Na tarde de 4 de fevereiro, da nunciatura apostólica em Juba o Papa Francisco transferiu-se de carro para a “Freedom Hall” — normalmente utilizada como sala de reuniões pela Assembleia legislativa nacional de transição (Ntla) do Sudão do Sul — para se encontrar com uma representação de deslocados internos do país, que vivem nos Internally Displaced Persons Camps ( Idp ). Após o cântico de abertura e a oração guiada pelo pastor Greenshields, intervieram os grupos. À projeção de um vídeo com comentários da vice-representante especial do secretário-geral na missão das Nações Unidas no Sudão do Sul, Sara Beysolow Nyanti, seguiram-se comovedores testemunhos de duas crianças e de uma jovem que vivem nos campos de Bentiu, Malakal e Juba. A seguir à prece do arcebispo Welby, o Pontífice proferiu o seguinte discurso.
Queridos irmãos e irmãs, boa tarde!
Agradeço-vos pelas orações, os testemunhos e o vosso cântico! Há muito tempo que penso em vós, alimentando no coração o desejo de vos encontrar, fixar-vos nos olhos, cumprimentar-vos e abraçar-vos. Eis-me aqui finalmente, na companhia dos irmãos com quem partilho esta peregrinação de paz, para vos testemunhar a minha proximidade, o meu amor. Estou convosco, sofro por vós e convosco.
Joseph, fizeste uma pergunta decisiva: «Porque é que estamos a sofrer no campo de desalojados?» Porquê? Porquê tantas crianças e jovens como tu se encontram nele, em vez de estar na escola a estudar ou num lugar agradável ao ar livre a brincar? A resposta deste-no-la tu próprio dizendo que é «por causa dos conflitos em curso no país». Na verdade, é devido às devastações provocadas pela violência humana e também pelas inundações que milhões de nossos irmãos e irmãs como vós, incluindo tantas mães com os filhos, tiveram que deixar as suas terras e abandonar as suas aldeias, as suas casas. Infelizmente, neste martirizado país, ser desalojado ou refugiado tornou-se uma experiência habitual e coletiva.
Por isso, renovo com todas as forças o mais sentido apelo para que se faça cessar todo o conflito, se retome seriamente o processo de paz, para que acabem as violências e o povo possa voltar a viver dignamente. Só com a paz, a estabilidade e a justiça poderá haver desenvolvimento e reintegração social. Mas não se pode esperar mais! Um número enorme de crianças nascidas nos últimos anos só conheceu a realidade dos campos de desalojados, esquecendo-se do ambiente de casa, perdendo a ligação com a própria terra de origem, com as raízes, com as tradições.
O futuro não pode ser nos campos de desalojados. É preciso — justamente como pedias tu, Johnson — que todos os rapazes como tu tenham a possibilidade de ir à escola e também o espaço para jogar futebol! Há necessidade de crescer como sociedade aberta, misturando-se, formando um único povo através dos desafios da integração, inclusivamente aprendendo as línguas faladas em todo o país e não apenas na própria etnia. É preciso assumir o risco estupendo de conhecer e acolher quem é diferente, para encontrar a beleza de uma fraternidade reconciliada e experimentar a aventura inestimável de construir livremente o próprio futuro juntamente com o da comunidade inteira. E é absolutamente necessário evitar a marginalização de grupos e o levantamento de guetos dos seres humanos. Mas, para todas estas carências, há necessidade de paz. E há necessidade da ajuda de muitos, da ajuda de todos.
Por isso, quero agradecer à Representante Especial Adjunta Sara Beysolow Nyanti por nos dizer que hoje é a ocasião para todos verem aquilo que, há anos, está a acontecer neste país. De facto, aqui perdura a maior crise de refugiados do continente, pelo menos com quatro milhões de filhos desta terra desalojados, com a insegurança alimentar e desnutrição que afetam dois terços da população e com previsões que falam de uma tragédia humanitária que se pode agravar ainda mais no decurso do ano. Mas quero agradecer sobretudo porque a senhora e muitos outros não ficaram parados a estudar a situação, mas desceram em campo. A senhora percorreu o país, fixou nos olhos as mães, presenciando a tristeza que sentem pela situação dos filhos; fiquei impressionado quando afirmou que, apesar de tudo o que sofrem, nos seus rostos nunca se apagaram o sorriso e a esperança.
E subscrevo aquilo que disse sobre as mães: as mulheres são a chave para transformar o país. Se lhes forem concedidas as justas oportunidades, elas, com a sua laboriosidade e destreza para guardar a vida, terão a capacidade de mudar a fisionomia do Sudão do Sul, de lhe dar um desenvolvimento sereno e coeso. Mas peço, por favor, a todos os habitantes destas terras: que a mulher seja protegida, respeitada, valorizada e honrada. Por favor, protegei, respeitai, valorizai e honrai toda a mulher, menina, adolescente, jovem, adulta, mãe, avó. Sem isso, não haverá futuro.
E agora, irmãos e irmãs, volto a olhar para vós, para os vossos olhos cansados mas luminosos que não perderam a esperança, para os vossos lábios que não perderam a força de rezar e cantar; olho para vós que tendes as mãos vazias mas o coração cheio de fé, para vós que dentro carregais um passado doloroso mas não parais de sonhar com um futuro melhor. Encontrando-vos hoje, queremos dar asas à vossa esperança. Temos fé, acreditamos que agora mesmo nos campos de desalojados, onde a situação do país infelizmente vos obriga a permanecer, pode nascer, como da terra nua, uma semente nova que dará fruto.
Quero dizer-vos: sois vós a semente de um novo Sudão do Sul, a semente para o crescimento fértil e exuberante do país. Sois vós, de todas as etnias, vós que sofrestes e continuais a sofrer, mas não quereis responder ao mal com o mal. Vós, que desde agora escolhestes a fraternidade e o perdão, estais a cultivar um amanhã melhor. Um amanhã que nasce hoje, no lugar onde estais, da capacidade de colaborar, de tecer teias de comunhão e percursos de reconciliação com quem, diferente de vós por etnia e proveniência, vive ao vosso lado. Irmãos e irmãs, sede sementes de esperança, nas quais já se vislumbra a árvore que um dia — esperemos próximo — dará frutos. Sim, sereis vós as árvores que absorverão a poluição de anos de violência e restituirão o oxigénio da fraternidade. É verdade que agora estais «plantados» onde não quereis, mas precisamente nesta situação de desconforto e precariedade podeis estender a mão a quem está junto de vós e experimentar que estais radicados na mesma humanidade: daqui é preciso voltar a partir para se descobrir como irmãos e irmãs, filhos na terra do Deus do céu, Pai de todos.
Queridos amigos, quem nos recorda que a planta nasce de uma semente, são as raízes. É estupendo que, aqui, as pessoas tenham muito a peito as raízes. Li que, nestas terras, «as raízes nunca devem ser esquecidas», porque «os antepassados lembram-nos quem somos e qual deve ser a nossa estrada (...). Sem eles, estamos perdidos, temerosos e sem bússola. Não há futuro, sem passado» ( C. Carlassare , La capanna di Padre Carlo. Comboniano tra i Nuer, 2020, 65). No Sudão do Sul os jovens crescem aprendendo com as histórias dos idosos e, se a narrativa dos últimos anos aparece caraterizada pela violência, é possível — aliás, é necessário — inaugurar, a partir de vós, uma nova: uma nova narrativa do encontro, onde aquilo que se sofreu não fique esquecido, mas seja habitado pela luz da fraternidade; uma narrativa que, no centro, coloque não só a dimensão trágica que vemos nos noticiários, mas também o desejo ardente da paz. Sede vós, jovens de diferentes etnias, as primeiras páginas desta narrativa! Se os conflitos, as violências e os ódios arrancaram das primeiras páginas de vida desta República as memórias boas, sede vós a escrever de novo a sua história de paz! Agradeço a vossa força de ânimo e todos os vossos gestos de bem, que são tão agradáveis a Deus e tornam precioso cada dia que viveis.
Quero dirigir uma palavra de agradecimento também a quantos vos ajudam, em condições muitas vezes difíceis se não mesmo de emergência. Obrigado às comunidades eclesiais pelas suas obras, que merecem ser apoiadas; obrigado aos missionários, às organizações humanitárias e internacionais, em particular às Nações Unidas pelo grande trabalho que realizam. Claro que um país não pode viver longamente de apoios externos, sobretudo tendo um território tão rico de recursos! Mas agora aqueles são extremamente necessários. Quero também prestar homenagem aos numerosos agentes humanitários que perderam a vida, e exortar ao respeito por quem ajuda e pelas estruturas de apoio à população, que não podem ser alvo de assaltos e vandalismo. A par das ajudas urgentes, considero que seja muito importante, numa perspetiva futura, acompanhar a população na via do desenvolvimento, por exemplo ajudando-a a aprender técnicas atualizadas de agricultura e pecuária, de modo a facilitar um crescimento mais autónomo. A todos peço, com o coração nas mãos: ajudemos o Sudão do Sul, não deixemos sozinha a sua população, que tanto sofreu e continua a sofrer!
Para terminar, desejo dirigir um pensamento a tantos refugiados sul-sudaneses que se encontram fora do país e a quantos não conseguem reentrar porque o seu território foi ocupado. Estou solidário com eles e espero que possam voltar a ser protagonistas do futuro da sua terra, contribuindo para o seu desenvolvimento de modo construtivo e pacífico. Nyakuor Rebecca, pediste-me uma bênção especial para as crianças do Sudão do Sul, precisamente para poderdes crescer todos juntos na paz. Daremos a bênção, nós os três como irmãos: eu com o meu irmão Justin e o meu irmão Iain, juntos, dar-vos-emos a bênção. Com ela, chegue até vós a bênção de tantos irmãos e irmãs cristãos no mundo, que vos abraçam e encorajam, sabendo que em vós, na vossa fé, na vossa força interior, nos vossos sonhos de paz, resplandece toda a beleza do ser humano.