Encorajamento do Pontífice à comunidade missionária de cuamm

Estar com a África

 Estar com a África  POR-047
24 novembro 2022

É vergonhoso quando faltam o pão diário e cuidados de saúde


«Estar com a África, antes ainda de ser pela África. Precisamente esta é a boa atitude, porque no imaginário, no inconsciente coletivo, existe aquela atitude negativa: a África deve ser explorada», disse o Papa Francisco à comunidade missionária de Médicos com a África — cuamm, recebida em audiência, na manhã de 19 de novembro, na sala Paulo vi .

Prezados irmãos e irmãs
bom dia e bem-vindos a todos!

Estou feliz por vos receber. Agradeço ao arcebispo de Pádua pelas suas palavras tão corajosas. Hoje formais a comunidade missionária de “Médicos com a África — cuamm” .

Apraz-me realçar que a vossa história começa quando, há 70 anos, precisamente em Pádua, nasce um colégio para hospedar jovens estudantes de medicina africanos. Jovens africanos. Já daqui se vê o vosso estilo: estar com a África, antes ainda de ser pela África. Precisamente esta é a boa atitude, porque no imaginário, no inconsciente coletivo, existe aquela atitude negativa: a África deve ser explorada. E a opor-se a isto há o vosso não: estar com a África. Assim, estar com a África significa ser pela África. Dessa experiência começou um caminho de partilha e de serviço que, nestes 70 anos, atravessou quase todo o continente africano para levar assistência médica, sempre numa ótica de desenvolvimento e privilegiando a formação do pessoal local. Existe um grande capital intelectual na África: devemos ajudar a desenvolvê-lo. Há cerca de um mês, tive um encontro através do Zoom com estudantes universitários de toda a África. Fiquei surpreendido com a capacidade intelectual daqueles jovens, daquelas jovens. Por favor, que não se percam; ajudemo-los a progredir, a ir em frente, pois a África não deve ser explorada, mas promovida!

A vossa obra é uma forma concreta de pôr em prática algo que pedimos todos os dias no “Pai-Nosso”. Ao Pai celestial pedimos: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. E este “pão” é também a saúde. A saúde é um bem primário, como o pão, como a água, como a casa, como o trabalho. Esforçais-vos para que não falte o pão diário para tantos irmãos e irmãs que hoje, no século xxi , não têm acesso a cuidados de saúde normais, básicos. É vergonhoso: a humanidade não é capaz de resolver este problema, mas é capaz de investir na indústria de armas que destroem tudo. Gastam-se biliões em armas, queimam-se outros recursos enormes na indústria do efémero e da evasão — a “indústria da maquilhagem”, por exemplo... Quando rezamos “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”, deveríamos pensar bem no que dizemos, pois muitos, demasiados homens e mulheres, só recebem migalhas deste pão, ou nem sequer isso, simplesmente porque nasceram em certos lugares do mundo. Penso em tantas mães, que não conseguem ter um parto seguro e às vezes perdem a vida; ou em tantas crianças, que morrem já na primeira infância.

A vossa presença aqui hoje aproxima o meu coração de países que me são particularmente queridos, como a República Centro-Africana, onde fui em 2015 para abrir a Porta Santa, em Bangui; e o Sudão do Sul onde, se Deus quiser, irei no início do próximo ano. São países muito pobres e frágeis, que o mundo considera importantes apenas pelos recursos a explorar, e que ao contrário o Senhor considera seus prediletos, para onde vos envia a fim de serdes bons samaritanos, testemunhas do seu Evangelho. Não tenhais medo de enfrentar desafios difíceis, de intervir em lugares remotos marcados pela violência, onde as populações não têm a possibilidade de se cuidar. Permanecei com elas! Se forem necessários anos de trabalho, se houver desilusões e fracassos para obter resultados, não desanimeis! Perseverai com o serviço obstinado e o diálogo aberto a todos, como instrumentos para a paz e a superação dos conflitos.

Outro aspeto bonito e importante do vosso estar com a África é a colaboração com as Igrejas locais e com as instituições dos países onde trabalhais, sempre numa ótica de partilha e de promoção das populações africanas. Contra a exploração, a promoção! Também vos encorajo a continuar a trabalhar com as congregações religiosas missionárias, generosamente comprometidas no campo da saúde na África. Trabalhar juntos unindo as forças, pondo à disposição a vossa experiência e competência, apoiando a inovação social inspirada pelo Evangelho e também explorando novas formas de financiamento dos serviços de saúde destinados aos mais pobres.

A pandemia de Covid, a guerra e a grave crise internacional põem todos à prova. Assim como as condições da seca: acompanhei os desastres devidos à seca no Quénia... E se é difícil para o mundo desenvolvido, é-o ainda mais para a África, onde as consequências são dramáticas, pois as populações são muito pobres e faltam sistemas de proteção social. A África regride e a pobreza agrava-se. Os preços dos géneros alimentícios sobem em toda a parte, causando fome e subalimentação; os transportes médicos estão bloqueados, devido ao custo excessivo do combustível; há escassez de remédios e de material médico em toda a parte. Trata-se de uma “guerra” escondida, que ninguém narra e parece não existir, e contudo tem um impacto muito duro, especialmente sobre os mais pobres. O Senhor vos ajude a atravessar esta “noite” com coragem, com o coração voltado para a alvorada, que iluminará aqueles pequenos rebentos de esperança que já vislumbramos e dos quais sois testemunhas. Obrigado por dar voz ao que a África vive; por trazer à superfície os sofrimentos escondidos e silenciosos dos pobres que encontrais no vosso compromisso diário. E exorto-vos a continuar a dar voz à África, a dar-lhe espaço para que possa manifestar-se: a África tem voz, mas não se ouve; deveis oferecer possibilidades para que se ouça a voz da África; continuar a dar voz ao que não se vê, às suas lutas e esperanças, para despertar a consciência de um mundo às vezes demasiado concentrado em si próprio e pouco no outro. O Senhor ouve o clamor do seu povo oprimido e pede-nos para ser artesãos de um novo futuro, humildes e tenazes, com os mais pobres.

Por fim, convido-vos a prestar especial atenção aos jovens: a favorecer de todas as maneiras, nas vossas atividades, a integração dos jovens no mundo do trabalho, tão desejosos de viver o seu porvir como protagonistas, especialmente nos países de origem. Digo-vos que fiquei comovido com o encontro que tive via Zoom, de mais de uma hora e meia, com os jovens africanos: a sua inteligência, as suas inquietações... Ajudai-os a progredir: são um tesouro, são muito inteligentes, mas que não sintam que os seus projetos não podem avançar devido às condições geográficas, sociais, económicas, ou muitas vezes culturais que os impedem. As novas gerações podem criar novas pontes entre a Itália e a África. E isto acontece quando os jovens se encontram, se confrontam e se abrem ao mundo sem receios, nem preconceitos. Podeis envolver as universidades nesta aventura, de modo que os percursos de formação, investigação e inovação, previstos para os jovens italianos, sejam destinados também à juventude africana. É neste intercâmbio que se formam dirigentes capazes de orientar processos de desenvolvimento humano integral.

Gostaria de concluir com uma fotografia, com uma imagem. Quando visitei Bangui, tive a oportunidade de me encontrar — por acaso — com uma irmãzinha que há mais de cinquenta anos vivia na África, na República Democrática do Congo. Tinha vindo a Bangui de canoa para fazer as compras. Era parteira, tinha assistido a mais de dois mil partos: ali era a mãe! Aquela mulher tinha sido parteira durante cinquenta anos. Era simples, acompanhada por uma menininha de quatro a cinco anos, que lhe dizia: “mãe”. E eu, em tom de brincadeira, o que lhe disse? “Será ela uma noviça da tua congregação?”. E ela: “Não, não: é minha filha”. Olhei para ela, não entendia. E ela disse-me: “Ouve, no parto a mãe morreu, o pai partiu, abandonou todos. Ela estava sozinha e eu adotei-a legalmente”. Religiosa corajosa, não é verdade? Responsabilizou-se por ela. E ainda vive ali, na República Democrática do Congo, e todos os sábados ainda vai de canoa fazer compras em Bangui e regressa; e continua a trabalhar como parteira. Uma vida escondida para dar vida. Só vos quero deixar esta fotografia. Pensamos em tantos e tantas que, como esta religiosa, passaram a vida na África para ajudar os africanos a crescer. Ide em frente, sede corajosos com estes pioneiros que temos diante de nós!

Muito obrigado por este encontro e pelo que fazeis! Que Nossa Senhora vos acompanhe sempre no vosso caminho e no vosso trabalho. Também eu estou próximo de vós através da oração. Abençoo-vos de coração, a vós aqui presentes, a toda a família de cuamm e a todas as pessoas de quem cuidais. E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim.

Obrigado!