me dirigiu e por vos ter dado voz com as suas palavras: agradeço-vos a coragem com que anunciais a consolação do Senhor, caminhando no meio do povo, partilhando as suas canseiras e esperanças.
Foi bom para mim passar estes dias na vossa terra, que representa, com a sua grande floresta, o «coração verde» da África, um pulmão para o mundo inteiro. A importância deste património ecológico recorda-nos que somos chamados a salvaguardar a beleza da criação e a defendê-la das feridas causadas pelo egoísmo rapace. Mas esta imensa extensão verde que é a vossa floresta constitui também uma imagem que fala à nossa vida cristã: como Igreja, temos necessidade de respirar o ar puro do Evangelho, expulsar o ar poluído da mundanidade, guardar o coração jovem da fé. É assim que imagino a Igreja africana e vejo esta Igreja congolesa: uma Igreja jovem, dinâmica, alegre, animada pelo anseio missionário, pelo anúncio de que Deus nos ama e que Jesus é o Senhor. A vossa é uma Igreja presente na história concreta deste povo, radicada de forma capilar na realidade, protagonista de caridade; uma comunidade capaz de atrair e contagiar com o seu entusiasmo e por isso, à semelhança das vossas florestas, com tanto «oxigénio»: Obrigado por serdes um pulmão que dá fôlego à Igreja universal!
Não é bonito começar um parágrafo com a palavra «purtroppo (infelizmente)», mas aqui tenho de o fazer. Infelizmente, a comunidade cristã desta terra — bem o sei — apresenta também outra face. De facto, o vosso rosto jovem, luminoso e belo aparece sulcado pela tristeza e o cansaço, marcado às vezes pelo medo e o desânimo. É o rosto de uma Igreja que sofre pelo seu povo, é um coração no qual palpita, com trepidação, a vida das pessoas com as suas alegrias e tribulações. É uma Igreja sinal visível de Cristo que ainda hoje é rejeitado, condenado e desprezado nos inúmeros crucificados do mundo, e chora as nossas próprias lágrimas. É uma Igreja que, como Jesus, também quer enxugar as lágrimas do povo, empenhando-se em assumir as feridas materiais e espirituais das pessoas e fazendo correr sobre elas a água viva e salutar do lado de Cristo.
Convosco, irmãos, vejo Jesus sofredor na história deste povo, povo crucificado, povo oprimido, transtornado por uma violência que não poupa ninguém, marcado pela dor inocente, constrangido a conviver com as águas turvas da corrupção e da injustiça, que poluem a sociedade, e a padecer em tantos dos seus filhos a pobreza. Ao mesmo tempo, porém, vejo um povo que não perdeu a esperança, que abraça com entusiasmo a fé e imita os seus Pastores, que sabe voltar para o Senhor e entregar-se nas suas mãos, para que a ansiada paz, sufocada pela exploração, por egoísmos de parte, pelos venenos dos conflitos e das verdades manipuladas, possa finalmente chegar como uma dádiva do Alto.
E surge a pergunta: Como exercer o ministério nesta situação? Quando pensava em vós, Pastores do Povo santo de Deus, veio-me à mente a história de Jeremias, um profeta chamado a viver a sua missão num momento dramático da história de Israel, por entre injustiças, abominações e sofrimentos. Passou a vida a anunciar que Deus nunca abandona o seu povo e dá continuidade aos seus desígnios de paz mesmo em situações que parecem perdidas e irrecuperáveis. Mas, este anúncio consolador de fé, viveu-o Jeremias pessoalmente: foi ele o primeiro a experimentar a proximidade de Deus. Só assim pôde levar aos outros uma corajosa profecia de esperança. Também o vosso ministério episcopal vive entre estas duas dimensões, de que vos quero falar: a proximidade de Deus e a profecia para o povo.
Antes de mais nada gostava de vos dizer: Deixai-vos tocar e consolar pela proximidade de Deus. Ele está próximo de nós. A primeira palavra que o Senhor dirige a Jeremias é esta: «Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia» (Jer 1, 5). É uma declaração de amor, que Deus grava no coração de cada um de nós e ninguém a pode apagar, tornando-se fonte de conforto no meio das tempestades da vida. Para nós, que recebemos a vocação de ser Pastores do Povo de Deus, é importante basear-nos nesta proximidade do Senhor, «estruturar-nos na oração», passando horas diante d’Ele. Só assim se aproxima do Bom Pastor o povo que nos está confiado e só assim nos tornamos verdadeiramente Pastores, porque nós, sem Ele, nada podemos fazer (cf. Jo 15, 5). Poderemos até ser empresários, «professores», mas não seguimos a vocação do Senhor. Sem Ele nada podemos fazer. Oxalá não suceda imaginar-nos autossuficientes e, muito menos, ver no episcopado a possibilidade de escalar posições sociais e exercer o poder (como é feio este espírito de «carreirismo»)! E sobretudo que não entre o espírito da mundanidade, que nos faz ver o ministério segundo os critérios remuneradores da própria conta bancária, que nos torna frios e distantes na gestão daquilo que nos está confiado, que leva servir-se da função em vez de servir os outros, e a deixar de cuidar da relação indispensável que é a relação humilde e quotidiana da oração. Não esqueçamos que o pior que pode acontecer à Igreja é a mundanidade; é o pior. Sempre me impressionou aquele final do livro do cardeal Henry de Lubac sobre a Igreja, concretamente as últimas três, quatro páginas, onde ele diz o seguinte: a mundanidade espiritual é o pior que pode acontecer, pior ainda que o período dos Papas mundanos e vivendo em concubinato. É pior. E a mundanidade está sempre à espreita. Estejamos atentos!
Amados irmãos Bispos, cultivemos a proximidade com o Senhor para ser suas testemunhas credíveis e porta-vozes do seu amor junto do povo. É por nosso intermédio que Ele quer ungi-lo com o óleo da consolação e da esperança! Sois a voz com que Deus quer dizer aos congoleses: sois «um povo consagrado ao Senhor, vosso Deus» (Dt 7, 6). O anúncio do Evangelho, a animação da vida pastoral, a liderança do povo não se podem resolver com princípios alheios à realidade da vida diária, mas devem tocar as feridas e comunicar a proximidade divina, para que as pessoas descubram a sua dignidade de filhos de Deus e aprendam a caminhar de cabeça erguida, sem nunca a abaixar perante as humilhações e a opressão. Por vosso intermédio, este povo tem a graça de ouvir, dirigidas a si, palavras semelhantes às que o Senhor deu a Jeremias: És um povo abençoado; pensei em ti, conheci-te, amei-te, já antes de te formar no ventre materno! Se cultivarmos a proximidade com Deus, sentir-nos-emos impelidos para o povo e nunca deixaremos de sentir compaixão por quantos nos estão confiados. Esta atitude de compaixão não é mero sentimento, mas um sofrer com (patire cum). Animados e fortalecidos pelo Senhor, tornamo-nos, por nossa vez, instrumentos de consolação e reconciliação para os outros, para tratar as chagas de quem sofre, aliviar o sofrimento de quem chora, exaltar os pobres, libertar as pessoas de tantas formas de escravidão e opressão. Por outras palavras, a proximidade a Deus torna-nos profetas para o povo, capazes de semear a Palavra que salva na história ferida da própria terra.
E para penetrar neste segundo ponto — a profecia para o povo —, fixemos novamente a experiência de Jeremias. Depois de ter recebido a Palavra amorosa e consoladora de Deus, ele é chamado a ser «profeta das nações» (cf. Jr 1, 5), enviado a levar a luz onde há escuridão, a dar testemunho num contexto de violência e corrupção. E Jeremias, que come a Palavra do Senhor, tornando-se para ele gozo e alegria do coração (cf. 15, 16), confessa que esta mesma Palavra gera nele uma inquietação irreprimível e leva-o a encontrar os outros para serem tocados pela presença de Deus. «No meu coração — escreve ele —, a sua palavra era um fogo devorador, encerrado nos meus ossos. Esforçava-me por contê-lo, mas não podia» (20, 9). Não podemos guardar só para nós a Palavra de Deus, não podemos conter a sua força: ela é um fogo que queima a nossa apatia e acende em nós o desejo de iluminar quem está na escuridão. A Palavra de Deus é um fogo que abrasa dentro e nos impele a sair para fora! Eis a nossa identidade episcopal: abrasados pela Palavra de Deus, em saída para o Povo de Deus, com zelo apostólico!
Mas — podemos perguntar-nos — em que consiste este anúncio profético da Palavra, este ardor? Ao profeta Jeremias, o Senhor diz: «Eis que ponho as minhas palavras na tua boca; a partir de hoje, dou-te poder sobre os povos e sobre os reinos, para arrancares e demolires, para arruinares e destruíres, para edificares e plantares» (1, 9-10). São verbos fortes: primeiro, arrancar e demolir para poder, enfim, edificar e plantar. Trata-se de colaborar para uma história nova, que Deus deseja construir no meio de um mundo de perversão e injustiça. De igual modo também vós sois chamados a fazer ouvir a vossa voz profética, para que as consciências se sintam interpeladas e possa cada qual tornar-se protagonista e responsável por um futuro diferente. É necessário, pois, arrancar as plantas venenosas do ódio e do egoísmo, do rancor e da violência; demolir os altares consagrados aos ídolos do dinheiro e da corrupção; edificar uma convivência baseada na justiça, na verdade e na paz; e, finalmente, plantar sementes de renascimento, para que o Congo de amanhã seja verdadeiramente aquele que o Senhor sonha: uma terra abençoada e feliz, nunca mais violentada, oprimida nem ensanguentada.
Mas atenção! Não se trata de uma ação política. A profecia cristã encarna-se em tantas ações políticas e sociais, mas a tarefa dos Bispos, e dos pastores em geral, não é esta. É a do anúncio da Palavra para acordar as consciências, para denunciar o mal, para alentar os angustiados e desesperados. «Consolai, consolai o meu povo»: esta frase aparece uma vez e outra; é um convite do Senhor para se consolar o povo: «consolai, consolai o meu povo». É um anúncio feito não só de palavras, mas também de proximidade e testemunho: proximidade em primeiro lugar aos presbíteros (os padres são o primeiro próximo de um bispo), escuta dos agentes pastorais, encorajamento no espírito sinodal para se trabalhar juntos. E testemunho, porque os Pastores devem ser os mais credíveis em tudo, em particular no cultivar a comunhão, na vida moral e na administração dos bens. Neste sentido, é essencial saber construir harmonia, sem se erguer num pedestal, sem asperezas, mas dando bom exemplo no apoio e perdão recíprocos, trabalhando juntos como modelos de fraternidade, paz e simplicidade evangélica. Oxalá nunca suceda que, enquanto o povo padece a fome, se possa dizer de vós: «eles sem se importarem, foram um para o seu campo, outro para o seu negócio» (cf. Mt 22, 5). Os negócios, por favor, deixemo-los fora da vinha do Senhor! Um pastor não pode ser um homem de negócios; não pode! Sejamos Pastores e servos do povo de Deus, não administradores de coisas nem homens de negócios, mas pastores! A administração do bispo deve ser a do pastor: à frente do rebanho, no meio do rebanho, atrás do rebanho. À frente do rebanho, para indicar o caminho; no meio do rebanho, para sentir o odor do rebanho e não o perder; atrás do rebanho, para ajudar aqueles que andam mais devagar, e também para deixar por um pouco sozinho o rebanho e ir ver onde encontra pastagens. O pastor deve mover-se nestas três posições.
Amados irmãos Bispos, partilhei convosco o que sentia no coração: cultivar a proximidade com o Senhor para ser sinais proféticos da sua compaixão pelo povo. Peço-vos para não transcurardes o diálogo com Deus e não deixardes que o fogo da profecia se apague por cálculos ou posições ambíguas com o poder, nem por uma vida cómoda e rotineira. À vista do povo que sofre e da injustiça, o Evangelho pede que levantemos a voz. Quando levantamos a voz segundo Deus, arriscamos. Fê-lo um vosso irmão, o servo de Deus D. Christophe Munzihirwa, pastor corajoso e voz profética, que protegeu o seu povo com a oferta da própria vida. No dia antes de morrer, enviou uma mensagem a todos dizendo: «Nestes dias, que mais podemos ainda fazer? Permaneçamos firmes na fé. Tenhamos confiança que Deus não nos abandonará e que de qualquer lado há de surgir para nós uma pequena luz de esperança. Deus não nos abandonará, se nos empenharmos por respeitar a vida dos nossos vizinhos, independentemente da etnia a que pertençam». No dia seguinte, foi morto numa praça da cidade, mas a sua semente, plantada nesta terra, juntamente com a de muitos outros, dará fruto. É bom recordar, com gratidão, grandes Pastores que marcaram a história do vosso país e da vossa Igreja, de quem vos evangelizou e precedeu na fé. Irmãos, são as vossas raízes, que vos robustecem no ardor evangélico. Penso no bem que recebi conhecendo o Cardeal Laurent Monsengwo Pasinya.
Queridos amigos, não tenhais medo de ser profetas de esperança para o povo, vozes unânimes da consolação do Senhor, testemunhas e arautos jubilosos do Evangelho, apóstolos de justiça, samaritanos de solidariedade: testemunhas de misericórdia e de reconciliação no meio de violências desencadeadas não só pela exploração dos recursos e dos conflitos étnicos e tribais, mas também e sobretudo pela força obscura do maligno, inimigo de Deus e do homem. Mas nunca desanimeis! O Crucificado ressuscitou, Jesus vence, aliás já venceu o mundo (cf. Jo 16, 33) e deseja brilhar em vós, na vossa obra preciosa, na vossa fecunda semente de paz. Irmãos, quero agradecer-vos pelo vosso serviço, o vosso zelo pastoral, o vosso testemunho.
E, chegados ao fim desta viagem, quero exprimir-vos todo o meu reconhecimento a vós e a quantos aqui a prepararam. Tivestes a paciência de esperar um ano, sois estupendos! Obrigado por isso. Precisastes de trabalhar duas vezes, porque, na primeira vez, a visita foi anulada, mas sei que sois misericordiosos com o Papa. Sinceramente, obrigado! No próximo mês de junho, celebrareis o Congresso Eucarístico Nacional em Lubumbashi: Jesus está realmente presente e operante na Eucaristia; lá reconcilia e cura, consola e une, ilumina e transforma; lá inspira, apoia e torna eficaz o vosso ministério. Que a presença de Jesus, Pastor manso e humilde de coração, vencedor do mal e da morte, transforme este grande país e seja sempre a vossa alegria e a vossa esperança. De coração vos abençoo.
Quero acrescentar apenas uma coisa! Disse-vos: «sede misericordiosos». A misericórdia. Perdoar sempre. Quando um fiel vem confessar-se, vem pedir perdão, vem pedir uma carícia ao Pai. Entretanto encontra-nos a nós, com dedo acusador: «Quantas vezes? E como o fizeste?…». Assim não. Perdoar. Sempre. «Sim, mas não sei… porque o Código diz…». O Código, devemos observá-lo, porque é importante; mas o coração do pastor vai mais além! Arriscai; pelo perdão, arriscai. Sempre. Perdoai sempre, no Sacramento da Reconciliação. E assim semeareis perdão para toda a sociedade. De coração vos abençoo. E, por favor, continuai a rezar por mim, porque é um pouco difícil este serviço! Mas confio em vós. Obrigado!