África, um continente
Publicamos excertos da entrevista ao Papa Francisco, publicada online nestes dias pela revista comboniana espanhola «Mundo Negro». A entrevista, que durou pouco mais de 30 minutos, teve lugar a 15 de dezembro passado no Vaticano: estavam presentes o diretor da revista, padre Jaume Calvera, o redator-chefe, Javier Fariñas Martín, e o cardeal Miguel Ángel Ayuso Guixot, prefeito do Dicastério para o diálogo inter-religioso.
Vossa Santidade tornou-se jesuíta, entre outras coisas, para ir como missionário para o Japão...
Sim, é verdade.
O que resta daquele padre Bergoglio?
Acho que sempre me interessei pelas periferias. Olho para as periferias a partir de dentro, não só porque me interessam intelectualmente. E é isto que resta, ir além dos confins.
Vossa Santidade disse que «a África nunca deixa de surpreender». Quanto desta surpresa pode ser atribuído aos missionários que encontrou?
O que mais me surpreende dos missionários é a sua capacidade de se inserir no terreno, respeitar as culturas e ajudá-las a desenvolver-se. Não desenraízam o povo, pelo contrário. Quando vejo os missionários, e há sempre quem pode falhar, constato que a missão católica não faz proselitismo, mas anuncia o Evangelho segundo a cultura de cada lugar. Isto é catolicismo, respeito pelas culturas. Não há cultura católica enquanto tal; sim, há um pensamento católico, mas cada cultura está enraizada no que é católico, e isto já faz parte da própria ação do Espírito Santo na manhã de Pentecostes.
Isto é muito claro! Catolicismo não é uniformidade, é harmonia, harmonia das diferenças. E esta harmonia é criada pelo Espírito Santo. Um missionário vai, respeita o que se encontra em cada lugar e ajuda a criar harmonia, mas não faz proselitismo ideológico nem religioso, muito menos colonialista. Alguns desvios que ocorreram noutros continentes, por exemplo o grave problema das escolas no Canadá, onde estive e falei sobre este assunto, deviam-se ao facto de que a independência não era muito clara naquela altura, mas o missionário deve estar lá para respeitar a cultura do seu povo, para viver com aquela cultura e para desempenhar o seu trabalho.
O Concílio Vaticano ii , há já 60 anos, foi um extraordinário impulso missionário. Será que a missão mudou muito desde então?
Graças a Deus, sim. Os historiadores dizem que são necessários 100 anos para que um concílio se realize plenamente, por isso está apenas a meio caminho. Tantas coisas mudaram na Igreja, muitas delas para melhor... Há dois sinais interessantes: a primeira efervescência imprudente do Concílio já desapareceu; refiro-me à efervescência litúrgica, que é quase inexistente. E surgem resistências anticonciliares nunca vistas antes, típicas de qualquer processo de amadurecimento. Mas muitas coisas mudaram... Do ponto de vista missionário, o respeito pelas culturas, a inculturação do Evangelho, é um dos valores que brotaram como consequência indireta do Concílio. A fé incultura-se e o Evangelho assume a cultura do seu povo; há uma evangelização da cultura.
A missão é necessariamente a do diálogo?
Claro que sim! Hoje há muito mais consciência sobre o diálogo, e quem não sabe dialogar não amadurece, não cresce e não consegue deixar nada à sociedade. O diálogo é fundamental!
Ainda estamos muito preocupados com o número de católicos?
As estatísticas são úteis, mas não devemos depositar nelas a nossa esperança. Pergunto-me: em quem deposito a minha esperança? E pergunto a todos: em quem depositais a vossa esperança, na vossa organização, na capacidade sociológica de reunir as pessoas, ou na força do Evangelho?
De 31 de janeiro a 5 de fevereiro Vossa Santidade estará na República democrática do Congo e no Sudão do Sul...
Em julho (a viagem) foi suspensa por causa do problema no joelho... Ao Sudão do Sul vou em companhia, ao mesmo nível, com o arcebispo de Canterbury e o moderador da Igreja da Escócia, e trabalhamos muito bem juntos. E a República democrática do Congo... é como um baluarte, um baluarte de inspiração. Basta ver aqui em Roma a comunidade congolesa, dirigida por uma religiosa, irmã Rita, uma mulher que ensina na universidade, mas que comanda como se fosse um bispo... Celebrei missa aqui em rito congolês, estou muito próximo desta comunidade. Não vejo a hora de realizar esta viagem. O Sudão do Sul é uma comunidade que sofre. (Também) o Congo sofre neste momento de guerrilha, é por isso que não vou a Goma, não se pode ir, por causa dos avanços da guerrilha. Não é que não vou porque tenho medo, nada me acontecerá, mas com uma atmosfera como esta, e vendo o que fazem, lançam uma bomba no estádio e matam muitas pessoas. Devemos cuidar das pessoas.
A sua menção às periferias humanas e existenciais levou-nos com o pensamento ao continente africano. Estas duas periferias são inseparáveis?
A África é original... (mas) há algo que devemos denunciar: há um inconsciente coletivo... segundo o qual a África deve ser explorada. É a história que no-lo diz, com a independência a meio caminho: concedem-lhe a independência económica a partir do solo, mas mantêm para si o subsolo, para o explorar; vemos a exploração de outros países que se apropriam dos seus recursos.
Quais são as riquezas do continente que nós não vemos?
Vemos apenas a riqueza material, e por isto foi historicamente procurada e explorada. Hoje vemos que muitas potências mundiais vão lá para saquear, é verdade, sem ver a inteligência, a grandeza, a arte do povo.
Embora insista sobre a guerra na Ucrânia, Vossa Santidade reitera que não devemos esquecer outros conflitos que permanecem ocultos, alguns deles na África...
Isto é óbvio! Eu disse que agora compreendemos que esta é uma guerra mundial porque está precisamente ao nosso lado... Um dos problemas mais graves é a produção de armas. Certa vez alguém me disse que se deixássemos de produzir armas por um ano, a fome no mundo acabaria. Uma indústria para matar...
Quando se fala de exploração do continente africano, fala-se de recursos naturais e de pessoas. O que perdemos, quando erguemos muros e obstáculos para deter ou impedir a sua chegada?
Quando se colocam arames farpados para impedir a sua fuga... É um crime. Um crime! E aqueles países que têm um índice demográfico nos níveis mais baixos, que precisam de pessoas, que têm cidades vazias e não sabem como gerir a integração dos migrantes. Os migrantes devem ser acolhidos, acompanhados, promovidos e integrados. Se não forem integrados, é um mal... Mas há uma grande injustiça europeia, não é verdade? Grécia, Chipre, Itália, Espanha e até Malta são os países que mais se encontram na área de acolhimento das migrações, e o que aconteceu na Itália onde, embora a política de migração do governo atual seja, digamos, em bom sentido, restritiva, sempre abriu as portas para salvar as pessoas que a Europa não recebe. Estes países devem lidar com tudo e enfrentam o dilema: repatriá-los para que sejam assassinados ou morram, ou fazer isto... É um problema sério! A União europeia não acompanha.