· Cidade do Vaticano ·

Na entrevista à «America Magazine» Francisco falou sobre aborto, abusos e do acordo com a China

A harmonia das diferenças

 A harmonia das diferenças  POR-048
01 dezembro 2022

Na Ucrânia a Santa Sé disponibiliza-se para mediar


O Papa Francisco concedeu uma entrevista à «America Magazine» fundada pela Companhia de Jesus nos Estados Unidos da América. As perguntas foram formuladas pelo padre Matt Malone, diretor cessante; pelo padre Sam Sawyer, novo diretor; por Kerry Weber, diretor executivo; Gerard O’Connell, correspondente; e Gloria Purvis, apresentadora do “Gloria Purvis Podcast”. Publicamos a seguir amplos excertos da entrevista.

(...) Nos Estados Unidos vimos uma polarização cada vez mais profunda, não só política, mas também na vida da Igreja. Como pode a Igreja responder à polarização no seu interior e ajudar a sociedade?

A polarização não é católica. Um católico não pode pensar aut-aut (...). A essência do que é católico é et-et. (...). O povo de Deus é um só. Quando há polarização, entra uma mentalidade divisória que privilegia uns e deixa outros para trás. O católico é sempre harmonia das diferenças (...).

A maioria dos católicos parece ter perdido a confiança na capacidade da Conferência episcopal de oferecer uma guia moral. Como podem os bispos reconquistar a confiança dos católicos americanos?

(...) Penso que é desviante fazer a relação católicos-conferência episcopal. A Conferência episcopal não é o pastor, o pastor é o bispo. Assim, corre-se o risco de diminuir a autoridade do bispo quando se olha para uma Conferência episcopal. A Conferência episcopal tem como objetivo unir os bispos, trabalhar em conjunto, debater problemas, fazer planos pastorais. Mas cada bispo é o pastor. Não dissolvamos o poder episcopal, reduzindo-o ao poder da Conferência episcopal. Pois ali lutam as tendências, mais para a direita, mais para a esquerda, mais para aqui, mais para ali, e de alguma forma não há responsabilidade em carne e osso como a do bispo com o seu povo, pastor, com o seu povo. Jesus não criou a conferência episcopal, Jesus criou os bispos e cada bispo é o pastor do seu povo (...). Então a questão é: qual é a relação de um bispo com o seu povo? E permito-me citar um bispo que não sei se é conservador, se é progressista, se é de direita, se é de esquerda, mas que é um ótimo pastor. (Mark) Seitz (Bispo de El Paso), na fronteira com o México, é um homem que pega pela mão todas as contradições daquele lugar e as faz ir em frente como pastor (...). Tendes alguns bispos bons que são mais de direita, alguns bispos bons que são mais de esquerda, mas são mais bispos que ideólogos, são mais pastores que ideólogos. E esse é o segredo. A resposta à sua pergunta é: a Conferência episcopal pode variar, é uma organização para ajudar e unir, símbolo de unidade. Mas a graça de Jesus Cristo está na relação entre o bispo e o seu povo, a sua diocese.

O aborto é uma questão altamente politizada nos eua . Deveriam os bispos dar prioridade ao aborto em relação a outras questões de justiça social?

(...) Em qualquer livro sobre embriologia diz-se que pouco antes do primeiro mês após a concepção os órgãos do feto pequenino e o adn já estão delineados. Antes mesmo de a mãe ter conhecimento disso. Portanto, é um ser humano vivo. Não digo uma pessoa, porque há um debate sobre isso, mas um ser humano. E faço-me duas perguntas. É correto eliminar um ser humano para resolver um problema? Segunda questão: é correto contratar um assassino para resolver um problema? O problema é quando esta realidade de matar um ser humano se transforma num problema político. Ou quando um pastor da igreja entra numa categorização política. Sempre que um problema perde a pastoralidade (...) torna-se um problema político (...). Quando vejo que um problema como este, que é um crime, adquire uma intensidade altamente política, digo, ali falta pastoralidade (...). Tanto neste problema do aborto como noutros problemas, não devemos perder de vista a pastoralidade: um bispo é um pastor, uma diocese é o povo santo e fiel de Deus com o seu pastor. Não podemos tratá-lo como se fosse uma questão civil.

A pergunta era se a Conferência episcopal deveria apresentar a luta contra o aborto como o problema número um, enquanto todos os outros são secundários...

Eis a minha resposta: é um problema que a Conferência episcopal tem de resolver internamente. O que me interessa é a relação do bispo com o povo, que é o aspeto sacramental. O outro é organizativo, e as Conferências episcopais por vezes cometem erros. Basta ver a Segunda Guerra [mundial], algumas escolhas que certas Conferências episcopais fizeram foram erradas do ponto de vista político e social. Por vezes vence uma maioria que talvez não é aquela que tem ou não razão (...). A Conferência ajudará a fazer cursos, é muito digno o que faz, mas o pastor é mais importante. Mais do que importante, diria essencial, o aspeto sacramental. (...) Cada bispo deve procurar a fraternidade com os outros bispos (...). Mas o essencial é a relação com o seu povo.

A crise dos abusos sexuais prejudicou notavelmente a credibilidade da Igreja e o seu esforço de evangelização. As recentes revelações de abusos cometidos por bispos aumentaram as preocupações sobre a transparência. O que pode fazer o Vaticano para melhorar este aspeto?

(...) Até à crise de Boston, quando tudo veio à tona, na Igreja operava-se mudando de lugar alguns autores de abusos, encobrindo (...). O problema do abuso sexual é gravíssimo na sociedade (...). O abuso contra menores está entre as coisas mais monstruosas. O costume era aquele que se usa ainda nas famílias ou noutras instituições: encobrir. A Igreja fez uma escolha: não encobrir. E a partir daí prosseguiu através de processos judiciais e da criação da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores. Nisto foi grande o cardeal O’Malley, de Boston, que teve a ideia de institucionalizar tudo isto no interior da Igreja. Quando as pessoas honestas veem como a Igreja assume esta monstruosidade, veem que uma coisa é a Igreja e outra são os autores de abusos que estão dentro da Igreja e que são punidos pela própria Igreja. Bento xvi foi grande na tomada destas decisões (...). Uma das coisas que mais me preocupam nesta matéria é a pornografia infantil: é filmada ao vivo, em que país fazem os filmes? O que fazem as autoridades desse país que o permitem? É criminoso, criminoso. A Igreja assume o próprio pecado e vamos em frente, pecadores, confiando na misericórdia de Deus. Quando viajo, geralmente recebo uma delegação de vítimas de abusos. Uma situação: quando estive na Irlanda pediram-me audiência algumas pessoas vítimas de abusos. Eram seis ou sete e no início estavam um pouco assim (zangadas) e tinham razão. Eu disse-lhes: “Reparai, façamos uma coisa, amanhã devo pronunciar a homilia. Por que não a preparamos juntos, sobre este problema?”. Então verificou-se um facto belíssimo, porque aquilo que era simplesmente um protesto transformou-se em algo positivo e todos juntos prepararam comigo a homilia do dia seguinte. Foi uma coisa positiva, na Irlanda, um dos lugares mais “quentes” que tive de enfrentar (...).

A Igreja nos Estados Unidos deu um grande passo em frente na gestão dos abusos quando se trata de sacerdotes. No entanto, parece haver menos transparência quando um bispo é acusado...

Sim, e penso que neste caso é preciso proceder com igual transparência. Se houver menos transparência, é um erro.

A propósito da Ucrânia, muitos nos eua ficaram confundidos pela sua aparente relutância em criticar diretamente a Rússia. Como explicaria a sua posição sobre esta guerra aos ucranianos, americanos e a outros que apoiam a Ucrânia?

Quando falo da Ucrânia, falo de um povo martirizado. Quando há um povo martirizado, há alguém que o martiriza. Quando falo da Ucrânia, falo de crueldade, porque tenho muita informação sobre a crueldade das tropas que entram. Geralmente os mais cruéis são talvez aqueles que vêm da Rússia, mas não da tradição russa, tais como os chechenos, os buriatos, e assim por diante. Certamente, é o Estado russo que invade. É muito claro. Por vezes procuro não especificar para não ofender e condenar em geral, mesmo que se saiba muito bem quem condeno. Mas não é necessário que eu diga nome e sobrenome. No segundo dia da guerra fui à embaixada russa [junto da Santa Sé], um gesto invulgar porque o Papa nunca vai a uma embaixada. E lá pedi ao embaixador que dissesse a [Vladimir] Putin que estava disposto a viajar na condição de que ele me concedesse uma pequena janela para negociar. [Sergej] Lavrov, o ministro dos Negócios Estrangeiros, a alto nível, respondeu com uma carta muito gentil, da qual entendi que não era necessário naquele momento.

Falei duas vezes ao telefone com o Presidente Zelensky. E, em geral, trabalho recebendo listas de prisioneiros, tanto civis como militares, e envio-as para o governo russo; e a resposta tem sido sempre positiva. Também pensei em viajar, mas decidi: se viajo, vou para Moscovo e Kyiv, ambas, e não apenas para uma. E nunca dei a impressão de encobrir a agressão. Aqui, nesta sala, recebi, três ou quatro vezes, uma delegação do governo ucraniano. E trabalhamos em conjunto. Por que não menciono Putin? Não é necessário; já se sabe. No entanto, por vezes as pessoas apegam-se a um pormenor. Todos conhecem a minha posição, com Putin ou sem Putin, sem o mencionar. Alguns cardeais foram à Ucrânia: o cardeal Czerny esteve lá duas vezes; [o arcebispo] Gallagher, responsável pelas Relações com os Estados passou quatro dias na Ucrânia e recebi um relatório sobre o que ele viu; e o cardeal Krajewski foi quatro vezes. Foi com a sua carrinha cheia de ajudas e passou a última Semana Santa na Ucrânia. Quero dizer que a presença da Santa Sé com os cardeais é muito forte, e eles estão em contacto constante com pessoas em posições de responsabilidade. E gostaria de mencionar que nestes dias se celebra o aniversário do Holodomor, o genocídio cometido por Stalin contra os ucranianos (em 1932-1933). Penso que é correto recordar um precedente histórico do conflito [atual]. A posição da Santa Sé é procurar a paz e um entendimento. A diplomacia da Santa Sé vai nesta direção e, naturalmente, está sempre disponível para mediar.

Uma recente pesquisa mostrou que um grande número de católicos negros está a abandonar a Igreja. O que diria agora aos católicos negros nos eua que experimentaram o racismo e, ao mesmo tempo, uma surdez dentro da Igreja em relação aos apelos à justiça racial?

Dir-lhes-ia que estou próximo do sofrimento que estão a viver, que é um sofrimento racial (...).

Como podemos encorajar os católicos negros a permanecer?

(...) Diria aos católicos afro-americanos que o Papa está consciente do seu sofrimento e que os ama muito, e que devem resistir e não se afastar. O racismo é um pecado intolerável contra Deus. A Igreja, os pastores e os leigos devem continuar a lutar para o erradicar e por um mundo mais justo. Aproveito esta oportunidade para dizer que também amo muito os povos indígenas dos Estados Unidos da América. E não me esqueço das pessoas de origem latino-americana, que já são tantas entre vós.

Muitas mulheres sofrem porque não podem ser ordenadas sacerdotes. O que diria a uma mulher que já está a servir na vida da Igreja, mas que se sente especificamente chamada a ser sacerdote?

Este é um problema de natureza teológica. Creio que estamos a amputar a essência da Igreja se considerarmos apenas o caminho da dimensão ministerial na vida da Igreja. O caminho não é apenas o do ministério [ordenado]. A Igreja é mulher, a Igreja é uma esposa. Não desenvolvemos uma teologia da mulher que reflita isto. A dimensão ministerial, podemos dizer, é a da Igreja petrina (...). Mas há outro princípio que é ainda mais importante, do qual não falamos, o princípio mariano, que é o princípio do feminino na Igreja, da mulher na Igreja, no qual a Igreja se reflete porque ela é mulher e esposa. Uma Igreja com apenas o princípio petrino seria uma Igreja da qual se poderia pensar que seja reduzida à sua dimensão ministerial, nada mais. Ao contrário, a Igreja é muito mais do que um ministério. É todo o povo de Deus. A Igreja é mulher, a Igreja é esposa. Por isso, a dignidade da mulher reflete-se desta forma. E depois há uma terceira via: a via administrativa. A via ministerial, a via eclesial — digamos, mariana — e a via administrativa, que não é uma coisa teológica (...). E, neste campo, creio que devemos dar mais espaço às mulheres. Aqui no Vaticano, todos os cargos em que temos colocado mulheres, funcionam melhor. Por exemplo, no Conselho para a Economia há seis cardeais e seis leigos. Há dois anos, entre esses seis leigos, nomeei cinco mulheres, e foi uma revolução. A vice-governadora do Vaticano é mulher. Quando uma mulher entra na política ou em cargos de gestão, geralmente faz melhor. Muitos economistas são mulheres, e essas mulheres estão a renovar a economia de maneira construtiva (...). E por que uma mulher não pode entrar no ministério ordenado? Porque o princípio petrino não prevê um espaço para isto. Sim, é verdade, devemos estar no princípio mariano, o que é mais importante. A mulher é mais, ela assemelha-se mais à Igreja que é esposa e mãe (...). O que eu queria era sublinhar os dois princípios teológicos: o princípio petrino e o princípio mariano, que são os que fazem a Igreja. Neste sentido, o facto de a mulher não entrar na vida ministerial não é uma privação: não. O lugar (da mulher) é um lugar muito mais importante e é uma posição que ainda temos de desenvolver (numa catequese) sobre a mulher na via do princípio mariano (...).

Nos Estados Unidos, há quem interpreta as suas críticas ao capitalismo de mercado como críticas aos Estados Unidos. Há quem o define um socialista, um comunista, um marxista (...)?

Pergunto-me sempre: de onde vêm estas etiquetas? (...) Iluminam-me muito as Bem-aventuranças, mas sobretudo o protocolo pelo qual seremos julgados: Mateus 25: “Tive sede, e destes-me de beber. Estava na prisão, e visitastes-me. Estava doente e curastes-me”. Significa isto, então, que Jesus era um comunista? O problema por detrás disto (...) é a redução da mensagem do Evangelho a um facto sociopolítico. Se eu considerar o Evangelho apenas de maneira sociológica, então sim, é verdade, sou comunista e Jesus também (...).

Vossa Santidade foi criticado por ter assinado um acordo com a China sobre a nomeação de bispos. Algumas pessoas na Igreja e na política dizem que está a pagar um preço elevado por ter mantido o silêncio sobre os direitos humanos na China...

Não é uma questão de falar ou de ficar calado. Essa não é a realidade. A realidade é dialogar ou não dialogar. E o diálogo deve ser levado até onde é possível. Para mim, o exemplo mais alto no período moderno da Igreja é o cardeal Casaroli (...). Os Papas — e refiro-me a Paulo vi e a João xxiii — enviaram-no especialmente aos países da Europa central para procurar restabelecer as relações durante o período do comunismo, durante a Guerra fria. E este homem dialogou com os governos, lentamente, fazendo o que podia, e lentamente conseguiu restabelecer a hierarquia católica naqueles países (...). Nem sempre foi possível nomear a melhor pessoa como arcebispo na capital, mas sim aquela que podia ser nomeada de acordo com o governo... O diálogo é o caminho da melhor diplomacia. Com a China, optei pelo caminho do diálogo. É lento, tem contratempos, também tem êxitos, mas não consigo encontrar outro caminho. E quero frisar isto: o povo chinês é um povo de grande sabedoria e merece o meu respeito e admiração. Diante dele, tiro o meu chapéu! É por isso que tento dialogar, pois não vamos conquistar um povo, não! Lá há cristãos. Eles precisam da nossa atenção para que possam ser bons chineses e bons cristãos (...).